terça-feira, 31 de maio de 2022

Ressonar

Raro era o dia em que os olhos não evidenciavam a noite mal dormida. Vermelhos, enormes, quase a saltarem das órbitas, punham a nu a necessidade de permanecer acordado até tarde e a ausência da devida compensação matutina. Afinal de contas, uma noite ainda se aguenta, duas já é muito difícil, três é quase impossível.

Em teoria, vivia sozinho e não tinha como meta procurar companhia definitiva. Já estava perto dos quarenta, usava barbas enormes por achar ser um desperdício de tempo cortá-las pela manhã. Sempre eram mais cinco minutos de preguicite ... Na maior parte dos dias, a gravata vinha no bolso, enrolada, e só era colocada já no local de trabalho, numa ida estratégica à casa de banho, antes que o chefe se apercebesse da falta do apêndice obrigatório.

O desleixo no vestir era visível. Muitas vezes as colegas chamavam-lhe a atenção para a camisa mal abotoada, as calças enrodilhadas ou mesmo sujas, o cinto torcido, as meias do avesso, os sapatos diferentes. Se era possível, naquele dia vinha ainda pior. A noite devia ter sido muito comprida e talvez, até, tempestuosa.

- Não dormiste?

- Tive companhia. Ainda por lá deve estar. Não arranjou poiso por aqui e ofereci-lhe "alojamento". No pouco tempo que ficou para dormir alguma coisa, ressonou. Nunca me tinha acontecido e olha que eu levo alguma experiência. Imagina! Até eu, com o sono que sempre tenho, não consegui dormir ...

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Raposas

- Cá em casa não entram raposas ...

O aviso era referido com solenidade, chamando a atenção para a necessidade de se ser bom aluno, que a vida não estava para brincadeiras. Felizmente, confirmou-se: lá em casa nunca entraram raposas, a não ser na gola de uma samarra que fez as delícias da juventude, de tão quentinha que era. Nesta altura, esta aleivosia não deve ser pensada quanto mais escrita. Safo-me porque pouca gente lê isto e a senhora do PAN tem muito mais que fazer do que perder tempo com conversas e estórias de velhos. Ainda por cima, já quase ninguém usa samarras e muitos haverá que nem sabem o que é! (Vão ver à Net ou perguntem no Face).

O meu amigo ADS, eclético fotógrafo "encartado", reconhecido na capital e no estrangeiro, com raízes bem vincadas nessa enorme terra do concelho de Góis que dá pelo nome de Colmeal (por lá produz-se mel excelente) envia-me com regularidade fotografias que vai fazendo, nas viagens, nas paisagens citadinas ou campestres, nos ninhos dos borrachos ou das rolas, as quais vou guardando no arquivo virtual que tem uma capacidade inesgotável. Noutros tempos seriam guardadas em álbuns e consultadas apenas "quando o rei fazia anos" e já se apresentavam amarelecidas. Agora, com as facilidades trazidas pelo arquivo tecnológico, passo por lá e revejo-as sempre com agrado. 

Hoje, esta fez recordar, não faço ideia porquê, a raposa dos tempos escolares e "obrigou-me" a ir ler a sua história aqui, num belo texto da autoria de Lisete Matos, publicado no blog da UPFC em Março de 2021. Para cúmulo, o belo texto está ilustrado por magníficas fotografias. Vale a pena "ganhar" cinco minutos a ler e a apreciar como a raposa, tantas vezes injustiçada, é, afinal, tão sociável.

domingo, 29 de maio de 2022

Enxertia

Pró enxerto ter futuro
E atingir a qualidade,
O vinho tem de ser puro,
Bom, e em quantidade.

A enxertia, na vinha, era uma actividade complexa e difícil de arranjar quem a executasse a contento. Havia poucos enxertadores e, para além de serem bem pagos, era necessário reservar a sua contratação com muita antecedência. Toda a gente queria o trabalho para a mesma altura e não era possível atender a todos. 

O bacelo, Richter de preferência que era o que melhor se adaptava ao clima da região, era plantado num ano e só no seguinte recebia a enxertia com a casta pretendida, fosse ela Moscatel, Fernão Pires, Trincadeiro, Malvasia ou outra qualquer. A equipa de enxertadores era constituída, normalmente, por quatro trabalhadores que se iam revezando na preparação dos garfos, no corte do bacelo, na incisão do mesmo e na finalização com a atadura de junco. Apenas a preparação dos garfos era feita em posição normal, enquanto as outras exigiam o andar curvado bem lá em baixo, junto à terra. Daí a rotação ser fundamental, para que houvesse algum descanso do trabalho mais duro e as tarefas corressem melhor. Ao tempo não havia hérnias discais. Quando muito, doíam os "quadrizes".

