quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Flores ... na literatura

Porque não consigo ter tempo para ler tudo, vou dando preferência aos autores portugueses - os que gosto -, os quais me continuam a surpreender quase sempre que sai uma obra nova.
(...)
- Não sei como é que a Clarisse atura um homem assim, tão pouco interessante, que não se comove com a transparência dos corpos, com a lucidez que nos transmitem, que não conhece a linguagem da pele, das rugas, das unhas, das articulações. Altitude, cavalheiro, altitude!
- Tem covinhas na cara.
- Ah, isso já é qualquer coisa. Os risórios-de-santorini! Saiba que é um músculo que nem todos os homens têm, um músculo devotado ao riso, só serve para isso. Quem tem covinhas tem risórios de santorini, quem não tem covinhas poderá ter ou não. Mas concentre-se, cavalheiro, estamos a falar de um músculo dedicado ao riso. Ora, como disse Samuel Lieber, o ser humano é o único animal que ri, apesar da taxa de desemprego. 
(...)
Dias depois, um bando de pássaros levantou voo do beiral da varanda.
Ele riu-se com estrépito, como se alguém lhe fizesse cócegas.
Perguntei-lhe o motivo daquela explosão.
Respondeu-me que os coitados tinham de voar para chegar muito alto, mas a nós, humanos, bastava-nos pensar. 
- Coisa que não fazemos muito bem - disse-lhe.
- É verdade. Altitude! Falta-nos isso. Num minuto reclamamos do Governo, a seguir votamos nos mesmos, num minuto verduras, a seguir bacon, num minuto espaço, depois infinito, num minuto salada de rúcula, a seguir um leitão, num minuto felicidade, depois a telenovela, num minuto a verdade, a seguir aquele animal, como é que se chama esse coelho?
- Estive a pensar naquilo que me disse da Clarisse, que bebia porque tinha sido despedida ...
(...)
Afonso Cruz
Flores (2015)

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Bento da Cruz

Não conhecia, nem sequer de nome. A notícia da sua morte, no passado mês de Agosto, despertou-me a curiosidade e confirmou que "quanto mais sei, maior é a minha ignorância".
Estou a ler "O Lobo guerrilheiro", romance que retrata a realidade das Terras do Barroso, da primeira República à ditadura, passando pela influência da guerra civil espanhola na raia transmontana, utilizando a beleza da nossa língua e demonstrando que a sua riqueza é muito maior do que a "meia dúzia" de palavras que, hoje em dia, fazem parte do vocabulário quotidiano, acompanhadas de alguns "estrangeirismos", porque parece bem ...
"(...)
- Não arme em esperto comigo, velhote!
O lavrador coçou a cabeça com manápulas terrosas e ar súplice de garoto apanhado em flagrante.
- Não é meu hábito prevaricar. Mas tenho a patroa na cama ...com um fastio de morte ... pediu-me uns peixinhos do "nosso rio" ...
- Está bem, homem. Governe lá a sua vida.
- Nunca a saúde lhe falte, amigo! Deus o acompanhe!
Entre o dilúculo e a aurora, outros vultos sorrateiros surpreendeu Lobo a esgueirarem-se por detrás dos cômoros. Horinha de os clandestinos levantarem os galritos nas rincolheiras das trutas e as armadilhas nos tourais dos coelhos.
Mas já o astro-rei, com o seu chicote de luz, expulsava da terra as últimas sombras, e os seres viventes, desde o homem ao verme, saíam da toca. (...)
O Lobo guerrilheiro
Bento Cruz (1992)