sábado, 31 de outubro de 2020

Dia Mundial da Poupança

Hoje é o Dia Mundial da Poupança.

Tempos houve em que, no dia de hoje, havia um mealheiro de cerâmica, fabricado na Secla, para oferecer aos melhores clientes, com vista a estes irem poupando para o futuro dos filhos, colocando no recipiente, de vez em quando, uma moedinha. O objectivo era conseguir alguma poupança para abrir uma conta para a criança, lembrando sempre a entidade que lhe dava o "cofre".

Tal como agora, só conseguia encher o mealheiro quem tivesse alguma folga no orçamento, que lhe permitisse prescindir de uma moedinha de cinco, dez ou vinte cinco tostões. As moedas de cinco e de dez escudos eram mais bonitas, mal empregadas para serem escondidas, e suficientes para algumas compras já significativas. Outros tempos!

De manhã, no supermercado, meia dúzia de coisas custaram mais de cinquenta euros e a admiração foi quase nula. O cartão nem sente mas, nas contas dos tostões, foram mais de dez contos que lá ficaram!

Nem o mealheiro cheio de moedas chegava ...

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Mar sem fim

As ondas quebravam uma a uma

Eu estava só com a areia e com a espuma

Do mar que cantava só para mim. 

Dia do Mar
Sophia de Mello Breyner Andersen
Caminho

Não se desce nem se experimenta a água. Deve estar bem fria, para não variar. 

Olhar este mar e ouvir a sua música faz esquecer as notícias e o que elas transportam. É um privilégio poder dar um saltinho à Foz, apreciar esta maravilha, sem ninguém à volta, com apenas quatro ou cinco corajosos a apanhar sol como se fosse Agosto e dois ou três a tentar enganar os robalos que, com o mar tão forte, se põem a jeito e engolem um engodo saboroso. Pela boca morre o peixe ...

Confirma-se, também, que o mar continua a bater na rocha e o mexilhão, coitado, a sofrer as agruras das ondas sem ter por onde escapar. O que lhe vale (a ele, mexilhão) é ter a companhia das lapas, dos percebes, das algas e de tantos outros companheiros da desdita, para não se sentir discriminado, a pensar que o azar só a ele acontece. Como se pode ver, o mar não discrimina e bate em tudo o que lhe aparece pela frente, seja roto, nu, vestido, nobre ou plebeu, masculino ou feminino.

 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Ondas

A cada dia que passa somos surpreendidos com o desleixo, a incúria, a falta de educação e a estupidez de muita gente. São lugares comuns, ditos e escritos milhares de vezes, mas dão jeito para começar. Não se trata de convencimento da infalibilidade, longe disso, da perfeição absoluta ou qualquer outra manifestação de egocentrismo, antes a constatação de que continua a haver gente, e muita, que, de forma egoísta, se esquece que estamos a viver um período muito especial,  que teve, tem e terá consequências terríveis para todos, mesmo para aqueles que apregoam a sua (in)capacidade de resistir a tudo, só porque sim. Mantém-se viva a esperança de não ser preciso montar nenhum estado policial, que controle tudo e todos, porque esse estado ainda está na memória de muitos e não se deseja aos que nunca o experimentaram, mesmo aqueles que continuam a agir sem respeito pelos outros seus semelhantes.

De toda a gente que hoje foi ao Sítio da Nazaré para espreitar as ondas da Praia do Norte, quantos, antes de se deslocarem,  cuidaram de pensar em si próprios, nos seus e em todos os que estão ou estarão à sua volta? A julgar pela aparência, não devem ter sido muitos ...

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Escolhas

Enquanto se aguarda que o telefone toque a marcar a hora e o dia da vacina para contrariar a gripe, enquanto se assiste a uma discussão, sobre o Orçamento do Estado, tão agitada que até parece que se analisam certezas, enquanto os números "covidais" não param de subir, liga-se a televisão e ouve-se, a abrir os telejornais, a notícia de que hoje têm lugar as eleições para a direcção do Sport Lisboa e Benfica.

Não há dúvida que sou adepto do maior clube do mundo ... qualquer coisa que por lá aconteça, por mais irrelevante que seja, é notícia de abertura, de meio, de fecho e, sobretudo, de enorme relevo, por dela depender o bem-estar e a felicidade de todos os que por aqui vivem e dos que a diáspora mantém por esse mundo fora.

Se dúvidas houvera, ficaram esclarecidas: o acto eleitoral do Benfica está bem acima das previsões orçamentais, da zanga das "meninas" com o PM, do resultado das eleições dos Açores, ou das restrições que já estão em vigor e das que se aproximam.

Valha-nos S. Luís, S. João ou S. Rui (não sei se existe), porque deles depende o futuro do maravilhoso rectângulo, mais dos que nele vivem.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Livros lidos (ou em vias disso)

Uma língua não tem necessidade de formatação obrigatória e só ganha com a diversidade.