As navalhas utilizadas estavam sempre bem afiadas e eram autênticas lâminas. O garfo era aparado de um lado e do outro, com uma delicadeza digna de registo, e iria entrar na incisão do bacelo, bem juntinho, para que a seiva se começasse a misturar de imediato. Dizia-se que o garfo tinha de ser bem molhado na boca do enxertador e que, nela, deveria sempre existir uma pinga de vinho bom. Era a garantia para que a enxertia pegasse.

O junco atava de forma bem forte a junção, havia quem pintasse com cal branca ou alcatrão, e, se tudo corresse bem, a cepa daria um cachito no ano seguinte e iniciaria o seu período fértil por muitos e bons anos. Se corresse mal, o cacho que surgiria era "americano" e o bacelo seria retanchado. Ao fim de dois ou três anos já não se notaria que o retanchado era mais novo do que os outros.

Agora, o bacelo já é enraizado com a enxertia feita e sai direitinho para a vinha. A avaliar pelo que se vê por aí, há muita procura e o negócio floresce.

sábado, 28 de maio de 2022

E o papel?

Ler jornais é saber mais! Será? A cada dia que passa menos gente lê jornais e mesmo aqueles que dizem que lêem, a maior parte apenas lhe passa os olhos, em diagonal. Metade das notícias já estão ultrapassadas, a outra metade caminha vertiginosamente para essa situação e as redes sociais já fizeram os comentários, desmentidos e actualizações. Os canais de televisão encarregaram-se de repisar tudo e mais um par de botas, acrescentando pormenores e conclusões.

Os jornais de referência (o que será isto?) mantêm informação online, actualizando-a ao minuto e tornando dispensável e ultrapassada a edição em papel. Só alguns teimosos, com tendência para acabar, insistem no hábito de comprar jornais como antigamente. E, apesar disso, estou convicto que a grande maioria desses teimosos, eu incluído, também já faz a tal leitura na diagonal, que o tempo é cada vez mais curto e o que era, já foi.

Será bom? Será mau? Não vale a pena perder muito tempo com a dúvida nem julgar que eu estou certo (no meu tempo é que era bom) e todos os outros, principalmente esses novatos que não percebem nada da vida, estão errados. O desfile militar em que toda a gente segue com o passo trocado e um só - eu, claro - marcha com o passo certo, é a alegoria que clarifica a resistência à mudança e a (in)capacidade de entender que a experiência dos anos, não sendo de desprezar, não actualiza nem desenvolve, e contribui pouco ou nada para que o amanhã seja diferente.

E se chove? ... ouve-se o Kissinger que, do alto dos seus 99 anos, tem a solução mágica para a guerra da Ucrânia.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Antigamente ...

Há 35 anos, em Viena, num estádio que já não existe, um jovem de 35 anos (coincidência) que nem sequer era ou é adepto do Futebol Clube do Porto, assistiu, deliciado, à vitória na final da Taça dos Campeões Europeus de futebol, perante o fortíssimo Bayern de Munique. 

O FCP, depois de ter estado a perder por 1-0, deu a volta ao resultado com um golo de calcanhar marcado por Madjer e ainda hoje, tantos anos passados, recordado pela alegria que deu às centenas de portugueses que estavam presentes, com o estádio quase cheio de alemães. Antes do jogo era visível a confiança dos adeptos do Bayern, completamente perdida assim que Juary marcou o segundo e deu a brilhante vitória à equipa treinada por Artur Jorge. Pinto da Costa já comandava os destinos do FCP.

Foi uma viagem inesquecível, com mais de 6.000 quilómetros percorridos por vários países da Europa, alguns dos quais já não existem. Hoje não teria coragem para repetir tal aventura, apenas e só porque tantos quilómetros deixariam uma pegada ecológica enorme ...

Só recordar isto deixa algum cansaço e talvez seja conveniente uma pausa para descanso. A ver vamos como se apresenta o dia de amanhã ...

quinta-feira, 26 de maio de 2022

ESPIGA

O serviço militar obrigatório implicava, na recruta, andar sempre fardado na rua, mesmo para quem tinha o privilégio de estar desarranchado, como era o caso deste escrevinhador, aquando da permanência, curta, no R.I.5.

A folha de cálculo do Excel ajudou-me a verificar que o Dia da Espiga, em 1973, foi a 31 de Maio, quarenta dias após o Domingo de Páscoa, como está determinado na "legislação" que regula estas datas festivas, seguramente muito mais antiga do que aquela que autoriza, nos USA, a venda indiscriminada de armas a qualquer pessoa. Enfim ... depois fazem memoriais a lembrar as vítimas.

Já não recordo os pormenores, mas lembro-me de ter combinado, com três camaradas do pelotão, a ida à Festa da Espiga que, na época, se realizava na Lagoa Parceira e era muito concorrida. A aldeia era relativamente perto da cidade. Hoje está quase ligada.

