sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

Crónica datada de Setembro de 1946, certamente por lapso ou descuido. Poderia e deveria ser Outubro de 2023. 

LOUVAÇÃO

Já escrevi sobre isso: mas a coisa me impressionou, e além do mais ainda não recebi os jornais, são seis e quarenta, e Chico Brito combinou de passar com o Cavalcanti às oito horas para irmos às enchovas. Se começar a procurar assunto, acabo perdendo a pescaria. E acontece que há pouco, quando acordei, eu estava sonhando com isso. Via um homem de avental e touca, como se fosse um sacerdote, mas um sacerdote em paramentos brancos de padeiro. E ele erguia à luz um pequeno pão branco. A luz era a mesma luz de meu quarto, um raio de sol fraco e louro: e o pequeno pão brilhava como hóstia e o homem dizia: "É puro, é puro."

O jornal deu esse caso do padeiro de Brás de Pina que foi autuado por estar fabricando pão com farinha de trigo pura. Entende-se que a Prefeitura tem razão. Temos pouco trigo - e precisamos misturá-lo. O padeiro será punido, mas que ele ouça este canto matinal em seu favor.

Glória a ti, padeiro de Brás de Pina, padeiro do pão puro.

Entre o falso leite, a falsa arte, a falsa crítica de arte, o falso dinheiro do governo, a falsa palavra do político; entre a falsa democracia - glória a ti. Mergulhamos no frenesi das falsificações; nossos panos são de falsos tecidos, os sapatos de falso couro, as garrafas de falsa bebida, as palavras de falsa moral. Há orquestras tocando falsas músicas e oradores com a voz embargada, pela falsa emoção; e o chefe de Polícia resolve punir falsos crimes. Os partidos fazem uma falsa coalizão ou se colocam em falsa oposição ou hipotecam falso apoio; e todos comem falsa manteiga, bebem água de falsa pureza e tomam falsos banhos sem água. De tudo isso nos queixamos aos falsos amigos; e todos nos fazem falsas promessas, e nos oferecemos falsos banquetes; quando tudo piora, o povo nas ruas promove falsos distúrbios, quebrando falsos artigos de falsos comerciantes.

Tu, só tu, fazes o puro pão. Às escondidas, nesta cidade pecaminosa; contra as posturas municipais e contra os costumes; é aí, na penumbra de Brás de Pina, que formas a tua massa pura e a levas ao forno de verdadeiro fogo do ideal, ao fogo do teu coração. Glória a ti, verdadeiro padeiro, último preparador da branca hóstia da verdade eterna e terrena do pão dos homens: glória a ti.

Sim, glória ao padeiro que acredita no pão. Não acreditam na paz os homens que a fazem; até a guerra a fizeram sem acreditar. Glória a ti, padeiro que fazes pão.

Rubem Braga
Desculpem tocar no assunto
Tinta da China (2023)

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Limpinho

Uns dias fora do ambiente oestino deram para relaxar, estar com amigos, comer diferente, dormir em cama nova, acordar cedo sem vento nem nuvens, dar uns mergulhos logo pela manhã (antes da "invasão" dos limos), andar na água sem os artelhos se queixarem da temperatura.

O sítio da estadia era bonito, agradável, sossegado, óptimo para recuperar forças e não pensar em problemas. Nestas experiências, confirmo sempre uma ideia de há longos anos: tenho feitio para estar de férias. Ainda para mais, num sítio cuidado, limpo e bem arranjado. Agradou-me sobremaneira a preocupação com a limpeza, expressa no cuidado que toda a gente envolvida nela colocava, e no aviso, afixado em vários sítios, bem visível para todos os frequentadores:

" Sr. Cão: por favor apanhe os seus cócós. Se não for capaz, chame o seu dono."

Faz tanta falta um aviso destes pelas ruas desta cidade ...