(...) eu sei que muita gente diz que o camarada Jesus vive nos céus e que o paraíso e mesmo o inferno ficam lá em cima, mas para mim, assim de repente a olhar

aquela belezura

como o meu pai gosta de dizer

para mim o paraíso ficava dentro daquela caixa com cheiro de mil chocolates lindos que nem derretiam os formatos de conchas do mar, búzios, caranguejos, cores que imitavam o bolo mármore da tia Maria, creme a fingir que era castanho,  preto a  misturar-se com  um branco cor  de leite com  café e o cheiro também, todos de boca estávamos só com os olhos bem abertos que até o meu pai e a minha mãe riram quando eu a e mana Tchi, a olhar aquela quantidade de cores e cheiros, tivémos que iniciar de bater as palmas como se fosse comício do 1º de maio, e a Yala também nos imitou

- viva os camaradas vizinhos franceses!

eu gritei

- viva! 

todos responderam

- viva essa caixa de chocolate

- viva!

- obrigado, camaradas

eu imitei um camarada que sempre terminava os comícios com essa frase 

quando o pai deu o sinal de largada, depois de brindarmos àquela enorme caixa que tinha aparecido tão bem vinda no nosso natal, eu pensei que fôssemos comer bem rápido até a mãe nos mandar parar para respirar 

aquela caixa era quase de magia, não eram só as cores misturadas e os cheiros lindos; não era só o brilho do laço; o sabor, isso posso já jurar aqui pelo meu avô que tá debaixo da terra, o sabor era uma coisa do outro mundo, mas eu tou a falar de um outro mundo que fica ainda mais em cima do que as alturas do tal paraíso ,(...)

O livro do deslembramento
Ondjaki
Caminho (2020)

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

domingo, 25 de outubro de 2020

Técnica de Vendas

O título deste post era a designação de uma disciplina do meu ensino secundário, já lá vão bem mais de 50 anos. Nela se aprendiam conceitos de atendimento e de relações com os clientes, que deviam ser pautadas por uma linguagem de verdade, lisura de processos e tendo sempre em vista a máxima suprema: a razão de existência de qualquer empresa e, já agora, de qualquer serviço, é a satisfação dos seus clientes, sem peias nem jogos escondidos, e sempre com clareza de procedimentos e intenções.

- Recebi esta carta e não percebo bem isto. Pode ajudar-me?

A cena passou-se numa agência do banco onde, na altura, exercia funções. A senhora, viúva, já com alguma idade, era cliente, recebendo a reduzida reforma através de crédito na sua conta. Mantinha uma excelente relação com todos, por ser vizinha de um dos que lá trabalhavam e a quem conhecia desde menino, como não se cansava de referir. Era extrovertida, gostava de dar novidades - Fulano morreu, Sicrana separou-se - sem complexos nem vergonhas.

- Isto é a informação de que não pagou o cartão de crédito e que tem 10 dias para o fazer, sob pena de mandarem a dívida para cobrança coerciva, via Tribunal.

- Eu não tenho nada disso! Só tenho o vosso cartão, para levantar dinheiro na máquina ou pagar na loja, mas raramente o utilizo. Gosto mais de vir aqui visitá-los.

- ???

A minha cara deve ter sido elucidativa e reavivou-lhe a memória.

- Espera lá! Há talvez dois meses, no supermercado, dois senhores muito simpáticos ofereceram-me um cartão e disseram-me que podia gastar até 500 Euros nas lojas. Fiquei toda contente e, logo ali, comprei uma panela de pressão e um ferro eléctrico, que me deram um jeitão. Depois, comprei umas roupinhas para o Inverno. Também substituí o fogão a gás por um maior e mais moderno. Não cheguei aos 500 Euros, mas faltou pouco! Não me diga que agora tenho de pagar?

- Claro, respondi.

- Mas eles disseram que não tinha de pagar nada ... As lágrimas soltaram-se e a face corou. 

O marketing agressivo produz muitas situações destas. E agora nem rosto tem. Surge, inopinadamente, pelo telefone ou pelas redes ditas sociais, sempre com a "cenoura" ao alcance da mão, sem qualquer dificuldade e só para si, que é uma pessoa especial.

A última que soube foi a de um colchão oferecido, por ter sido "cliente eleito" ... apenas tinha de pagar um seguro de 35 Euros mensais, durante 36 meses. Coisa pouca, para um produto de excelência! E a venda concretizou-se e deve ter somado aos objectivos e às comissões do aldrabão que a promoveu. 

sábado, 24 de outubro de 2020

Quotidiano

Já não acontecia há algum tempo, mas hoje houve futebolada conjunta com os quatro netos. O tempo não ajudou, o jogo não durou os noventa minutos, que o corpo não o permite, mas o dia foi enorme.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Dias ...

Está a terminar mais uma semana e a próxima decreta o final do mês, mais um a caminhar velozmente para o final do ano. Sempre foi assim desde que existe calendário, mas agora parece que se acentuou e dá mais nas vistas.

Não faço ideia (se calhar faço) porque acontece, mas, seguramente, não é pela pressão do trabalho, que não existe, nem pela ansiedade do fim de semana, que não deverá trazer grandes novidades, nem pela urgência de receber o ordenado, que já recebi, o que muitos, se calhar, não conseguem dizer.