Fui a casa jantar, desfardei-me e, no velhinho Opel Olympia, lá fomos todos para a bailação da espiga. Os camaradas eram de longe, um de Mirandela, desse lembro-me, Preto de apelido, e os outros também eram da mesma zona, mas já não recordo de onde. Desde que o suplício tinha começado, a 26 de Abril, nenhum deles tinha ido a casa. Na época, de Bragança a Lisboa eram mesmo nove horas de distância, como cantaram os Xutos muitos anos depois. 

Dos quatro, apenas o condutor estava à civil, dando nas vistas pelo cabelo curtinho quando toda a juventude o usava bem comprido e por, nos intervalos das danças - esta série terminou, podem descansar - fazer companhia aos instruendos fardados. Era fácil deduzir que só lhe faltava a farda ...

O Jeep chegou, parou junto à festa e os quatro militares, com a braçadeira PM na manga e o capacete com a mesma indicação (não usavam boina em serviço) passaram os olhos pelas gentes que bailavam. Os instruendos ajeitaram a fatiota, colocaram a boina que estava no bolso e pararam a dança, pedindo desculpa ao par pelo incómodo, forçado pela presença indesejável dos "fiscais". O civil preparou-se para "bater a asa", pela "esquerda baixa". Deu a chave do "bólide" ao único que tinha carta, combinou o local de encontro na cidade e, "ala, que se faz tarde". Por atalhos e carreiros, campos e lameiros, foi num instante que chegou à cidade. Belos tempos, quando correr era fácil, mesmo por becos e vielas.

O carro, com os ocupantes bem uniformizados, chegou daí a algum tempo e sem quaisquer problemas. Os homens do jeep apenas tinham verificado as dispensas do recolher e mandado sair dali de imediato. Os três regressaram ao quartel, na entrada das 23 horas. O outro, felizardo, dormiu em casa. Voltou às sete da matina, como era costume quando não havia instrução nocturna. 

Nessa noite de Espiga até as papoilas murcharam ...

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Palavras bonitas

BALADA DA AMEIXA SECA

Vai à mercearia e compra ameixa seca.
P'ra o intestino a ameixa é levada da breca!

O mal do Ocidente - quem há que não o sinta? -
é não ter a tripa sempre limpa.

Com seus altos valores, o Ocidente
dá por demais ao dente, dá por demais ao dente.

Põe-me os olhos nos povos que só comem arroz:
dão melhores guerrilheiros do que nós.

Um saquitel de arroz, uma biciclet',
arma na bandoleira - e lá vai o viet.

<<Noss'povo>>, ao contrário, come o que apanha à mão.
Até parece fome de muita geração!

E larga, já comido, o corpo em qualquer canto.
Sonha Terceiro Mundo e é Europa, entretanto.

Encostado ao sobreiro ou ao ficheiro,
<<Noss'povo>> já nada tem de marinheiro.

Sua tripa, represa, é trabalhosa.
Sua prosápia já só é má prosa.

Portugal-do-casqueiro à Europa-das-latas
manda cortiça, vinho, diplomatas.

Espera contrapartidas: sol-e-vistas
é cartaz que atrai muitos turistas.

Mas com ameixa seca - coisa pouca! -
é que pode acordar sem amargos de boca.

Vai à mercearia e compra ameixa seca.
P'ra o intestino a ameixa é levada da breca!

Tomai lá do O'Neill
Alexandre O'Neill
Círculo de Leitores (1986)

terça-feira, 24 de maio de 2022

Contas trimestrais

Três meses são passados e "tudo como dantes, quartel-general em Abrantes". A guerra entrou na rotina dos noticiários e de todos nós, sem que se vislumbrem sinais de o seu fim estar próximo.

Comentários daqui, opiniões de acolá, certezas hoje, negações amanhã, cálculos sobre baixas e destruições, propaganda para consumidor externo ou interno, tanto faz. Tudo marcha ao som das trombetas de novos avanços, recuperações, tomadas.

Na certa, haverá muita gente a ganhar com as descargas mortíferas de qualquer dos lados, os mísseis de uns terão mais pontaria que os dos outros, os soldados de um lado serão mais corajosos nas trincheiras, os do outro mais afoitos nos caminhos, uns são assim, outros assado.

Os grandes tratadistas de "economês" fazem previsões, de ciência certa, como sempre, sobre o que vai acontecer ao PIB, à inflação e aos juros, e de como o mundo (leia-se, o Zé) vai sofrer as consequências.

Os que ouvem os mísseis, sentem as balas por cima, vêem as suas casas, e as suas vidas, destruídas, pensarão:

- Que mal fiz eu?

Faz parte da história. Sempre foi assim, sentenciarão os sábios que tudo dominam.

- Ainda não estão reunidas condições para se iniciarem as conversas para a paz. Lá chegaremos, sem pressas ...

