LIBERDADE
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa …
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças …
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca …
Fernando Pessoa
EM TODOS OS JARDINS
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens
Sophia de Mello Breyner Andresen
MIRADOIRO
Com tristeza e vergonha enternecida,
Olho daqui
A ponte das palavras
Que construí
Sobre o abismo da vida.
Sonhei-a;
Desenhei-a;
Sólida até onde pude,
Lancei-a como um salto de gazela:
E não passei por ela!
Vim por baixo, agarrado ao chão do mundo.
Filho de Adão e Eva,
Era de terra e treva
O meu destino.
E cá vou como um pobre peregrino.
Miguel Torga
O SAL DA LÍNGUA
Escuta, escuta: tenho ainda
Uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
Salvar o mundo, não mudará
A vida de ninguém – mas quem
É hoje capaz de salvar o mundo
Ou apenas mudar o sentido
Da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
Que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
Mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
O seu lume breve.
Palavras que muito amei,
Que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
Eugénio de Andrade