Será da idade? Não acredito! O cérebro tem muitas mais coisas com que se preocupar e, digo eu, só tem noção de que os dias passam porque gosta de dormir e, por vezes, há sonhos que não o deixam.

Talvez seja a contradição diária a que somos expostos, com gente a afirmar que o branco é preto e, logo a seguir, exactamente o contrário, sem qualquer rigor nem vergonha.

Descobri agora: as semanas passam depressa, os meses correm e o raio da pandemia permanece, enquanto eu tenho pressa de sair, como dizia o Variações, desta penitência.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Arte urbana

A arte urbana tem mais uma obra na cidade e esta, por várias razões, merece um registo especial.

Homenageia Ferreira da Silva, um grande artista que se destacou, principalmente, na área da cerâmica, com obras por todo o país. Na cidade, não terão merecido o destaque devido e, até, o cuidado obrigatório.

A obra foi concebida e executada por Filipa Morgado, filha do meu amigo Tó Morgado, na parede da que foi a "nossa" Escola, ali bem junto de uma obra monumental do Mestre.

O Mestre Ferreira da Silva, do alto daquela empena, está a olhar, pensativo, para o seu Jardim da Água, que tem muita erva, nenhuma água e pouca atenção de quem dele devia cuidar.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Livros lidos (ou em vias disso)

Está quase no fim o Diccionario da Linguagem das Flores e, como sempre, é o melhor livro de António Lobo Antunes ... até chegar o próximo. 

A forma única de escrever está sempre presente e, neste, cada capítulo é dedicado à descrição de cada uma das personagens em toda a sua vida, com as contradições próprias, o trabalho e os sonhos, os amores e os pensamentos, os caminhos percorridos ou ambicionados, as diferenças, o vestir, as comidas, um retrato claro das diversas etapas, misturadas sempre, clarificadas no fim e sempre com ligação entre cada uma. Até os cisnes do parque têm direito a referência e participação assim como as folhas castanhas que, no chão, anunciam o Outono.  

14. O afinador do piano
(...) o médico a apontar-me análises que eu não entendia

- Ninguém fica cá para semente o que não falta são mortos

descrevendo círculos preocupados em torno de números

- Sobretudo isto aqui e isto aqui

a alojar-me o indicador no peito

- A partir dos sessenta cautela e caldos de galinha mulheres e maratonas nem sonhe

porque cá por dentro a traça não pára de roer, glândulas que coxeiam a custo atrás da saúde, olhando a vida cada vez mais distante

- Respirar meu amigo é um exercício que ajuda

com dificuldade em caminhar atrás do calendário porque este joelho coitado, porque o ar já não entra, só sai, enquanto o irmão da doutora, sem me ver ainda, raspava com a unha molhada na língua não sei quê no casaco, espreitando obliquamente a lapela para a verificar melhor, nunca entendi o motivo de se mirar o universo de esquina quando se quer dar por ele, o irmão da doutora apontou-me com o queixo o lugar ao seu lado continuando a observar a unha numa atenção de prestamista, como a vida é feita de pormenores, senhores, um dente, sempre tão pequeno, afinal gigantesco, um dedo subalterno maior que o pé todo, a casa da sala de música de repente ali mais as estátuas de loiça e os seus sorrisos herméticos, a doutora que caminhava à minha frente puxando a bagagem do próprio corpo cujas rodinhas tremiam, vamos arrastando o que éramos na direcção de nada até nos sumirmos nos bastidores e adeuzinho, o irmão da doutora para mim, a limpar a unha nas calças

- Muito bem muito bem (...)

Diccionario da linguagem das flores
António Lobo Antunes
D. Quixote (2020)

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Todos falam ...

Por o céu vai uma nuvem,
Todos dizem bem na vi,
Todos falam e murmuram,
Ninguém olha para si.
Cancioneiro tradicional de 
S. Jorge - Açores

As polémicas sobre a forma de agir perante a pandemia têm aumentado, nos últimos tempos, tanto ou mais que a própria doença.

De gente a fazer-se ouvir com a veemência de quem sabe, e divulga, o resultado depois do jogo realizado, de outros muito preocupados com a sua privacidade e a sua liberdade mas pouco com a dos outros, de alguns, com responsabilidades no sector da saúde, que gritam e avisam que vai tudo sucumbir por falta de recursos humanos e financeiros, somos inundados a toda a hora, correndo o risco de nos afogarem sem sequer vermos a onda.

Quem sabe, de ciência certa, refere com humildade que ainda se está longe de ter certezas, que os esforços são muitos e os resultados ainda poucos.

Entretanto, os cidadãos interventivos continuam a utilizar as redes ditas sociais para veicular as suas "verdades" e os seus "conhecimentos" profundos sobre o tema, sem cuidar de saber se, com as suas afirmações, não estarão a contribuir para a depressão de muitos, para quem tudo o que aparece é verdade, mesmo as asneiras.