Por aqui, vamos estando bem. Até vamos ser beneficiários líquidos, como bem disse o nosso Marcelo, que sabe disto a potes, é uma inteligência superior e tem muita dificuldade em estar calado.

Valha-nos a Pedra Filosofal, de António Gedeão, cantada por Manuel Freire, garantindo que:

... sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança ...

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Sinas

Por muito mal que estejas, ali ao lado há sempre quem esteja pior.

Está por cá há vinte anos. Tinha chegado há pouco quando a conheci a procurar trabalho. Foi admitida na Associação que era (e é) a minha e por lá se mantém ainda. Nasceu na Ucrânia, tem o filho na guerra e dois netos e a nora refugiados na Polónia. 

Atingiu, recentemente, a idade da reforma. Foi à Segurança Social saber quanto lhe caberia e começou a fazer planos para o regresso ao convívio dos seus. A parca pensão que lhe informaram ir ser atribuída chegaria para viver lá com alguma dignidade. A guerra alterou todos os planos e trouxe sofrimento, muito, visível no acabrunhamento que mantém sempre. Para cúmulo, a carta que recebeu referia um valor de menos de metade do que lhe havia sido indicado. 

- Não percebe nada. Ajude mim, favor.

Tentei esclarecer e não foi fácil. Apesar dos anos, o vocabulário é curto e "provisória" era uma palavra desconhecida. A pensão é provisória até chegar um documento do seu país de origem, que permitirá o cálculo da pensão definitiva. Quando? Ninguém sabe.

Uma segunda carta informa que, daquele valor que é provisório, ainda lhe vão descontar, em seis prestações, uma verba que o Fundo de Desemprego lhe terá pago a mais. Ainda foi mais difícil de explicar. 

- Fui lá quando não pagaram ordenado. Passei fome. Comi pão duro com água muitos dias.

A Segurança Social só atende por marcação. Vou acompanhá-la lá, no início de Junho, sem grande esperança de conseguir solução. Se calhar, nem me deixam entrar!

domingo, 22 de maio de 2022

Milagre

O pão não se transformou em rosas, mas o milagre aconteceu na mesma. O Oeste, provinciano, recebeu rosas da capital (não capitalistas) que, vê-se logo, são de qualidade superior. Lisboa foi bafejada pela sorte. Por lá tudo é bom e bonito. E deve viver-se muito bem: se faltarem moedas, é só ir à Câmara!

Noutros tempos, a fotografia era tirada e havia que esperar até se tirarem outras. O rolo, de 12 ou 24, só ia para revelação quando estava completamente utilizado. Depois, bem depois era levá-lo à loja (havia uma, no início da Rua do Ouro, do lado direito de quem desce, onde trabalhava uma menina de Alcobaça) e aguardar que a revelação fosse efectuada e o envelope as trouxesse todas. Por vezes, nos mais amadores, acontecia que algumas ficavam estragadas, mas tinham de ser pagas na mesma. Agora é tudo num instante e à borla. 

O meu amigo ADS fotografou umas rosas "alfacinhas", "roubadas" nos jardins da zona onde fica o estádio do (outrora) "Glorioso" e zás, mail com elas, e eis que chegam, no mesmo instante em que "embarcam". Modernices ...






sexta-feira, 20 de maio de 2022

Miscelânea

E se, de repente, o tempo parasse? E alguém coligisse todo o nosso passado e o deixasse parado, sem qualquer hipótese de se emendar, burilar, substituir, omitir, clarificar? Devia ser uma frustação enorme, com muita gente a desesperar pela chegada do dia de amanhã, implorando a santos e santinhos para que isso acontecesse de forma rápida e, se possível, de noite. Apesar de não suceder e os dias passarem inexoravelmente uns a seguir aos outros, há pessoas que não se apercebem disso e continuam a viver, a pensar e a falar como se os automóveis ainda tivessem só três velocidades e a caixa das mesmas não fosse sincronizada.

Por força das Festas da Cidade, esta semana teve o seu início no domingo, com uma excelente participação dos habitantes e também de bastantes forasteiros que nos visitam regularmente e aproveitaram a circunstância para se familiarizarem com o que acontece por cá e com o pouco que vai mudando. Há muitos, muitos anos, a "boca pequena" dizia que eram as "festas do pau caiado", numa referência às bandeiras que eram empoleiradas nas varolas de eucaliptos caiadas de branco. Os pontos altos dessa época eram a abertura do Hospital Termal, a romagem à Rainha das gentes importantes, o desfile musicado dos Bombeiros e a largada de pombos. Desta vez, não houve o habitual concerto que sacudia os tímpanos e obrigava a um esforço grande das cordas vocais, mas aconteceram muitas e variadas organizações, numa tentativa, parece-me que conseguida, de agradar a muita gente. Nas cerimónias oficiais, o actual Presidente da Câmara criticou os antecessores de forma clara e objectiva, e caiu o "Carmo e a Trindade", com muita gente a achar que o momento era de salamaleques e de omissões. Talvez o fim de semana lhes proporcione um bom mergulho na Foz e a água fria lhes lave os neurónios.