Hoje, para além da máscara, teremos de usar chapéu de chuva ou não sair da casinha. A Protecção Civil manda mensagens a recomendar cuidado, que a depressão é Bárbara.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Quotidiano

O dia começou cedo, com trabalhos de jardinagem que tinham ficado por concluir, por força das circunstâncias e que se tinham tornado urgentes, por as previsões não serem nada animadoras.

O S. Pedro decretou o confinamento e a tarde, como se dizia antigamente, está feita. 

Vamos ler, ouvir o vento e espreitar a chuva. Só para quem pode ...

domingo, 18 de outubro de 2020

Palavras bonitas

 (Lembrança roubada à minha filha)

Horário do fim 

morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento

Raiz de orvalho e outros poemas
Mia Couto
Editorial Caminho (1999)

sábado, 17 de outubro de 2020

Partida

Hoje partiu uma mulher que teve uma vida cheia e a quem uns meros 8 dias negaram um século.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Livros lidos (ou em vias disso)

Concluí ontem a leitura do Apelo da Noite, de Vergílio Ferreira, último livro da "biblioteca itinerante" que o meu amigo ADS fez o favor de enviar da capital para o Oeste. Já o arrumei no saco, verde, claro, (ou não fosse ADS do SCP), onde se juntou aos outros dez que fazem parte do lote disponibilizado. Ficam ali todos, sossegados, a aguardar que o Corona permita viagens sem receios e encontros sem condicionantes. Dar-se-ão bem, sem qualquer dúvida. São de gente importante das letras que, tirando alguns arrufos, se consideram ou toleram.

Nem de propósito, o carteiro, não o que toca sempre duas vezes, mas o que habitualmente vem à minha zona, uma boa zona, diga-se, entregou-me o último livro de António Lobo Antunes que, naturalmente, já comecei a ler. Ultrapassou os que aguardam na "pilha" da secretária, por ter sempre caminho aberto cá em casa, há já muitos anos. Todos compreenderam a urgência e se reduziram à sua insignificância perante quem não tem adjectivo que o qualifique.

Ninguém escreve como António Lobo Antunes. Exige concentração máxima, mas a escrita é irresistível, encadeada, pautada por apontamentos de ligação, recordações, evidências, diálogos simultâneos com o antes e o agora, pensamentos de clarificação, vozes de dentro, sempre uma delícia que se deseja não acabe.

Este começa assim:

"Quando acabei a tropa um colega ruço de olho esquerdo desviado que quase nunca andava conosco, sempre metido em assuntos lá dele, arranjou-me emprego na oficina de automóveis do pai no alto das Pedralvas, uma colina de pobres a norte de Lisboa com casas velhas e barracas e ruazitas estreitas, de modo que aluguei um quarto por ali com direito a banho duas vezes por semana, às terças e sábados, e um janelico para um quintalzinho vedado a tábuas de andaime no qual existia um limoeiro ferrugento onde nunca vi nenhum limão, só vespas desiludidas, inclinado sobre o pedaço de muro em que poisava o cotovelo, a senhoria, sempre de avental e chinelos que a adivinhar pelo tamanho deviam ter pertencido ao marido, evaporado há anos na confusão da cidade que não pára de engolir gente, também com tantas esquinas não admira, só não entendo como é que não nos devora a todos, chamava-me às vezes para uma sopita comida na cozinha minúscula sem olharmos um para o outro, ela no único banco que sobrava e eu encostado ao lava loiça, sob uma lâmpada insegura a pestanejar

(dava-me um piparote, melhorava num soslaio agudo para nós e recomeçava a tremer, que vida difícil têm as coisas sem uma alma caridosa que as ajude)

enquanto um cão ladrava num beco às escuras e calava-se sei lá onde num suspiro comprido em que agonizavam fogareiros, no fim da sopa a senhoria lavava os pratos com uma esponja sumária e fechava-se na salita porque de quando em quando lhe escutava a tosse, puxando pedaços de si mesma até à garganta de modo que os chinelos solitários lá em baixo e ela na alegria aflita de me saber por ali enquanto as acácias das redondezas se calavam uma a uma, mais longe do que os comboios no escuro, dava-me ideia que nas Pedralvas nós apenas, presos um ao outro por um fio de silêncio que apesar de tudo sempre diminuía a solidão, quase apostava que de tempos a tempos vinha espreitar-me a dormir, cobrindo-me um tornozelo com o fim do lençol a reprimir uma festa desajeitada com demasiados dedos que me tropeçavam na pele, deixando-me, depois de se ir embora, mais abandonado ainda, a lembrar-me da minha mãe nas Caldas da Rainha, debruçada para mim a apontar o queixo ao meu pai (...)

Diccionario da linguagem das flores
António Lobo Antunes
D. Quixote 2020

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Calamidade

Face à evolução, preocupante, do número de infectados e de óbitos resultantes desse vírus que nos bateu à porta e entrou sem ser convidado,  o Governo decidiu que o país passasse ao estado de calamidade, a partir das zero horas de hoje, com todas as restrições que isso implica e que já por cá passaram há uns meses.

Decidiu, também, propôr à Assembleia da República, a discussão de um diploma que torne obrigatório o uso de máscara em locais públicos e a instalação e utilização da aplicação Stayaway Covid. 

Estalou a polémica e com toda a razão. Porque "carga de água" se tem de recorrer à obrigação legal, com coimas e polícias a aplicar as ditas, se toda a população portuguesa é dotada de um civismo respeitador das liberdades, dos outros e das regras. Todos aprenderam em pequeninos como se deviam comportar e isso fica para toda a vida ...

Surgiu logo uma infinidade de gente preocupada com a violação da liberdade que o uso obrigatório de máscara pode causar, esquecendo-se que, em primeiro lugar estão as pessoas e a sua saúde, e que a minha liberdade termina quando colide (ou pode colidir) com a dos outros.

Tendo sempre presente o alto grau de civismo que constatamos todos os dias por este país fora, talvez seja de acrescentar à Lei a proibição de cuspir para o chão, de passear o cãozinho e deixar os excrementos para alguém limpar, ou de deitar lixo pela rua fora, incluindo as máscaras.

Lembrei-me destes exemplos mas, se procurar bem, encontrarei outros que poderiam dar excelentes spots televisivos bem mais interessantes do que o lixo de linguagem que, muitas vezes, por lá se ouve com grande destaque.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

FALU

A arte de rua chegou às Caldas e Bordalo II encerrou o festival de arte urbana denominado FALU. O conjunto de obras feitas no âmbito do festival passou a fazer parte do património cultural da cidade e a contribuir, de forma positiva, para a sua imagem.

Poder-se-á dizer que Bordalo voltou à cidade onde ainda tem uma grande e prestigiada fábrica de cerâmica - a Bordalo Pinheiro - , mas desta vez para utilizar materiais reciclados e muita imaginação.

A obra de Bordalo II é, de dia, espectacular. À noite, não me parece tão interessante, com cedências à luz artificial que talvez se dispensassem.

Ao final da manhã de hoje tentei perguntar a opinião ao lobo do "velho" Bordallo, que "vigia" a Praça 5 de Outubro. Irónico, foi lesto na resposta:

- Opinião é coisa que não tenhoO homónimo do meu criador colocou a obra tão longe e tão escondida que, daqui, nem a consigo ver quanto mais apreciar. Se me deixassem dar uma voltinha por aí, mas não, confinaram-me e não me autorizam sequer que desça daqui.


terça-feira, 13 de outubro de 2020

Coronavírus

Hoje não me apetece escrever, ou melhor, não me apetece fazer nada. Há dias assim, para quem pode ... e eu posso!

Escrever para quê? E porquê? E sobre?

Bom, à primeira pergunta a resposta é simples: para mim! Dá-me gozo, mas hoje a disposição não é grande.

Afiei o lápis (gosto de escrever com lápis bem afiado), peguei no papel, reutilizando aquele que só está escrito de um dos lados, e parei. Não com a perturbação da página em branco que só os grandes têm, mas com o cérebro parado pela falta de assunto, com tantos assuntos na primeira linha. Paradoxo!

Apenas uma nota para memória futura: o vírus não tem contemplações e infectou um terceiro elemento na selecção nacional de futebol. Amanhã há jogo com a Suécia e Cristiano Ronaldo, tal como aconteceu com José Fonte e Anthony Lopes, não irá jogar.

De acordo com os testes de hoje, todos os outros elementos estão negativos. Amanhã lá estarão todos e, entre eles, o meu filho, que fez "apenas" seis testes desde o início deste estágio, em nove dias.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Mais de mil

Sempre tive uma relação ambivalente com o número mil, talvez por três zeros, mesmo à direita, trazerem à lembrança os "zeros à esquerda" que por aí pululam. 

Recordo, na minha infância, um caderno de problemas de matemática chamado 1111. Continha, como o próprio nome indica, 1111 problemas para resolver, os quais, na opinião de quem mo emprestou, eram essenciais para enfrentar o exame de admissão. Lembro-me, também, da Lenda de El-Rei D. Sebastião, criada pelo Quarteto 1111, cantada por todos os jovens daquela época e algumas vezes com letra adaptada a circunstâncias outras, que não vêm agora à colação. A memória também me diz que, no início da vida laboral, ganhar mais de mil escudos mensais não era para todos, quando a grande maioria ainda ganhava à semana e muitos só nos dias em que o tempo deixava trabalhar. Mais tarde, quando chegou o Euro, ter um ordenado superior a mil dos ditos também não estava ao alcance de qualquer um.

Os carros iam à primeira revisão quando atingiam os mil quilómetros, sabendo-se que só a partir dessa ida ao mecânico se podia acelerar, sem limites que não os policiais. Percorrer mais de mil quilómetros era quase como ir ao infinito, quando para ir ao Porto era preciso um dia bem comprido e a distância eram só duzentos e cinquenta. E o mil-folhas era um bolo de que eu gostava muito, mas que o estômago hoje detesta.