Mas há mais vida para além das Caldas. Nesta semana, soubemos que o Primeiro-Ministro irá deslocar-se à Ucrânia, expressando a solidariedade de Portugal para com o país devastado pela invasão russa. A notícia não foi dada pela Agência Lusa, talvez ainda não refeita do ataque informático de que foi vítima. Marcelo Rebelo de Sousa, recordando as suas brilhantes competências de jornalista e comentador, substituiu os profissionais e o próprio António Costa, e deu a "cacha" não como segredo mas em plena conferência, para que nenhum jornal ou televisão se considerasse prejudicado. Há coisas que nunca esquecem ... 

A guerra mantém-se, com o rigor das balas e da destruição a terem bastante similitude com as notícias produzidas ou boatadas. Também o jornalismo atravessa uma fase muito difícil. 

Para culminar uma semana em grande, tudo indica que o coronavírus está longe de se eclipsar, contrariando, decerto por teimosia, todos aqueles que achavam ter pecado por tardio o regresso à normalidade, mesmo não tão normal como se desejaria.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Ligeireza

A casa era, na aldeia, a única que tinha uma grande escadaria em mármore, acedendo à porta principal. Era no patamar dessa escadaria que a senhora aguardava a serviçal. Vinda lá dos fundos destinados à criadagem, ir-lhe-ia prestar ajuda na descida dos degraus e acompanhá-la-ia à missa dominical, com alguma distância, é certo, mas sempre muito atenta a tudo, como lhe tinha sido ensinado quando, bem novinha, entrou para a casa.

Todos os domingos se repetia a cena e o trajecto até à capela era feito com alguma pompa de pose e acenos aos moradores. Eram quase todos servos da quinta e habitavam pequenas casas situadas na beira do caminho que levava até à capela. Ao contrário do que acontecia na maioria das aldeias que as tinham, a capela não ficava no alto de nenhum outeiro. Fora edificada num largo junto ao rio e, para lá chegar, era necessário caminhar por uma calçada bem inclinada e já desgastada e desconjuntada pelo uso. 

A senhora ia sempre trajada a rigor, exibindo um longo vestido de cerimónia que mostrava, no fim, a renda da saia de baixo, realçando ainda mais a categoria das vestes. O peito era comprimido pelo aperto do corpete, que fazia parecer que os seios ainda conservavam a rijeza de tempos idos há muito. O prior tinha ordens, que cumpria, para não deixar entrar nenhum dos fiéis sem que a senhora se instalasse. Toda a gente conhecia a regra e não a contestava, longe disso. Era a senhora que arcava com todas as despesas que permitiam manter a capela e a função.

Naquele domingo, por uma qualquer razão a que não deve ser alheia a polidez da pedra da calçada e as solas novas dos sapatos altos da senhora, o tropeção aconteceu, a queda deu-se e a inclinação da rua fez o resto. Uma dama de eleição a cair como qualquer vulgar, com o espectáculo de a queda ter feito a exibição de uma mulher com a cabeça tapada pelo vestido e pela saia de baixo e um corpo nu, evidenciando o desgaste dos anos já passados. A senhora levantou-se com a pressa que a atrapalhação permitiu. Compôs a indumentária e, de faces bem coradas, questionou a serviçal:

- Viste a minha ligeireza?

- Vi, sim, minha senhora. Não sabia é que também tinha esse nome.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Melros

São dois e nasceram aqui, escondidos no conforto da cameleira. O terceiro não resistiu à queda do ninho e ao aventureirismo de explorar o quintal por conta própria. Deve ter-lhe faltado o conforto dos "lençóis" do lar e apareceu, sem vida, na calçada, junto ao portão. Os outros dois abandonaram o ninho e agora fazem do hibisco a sua casa nova. Saltitam de ramo em ramo, com muito cuidado e por pouco tempo. Escolhido o poiso, sossegam, de olhos semicerrados, atentos à chegada dos pais e ao seu silvo indicativo. A refeição é servida, com o transporte rápido de novas iguarias, apanhadas na relva ou nos sítios próximos. 

Parecem não estranhar a presença dos humanos que, curiosos e preocupados, tentam não os perder de vista e evitar que os gatinhos lhes possam causar danos. Os cuidados nunca são de mais, sempre com a preocupação de não assustar os pais, prejudicando as refeições.

Os dois melros que, este ano, fizeram a surpresa de nascer no jardim, já têm todo o corpo coberto pelas penas pretas. Ainda não se aventuram no voo, mas não deverão tardar a fazê-lo, com a segurança que a presença e o ensinamento dos pais lhes darão.

A Casa fica com a esperança que não percam o sentido de orientação, que voltem sempre às origens e, quem sabe, façam por aqui o seu primeiro ninho.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Palpite

A guerra na Ucrânia continua sem dar sinais de se aproximar do fim. As imagens que, todos os dias, nos massacram, mostram a selvajaria que se abateu sobre aquele povo, ainda que o mais provável seja só termos acesso a uma pequena parte do horror.

Auxílios e sanções têm divulgação diária e pouco ou nenhum efeito no cerne.

Visto cá de longe, no sossego e no conforto do sofá, uma conclusão tão valiosa e tão fundamentada quanto são os mais variados comentários que nos chegam diariamente: a Ucrânia vai ser cortada a meio, com a parte que dá acesso ao mar a ser integrada na Rússia, ficando a outra metade para os ucranianos que sobrarem. Em contrapartida, a Finlândia e a Suécia farão a sua adesão à Nato sem grande contestação de Putin e seus acólitos. 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Evolução

A música flui do aparelho, sem necessidade de qualquer intervenção, nem para colocar o disco, muito menos a agulha. O cuidado, antigo, para não riscar o vinil esteve ausente durante a ascensão e o apogeu do CD, e voltou, venerado por uma nova geração que adora o som mais grave e mais claro por ele transmitido. Já me desabituei. Ainda existem por aí uns quantos exemplares, apenas como recordação ou para que outros lhes dêem o carinho que merecem.

Os CD's estão guardados na "biblioteca" electrónica e permitem ouvir todas as músicas, de forma aleatória ou escolhendo o álbum pretendido. Os originais permanecem guardados, em gavetas e armários, num sossego divino e com rara utilização. Sem qualquer trabalho, a música passa. Da nova à antiga, da clássica ao rock, da popular ao fado, da bossa à coladera, sem qualquer intervenção humana que não seja carregar no botão. Quando o "palco" é abandonado, o botão do ratinho carrega na setinha e determina o silêncio. A inversa é verdadeira (como na matemática) quando se volta ao local do "crime", para continuar a usufruir do prazer interrompido. As colunas de som que fizeram o percurso do gira-discos até ao computador com toda a naturalidade e adaptação, continuam a proporcionar um som tranquilo e nítido. Espero que continuem assim.

Na música, estou rendido. Nos livros ainda não e ponho dúvidas que venha a ceder. Vou ouvindo grandes elogios aos novos métodos de leitura, sempre com destaque para a facilidade e para a simplicidade de trazer um "calhamaço" de mil páginas numa "janela" de fácil arrumação e de peso pouco mais que ridículo.

Modernices, dirão uns. Actualizações do progresso, responderão, lestos, outros. E, reconheça-se, os livros assim não ganham humidade e não ocupam espaço nas estantes. Nem se tornam velhos ...

Recordei-me agora mesmo do comentário de um professor de História, a propósito dos Beatles, nos anos sessenta do século passado:

"Músicos eléctricos. Desliga-se a ficha, acabam!"

domingo, 15 de maio de 2022

Estilos

As comemorações oficiais do Dia da Cidade, que ainda vão prosseguir até ao final do dia, ficaram marcadas, na manhã de hoje, por dois acontecimentos que envaidecem esta Casa.

A filha recebeu a Medalha de Mérito Educativo pelo trabalho de investigação, no seu todo, na área dos peixes de água doce, e pelo labor desenvolvido no projecto Peixes Nativos, dedicado à monitorização e educação ambiental, centrado, não unicamente mas com especial enfoque, nos jovens alunos das escolas do 1º. ciclo da Região Oeste.

Ao mesmo tempo que a mãe era agraciada, o neto Grande disputava, nas Piscinas Municipais da cidade, o Torneio de Fundo de Natação, onde venceu a prova de 400 metros estilos.

Grande estilo, sem dúvida, mas discreto, como convém. A Casa agradece muito, e babada.

sábado, 14 de maio de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Já há muito que perdi a conta aos livros que li e, de muitos deles, recordo pouco ou nada mesmo. Isso não invalida que, presunçoso, por vezes me convença de que sou um grande leitor. Falso, como a seguir se demonstra sem margem para dúvidas.

Acabei de ler "Um diário de leituras - treze livros para treze meses", de Alberto Manguel, escritor argentino que recentemente se instalou em Portugal, doando a sua biblioteca à cidade de Lisboa. Dos treze autores mencionados, e comentados, no livro, conheço sete. Dos livros referidos, li três, dois deles em língua portuguesa directa: Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis e Viagens na minha terra, de Almeida Garrett. O terceiro é Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, que li, numa tradução antiga, quando o Acordo Ortográfico ainda estava arredio, bem longe, talvez na Patagónia ou no Alasca, onde deveria ter permanecido.