Agora há mil razões para estar preocupado por, há cinco dias seguidos, (e mais virão), o número de infectados com este malfadado vírus, que nos veio visitar sem convite, ultrapassar (e muito) os mil ... e pôr o velho no covil.

domingo, 11 de outubro de 2020

Quotidiano

Mais velho que eu, demorou a reformar-se, saindo apenas aos setenta, quando já não lhe era permitido continuar. Há uns anos disse-me achar-se a ser "empurrado", mas não sairia.

- Sinto-me bem. Não lhes faço a vontade. E depois, o que vou fazer?

(R)Encontrei-o hoje, com algumas dificuldades de locomoção, um olhar meio triste apesar de a paisagem  estar belíssima. De máscara colocada, tivemos um breve diálogo, que a caminhada era para ser feita.

- Então como vai? Dá-se bem com a nova situação?

- Eu ainda trabalho, replicou de pronto. Não lá, é óbvio. Dedico-me à consultoria, de segunda a quinta. Só regresso ao casal à sexta-feira.

Mudei de assunto. O tempo está óptimo, a lagoa uma maravilha, não há vento, nem parece Outono, está com um excelente aspecto, e mais uma série de lugares comuns, trocados para "encher chouriços".

- Bom, vou andando. Os meus companheiros de caminhada já vão longe e não esperam pelo "velho". Prazer em vê-lo e até um domingo destes. Ao domingo de manhã, ando sempre por aqui.

E lá fui fazer a caminhada, que também posso fazer de segunda a sábado, "consultando" os astros para ver se chove ... 

sábado, 10 de outubro de 2020

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Aprender sempre

Quase todos os dias me lembro de uma frase que ouvi, várias vezes, a um professor de há muitos anos, chamado Dragomir Knapic, natural da ex-Jugoslávia e refugiado em Portugal desde a 2ª. Guerra Mundial. Já deve ter partido há muito, porque, há mais de 40 anos, já não era jovem. Já por aqui falei nele e cada dia que passa vou confirmando quão verdadeira é a frase "quanto mais sei, maior é a minha ignorância". 

O meu amigo ADS presenteia-me, muitas vezes, utilizando esse novo modelo de carta sem envelope que se chama mail, com curiosidades, fotos, filmes, músicas. novidades, etc.. Hoje enviou-me um vídeo de uma canção napolitana, que ouvi pela primeira vez num "cartucho" na voz de Mário Lanza e que Luciano Pavarotti levou aos quatro cantos do mundo. Até aqui, nada de novo. Ó Sole Mio deve ser das músicas mais conhecidas em todo o mundo. Todavia, esta trazia um instrumento para mim novo e que, afinal, já é centenário.

Chama-se THEREMIN e é tocado sem ser tocado!

Fui à "central do esclarecimento" chamada Google e encontrei muitos tópicos para esclarecer a minha ignorância e uma "aula" oferecida pela Antena 3, que pode ser vista e ouvida aqui. Procurei, também, saber alguma coisa sobre a intérprete do Theremin que o vídeo mostrava e a "central" do costume esclareceu-me que KATICA ILLÉNYI é uma violinista, cantora, bailarina e tocadora de Theremin, nascida na Hungria em 1968.

Deixo o acesso ao Ó Sole Mio, que pode ser ouvido utilizando este link e, para demonstrar que há Theremin em muitos sítios (agora já sei!), a área da ópera cómica Gianni Schicci, de Puccini, O Mio Babbino Caro.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Memória

As memórias da infância e juventude são hoje bem mais claras do que aquilo que fiz de manhã. De acordo com o que dizem os estudiosos, é normal que o "computador" pessoal despreze o que aconteceu há pouco e privilegie aquilo que tem anos esquecidos, já não tem jeito nenhum, poucos se lembram e, para a grande maioria, é uma estucha perfeitamente dispensável. Também diz quem sabe que é comum fazer ligações entre o que acontece no momento e coisas passadas e arrumadas.

O Prémio Nobel da Literatura de 2020 foi hoje atribuído a uma poeta americana - LOUISE GLUCK - que não conhecia e continuo a não conhecer, por nunca ter lido nada por ela escrito. Talvez por ter sido escolhida a poesia, veio-me à memória, não a frase batida do Sérgio Godinho, mas a Balada da Neve, de Augusto Gil, que decorei há muitos, muitos anos e ainda permanece, vejam só, na primeira "gaveta do arquivo" memorial. E, diga-se de passagem, nesse tempo eu mal sabia o que era nevar e nunca tinha visto sequer uns farrapitos ...

BALADA DA NEVE

Batem leve, levemente,
Como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia 
dos pinheiros do caminho ...
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza, 
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía 
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria ...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho ...
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança ...
E descalcinhos, doridos ...
a neve deixa ainda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza
e cai no meu coração.

Augusto Gil (1873-1929)

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Quotidiano

Já não íamos ao cinema, ou a qualquer outro espectáculo, há mais de seis meses. A vinda do filme "O ano da morte de Ricardo Reis", de João Botelho, a uma das salas do La Vie, decidiu-nos. Tínhamos lido o livro, tínhamos visto a peça de teatro, fantástica, encenada para A Barraca por Hélder Martins da Costa, era imperioso não faltar ao filme.

- Vamos na terça-feira, à sessão da tarde. Não deve haver muita gente, depois do feriado.

A sessão começava às seis e vinte mas, à cautela, às cinco horas estávamos na bilheteira. A sala é pequena e, com as restrições existentes, a lotação deveria ser de apenas metade da normal. Preocupações de idoso ...

- Não vêm cá desde que começou a pandemia, certo?

- Sim!?

- Nós agora não temos lugares marcados. Pedimos às pessoas que deixem uma ou duas cadeiras vagas, atrás e ao lado. E também não temos intervalo, para evitar que as pessoas se juntem.

- Está bem. E já venderam muitos bilhetes?

- São os senhores os primeiros.

A pressa, afinal, não tinha qualquer justificação. Efectuado o pagamento, com desconto sénior, fomos passear pelo centro comercial, para "matar" o tempo. Montras, uma exposição de arte africana, uma visita à Bertrand a espreitar as novidades,

- Não vais comprar livros agora ...

e lá subimos ao terceiro andar, quando faltava um quarto de hora para o início da sessão. A menina da bilheteira, simpática, veio ter connosco.

- Se quiserem, podem entrar. A sala já está higienizada e estão melhor sentados.

Agradecemos a preocupação e lá fomos. 

Sessão exclusiva! Nem sequer um outro espectador! A sessão foi igual à que seria se a lotação estivesse esgotada: houve publicidade, os thriller e, finalmente, surgiram as imagens a preto e branco, com uma música de fundo muito agradável. 

Já tinha decorrido mais de hora e meia. Concentrado nas imagens, nos diálogos e nos surgimentos do Pessoa, morto mas dialogante, mal ouvi o sussurro:

- Parece-me que deixei o fogão ligado ...

Não valia a pena pedir ao Pessoa para ir lá verificar. Estava ocupado com os amores do Ricardo Reis, confinado ao ecran e dali não saía. Arriscar era perigoso. E se fosse verdade?

A sala ficou apenas com as cadeiras, mas o filme deve ter chegado ao fim, pró boneco. O trânsito ainda fez perder algum tempo, com um passeante que estorvava, outro que circulava a dez à hora, mas nem cinco minutos depois os portões abriram-se.

- Que sorte! Está tudo esturricado, mas o tacho aguentou-se.

As ervilhas tinham-se transformado em bolinhas negras, mais parecendo chumbo para caça grossa. O cheiro era forte.

O resto do filme ficará para quando a televisão o transmitir.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Ontem e hoje

Ontem, a propósito de uma reportagem que vi num dos canais de televisão, lembrei-me de uma história contada pelo meu pai, que se teria passado no quartel das Caldas, quando este ainda estava nos pavilhões do Parque.

Contava ele que, num dia de prevenção rigorosa, em plena II Grande Guerra, estava de sentinela um soldado novo, a quem teriam sido dadas instruções rigorosas para não deixar entrar ninguém que não se apresentasse devidamente fardado.

- Não entras.

- Mas eu sou o comandante!

- Quero lá saber que sejas o comandante. Se queres entrar vai vestir-te ao menos à sargento!

A história serve apenas para enquadrar uma conversa (mais uma) que o Presidente da República teve com jornalistas, na qual explicava os incómodos causados por António Lobo Xavier ter testado positivo ao coronavírus, após a reunião do Conselho de Estado. E prosseguia, informando que tinha sido possível testar rapidamente todos os Conselheiros e garantindo que não havia ninguém infectado, incluindo a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que tinha estado presente na reunião.

E foi então que, do grupo de jornalistas, um infiltrado, de microfone na mão, perguntou:

- Você também foi privilegiado nisto?

Não se acredita mas, tal como no soldado, não basta dizer que se é e ter um microfone na mão. 

Se quer participar nas conferências, aprenda, ao menos, como se deve dirigir ao Presidente da República.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

República

Comemoram-se hoje 110 anos do dia em que José Relvas proclamou a República, da varanda da Câmara Municipal de Lisboa.

A República, essa, não festeja o seu centésimo décimo aniversário, por ter sido forçada a uma hibernação, ou confinamento, de 48 anos e mais quase um mês. 

Neste período, esteve fechada a sete chaves, guardada pelos defensores da "lei e da ordem", comandados pelo "chefe supremo" que, "a bem da nação, dirigia tudo isto com mão de ferro, acolitado por muitos "olhos e ouvidos" que, ao que parece, estão a ressuscitar, saudosos desses tempos de "progresso e paz".