Uma vez mais provei a mim mesmo que presunção e água benta, cada um toma a que quer, e que quanto mais sei, maior é a minha ignorância.

"(...) Estendido na cama com pontadas de dor nos ombros e nas pernas, penso que a velhice pode ser medida em pequenos inconvenientes irritantes como este. Quando eu era novo, o meu corpo estava simplesmente presente e não chamava a atenção para si mesmo. Agora, parece uma criança choramingas, constantemente a puxar-me pela manga, a exigir atenção. (...)"

Um diário de leituras
(Treze livros para treze meses)
Alberto Manguel

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Ondas

A Foz é sempre uma caixinha de surpresas e, talvez por isso, ou se adora ou se odeia. O céu, por aqui, estava bem azul, o vento tinha falta de comparência, indiciando a possibilidade de uma bela manhã de praia, com a maré vazia a abrir caminho a uma ida até às rochas. Estas eram as premissas, pressionadas ou alimentadas pela vontade de abrir a época, que Junho já está quase à porta.

- Está muito carregado lá ao fundo. Deve estar nevoeiro.

Sem tirar nem pôr. A chegada ao alto mostrou um nevoeiro cerrado, que não deixava ver o mar. Lá em baixo, a situação era convidativa a voltar para casa: tudo escuro, uma brisa salpicada, desagradável, fria, até.

- Na Lagoa parece já estar aberto.

Distarão quinhentos metros, pouco mais, do mar até ao cais da Lagoa. A diferença entre um local e o outro era abissal. As chaves do céu agem muito mais depressa na Lagoa do que no mar. Preferências que não se entendem. Esquisitices. Mas, por lá, havia sol quente, céu azul, ausência de vento, muita gente a apanhar berbigão, alguma outra a trabalhar o bronze, o parque das autocaravanas cheio de turistas, nacionais e estrangeiros, alguns operários a proceder a reparações pontuais, a senhora dos petiscos já deveria estar a aprontá-los, tal era o cheirinho que vinha da cozinha.

É sempre agradável ir até à Lagoa. A paisagem é linda, o espelho de água, inigualável. Faltam as ondas ...

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Festas da Cidade

As Festas da Cidade deste ano são muito diferentes das anteriores e já não por culpa do coronavírus. Houve mudança e, ao que parece, há gente com muitas saudades do concerto e do fogo de artifício, e que tem manifestado a sua discordância nos orgãos de comunicação electrónica que estão na moda.

Este ano, para além de não haver concerto na Avenida, também não haverá as habituais inaugurações e, julgo, a largada de pombos.

É bom mudar, ainda que tudo possa continuar na mesma! Vamos ver.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Nuvens

Pelo céu vai uma nuvem,
Todos dizem - bem na vi.
Todos falam e murmuram,
Ninguém olha para si.

Uma quadra popular que, teimosamente, permanece na minha memória, lá na gaveta do lado esquerdo, bem no fundo mas sempre disponível para emergir. Desde a infância. Era utilizada lá em casa para obstar à tentação de falar sobre a vida alheia, a coscuvilhice, o que acontecia na casa dos outros e que não nos devia causar regozijo ou inveja.

- Todos temos defeitos ... não digas mal do teu vizinho, que o teu pode vir a caminho.

Até hoje! Não digo que, por vezes, não apareçam indivíduos, coisas, situações, que me chocam, causam alguma incomodidade, se mostram incompreensíveis para o olhar que, curioso, não perde pitada. Outras vezes, olho para mim e concluo que haverá gente que me acha estranho, alguns que não vão com a minha cara, outros que adoram ver-me ... pelas costas.

Sou mau garfo, péssimo copo, gosto de ler e ouvir música não por estar na moda, não vejo telenovelas, dispenso os programas televisivos de "encher chouriços", sou crítico, por vezes em excesso, tenho uma personalidade forte ou melhor, numa expressão mais prosaica, sou teimoso que nem um burro.

Convivo bem com todas estas minhas "qualidades" e tento sempre olhar para mim, com a expectativa de me compreender, e entender o que fiz de mal ou o que motivou que esteja a mais, que não possa jogar ali, naquele campo que até parecia acessível e gostoso. 

Quando acontece, não muitas vezes, felizmente, aguardo calmamente que o tempo se encarregue de limpar a sujidade e lembro-me do Engº. Sousa Veloso e da forma como se despedia da sua TV Rural: "Até ao próximo programa. Despeço-me com amizade."

terça-feira, 10 de maio de 2022

Ninho

O azul celeste poisa no jardim e dá vida nova às flores, aos arbustos, à relva, a tudo quanto por lá habita e mesmo aos visitantes diários que vão, depois, dormir noutros hotéis.