Viva a REPÚBLICA!

domingo, 4 de outubro de 2020

Memória

A minha irmã diz que eu sabia de cor este texto e que o teria decorado ainda antes de ir para a escola, ao lê-lo na sua companhia. 
Lembro-me bem dos bois do Jeirinhas mas claro que já não recordo o texto, se é que alguma vez o soube, como garante a minha mana, que não é mentirosa.
A Internet, que tem muitos defeitos, também é muito útil em algumas situações. E esta foi uma delas: como não tenho o livro da terceira classe - acho que era nesse que vinha - não havia sítio nenhum onde o encontrasse em letra de forma. "Googlei" e ei-lo, com ilustração e tudo:

OS BOIS TEIMOSOS

Tinha-se acabado a poda. As vides já estavam quase todas atadas em feixes, e era preciso levá-las para o pátio da casa porque a falta de lenha para o lume era grande por aqueles sítios, e podiam roubá-las de noite. O dono da vinha, que não podia largar a gente do serviço para ir buscar o carro, disse para o Manuel Jeirinhas, um rapazote dos seus catorze anos:

- Ó Jeirinhas, tu és capaz de ir a casa e meter os bois ao carro?

- Ora essa, patrão! Então não havia de ser? Pois já se vê que sou! 

- Então vai a casa num pulo, e traz o carro para levarmos as vides. Mas não te demores, que é quase noite. 

O moço  partiu a correr, muito contente com aquela prova de confiança que lhe dava seu amo. Chegou a casa, e foi um instante enquanto apôs os bois ao carro. Depois de tudo pronto, começou a chamá-los de aguilhada no ar; mas, com grande admiração sua, os bois não andavam! Passou a chamá-los pelos seus nomes, a ameaçá-los com a aguilhada, mas, qual história! - os animais não levantavam os canelos do chão. Entrou de praguejá-los em altos berros, de picá-los com o ferrão, e eles torciam-se, abanavam a cabeça, mas lá andar para a frente é que não havia meio.

O Jeirinhas, muito descoroçoado, começou a dizer mal da sua vida:

- Mas que teima será esta dos bois, que não querem andar? E o patrão que logo me recomendou que viesse num pulo! Como há-de ser isto agora?

De repente, teve uma inspiração:

- Já sei! Isto não é senão coisa de bruxedo!

Levantou-se de um salto, deitou a fralda da camisa para fora, e foi-se à cabeça dos bois, zurra-que-zurra, zurra-caturra, a esfregá-la com quanta força tinha, porque ouvira dizer que era aquilo remédio infalível para o mau olhado ...

Depois daquele trabalho todo, tornou a chamar os bois e a puxar por eles: mas nada! Se teimosos estavam antes, mais teimosos ficaram depois! O rapaz desanimou então de todo, e começou a chorar:

- Agora o patrão, se calhar, há-de dizer que eu dei cabo dos bois! Valha-me Deus Nosso Senhor!

Nisto, pôs-se a olhar muito sério para os bois, e disse: 

- Espera lá ... Este boi parece que puxava do outro lado ... E se eu trocasse os bois? ...

Dito e feito. Tirou os bois: mudou o da direita para a esquerda e o da esquerda para a direita, e tornou a apô-los ao carro. Os animais, assim que se viram nos lugares a que estavam acostumados, ó pernas para que vos quero! meteram por ali fora que foi um regalo!

O Jeirinhas compreendeu então que ele é que tinha embruxado os bois.

 

sábado, 3 de outubro de 2020

Memória

Ontem, por força de um vídeo enviado, lembrei-me do jogo do pião e recordei-o, sozinho, no quintal cá de casa. Hoje, à custa de ter lido que "um corvo crocitava no alto de uma bela árvore", recordei-me da fala dos animais, que aprendi na primária. Já não recordava o autor nem me lembro de o seu nome ser referido, mas descobri tratar-se de um poeta que viveu entre 1839 e 1896 e se chamava Pedro Diniz.

A memória, velha, tem destas coisas.

VOZES DOS ANIMAIS

Palram pega e papagaio                           Muge a vaca, berra o touro;          
E cacareja a galinha;                                 Grasna a rã; ruge o leão;               
Os ternos pombos arrulham;                   O gato mia; uiva o lobo;               
Geme a rola inocentinha.                         Também uiva e ladra o cão.          

Relincha o nobre cavalo;                          Regouga a sagaz raposa;
Os elefantes dão urros;                             (Bichinho muito matreiro)
A tímida ovelha bale;                                Nos ramos cantam as aves;
Zurrar é próprio dos burros.                     Mas pia o mocho agoureiro.

Sabem as aves ligeiras                              O pardal, daninho aos campos,
O canto seu variar;                                    Não aprendeu a cantar;
Fazem às vezes gorjeios,                          Como os ratos e as doninhas,
Às vezes põem-se a chilrar.                      Apenas sabe chiar.

O negro corvo crocita;                             Chia a lebre; grasna o pato;           
Zune o mosquito enfadonho;                  Ouvem-se os porcos grunhir;        
A serpente no deserto                              Libando o suco das flores,            
Solta assobio medonho.                           Costuma a abelha zumbir.             

Bramam os tigres, as onças;                    A vitelinha dá berros;                          
Pia, pia o pintainho;                                 O cordeirinho, balidos:                        
Cucurica e canta o galo;                           O macaquinho dá guinchos;                
Late e gane o cachorrinho.                      A criancinha, vagidos.                       
                                                             
A fala foi dada ao homem, 
Rei dos outros animais.
Nos versos lidos acima,
Se encontram, em pobre rima,
As vozes dos principais.