A escova-de-garrafa é visitada, diariamente, por centenas (milhares?) de abelhas. Sem se preocuparem com o que se passa à sua volta, exercem o seu labor e cumprem a sua missão de retirar o pólen que hão-de transportar para a fábrica destinatária. A colmeia receberá a matéria-prima e produzirá o mel, para satisfação dos gulosos e daqueles que, não o sendo, beneficiarão das qualidades salutares do produto.

Os pardais circulam sem receios, embora com o olhito atento a qualquer aproximação que considerem potencialmente perigosa. Os melros, também sempre vigilantes, vão-se encolhendo, andando devagar por entre os arbustos e, mal se sentem com o mínimo de segurança, voam soltando o grito de liberdade que lhes é característico.

Os humanos observam tudo isto sem qualquer intervenção. Contudo, uma aproximação mais atenta e surge a constatação de que a cameleira está demasiado crescida, quase a galgar o muro para o quintal do vizinho.

- Vou cortar um pouco. Está enorme ...

O trabalho não chegou ao fim. Lá no meio, bem escondido, o ninho surgiu com os melrinhos ainda bem pequeninos e de olhos fechados. Nem o melro nem a "melra" andavam por ali, decerto ocupados com o trabalho que garantirá o sustento do lar. Não deram pela invasão, embora, talvez, tivessem estranhado a diminuição da segurança.

Para grandes males, grandes remédios: nem mais um corte! Ficará para quando os pequeninos abandonarem o lar e se dedicarem a percorrer o espaço por conta própria, com o silvo característico e a beleza do seu voo picado.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Dia da Europa

A bandeira simboliza a identidade da Europa, com o círculo das estrelas a representar a unidade, solidariedade e harmonia entre os povos, e o número delas - 12 - a ser o símbolo da perfeição e da plenitude.

Apesar disso, a guerra continua ...

domingo, 8 de maio de 2022

Mãe

Hoje é o dia da minha mãe! Faria 99 anos e por cá continua a fazer companhia a todos os que foram seus.

sábado, 7 de maio de 2022

Confraternização

Três anos passados, regresso do almoço da Escola, com a presença de mais de cento e cinquenta antigos alunos. A pandemia impediu que este grande evento fosse realizado nos últimos dois anos e condicionou o deste, ainda que todos fizessem os possíveis para tudo parecer normal.

O optimista dizia:

- Até que enfim, bolas. Tanto tempo a aguardar isto. Vamos divertir-nos. Comer, beber, dançar, conversar, recordar. Hoje é festa!

O pessimista respondia:

- Esperamos que tudo corra bem e que a próxima semana não nos traga notícias azedas. Aquele malfadado que nos tem acompanhado não deve ter vindo, julgamos nós, mas ...

O optimista interrompe:

- Não chames a desgraça. O "gajo" não pagou a inscrição, por isso, não entra!

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Deficiências

A aula, talvez devido ao defeito físico do professor, que lhe trazia complexos, e à sua prepotente personalidade, decorria sempre debaixo de disciplina férrea. Nenhum dos alunos podia expressar-se sem ser questionado pelo mestre, não eram admitidas conversas entre eles, um simples olhar para o lado era reprimido de imediato. Carlinhos era um dos que estavam sempre debaixo da mira do docente e a admoestação surgia de imediato e de forma brusca.

- Vamos lá para o suplício do coxo ...

A atenção e a aprendizagem eram constantemente testadas pelo professor, com perguntas feitas de surpresa a todos os alunos, sem excepção nem aviso prévio. O Carlinhos vivia o pesadelo diário de ser um dos contemplados. Sabia bem que a sua desatenção habitual e a pouca apetência para a matéria o tornavam um dos alvos preferenciais. Valia-lhe o sussurro da Isabelinha, sentada nas suas costas e sempre disponível para lhe tentar colmatar as insuficiências. 

- Carlos, diga lá como se chamam os ossos da perna.

- Tíbia e perónio, sussurou a Isabelinha.

- Tíbia e perónio, professor António, respondeu bem alto o Carlinhos, rindo-se para dentro da rima surpresa e ouvindo um risinho contido dos seus colegas.

O professor não ficou muito convencido do saber do Carlinhos e, nem cinco minutos passados, voltou à carga:

- Menino Carlos, quais são as partes em que se dividem os membros inferiores?

- Anca, coxa, perna e pé, disse muito baixinho a Isabelinha.

O Carlinhos ficou calado, fingindo alinhar ideias. A Isabelinha repetiu, mais perto e um pouco mais alto. 

- Anca, coxa, perna e pé.

- Anda, coxo, põe-te em pé.

- Rua!

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Dia Mundial da Língua Portuguesa

Comemora-se hoje o Dia Mundial da Língua Portuguesa, com ou sem Acordo Ortográfico, pouco importa. O importante é que mais de 250 milhões de pessoas se expressam na mesma língua de base e produzem tanta coisa tão diferente e tão rica na diferença.

Poderiam ser milhentos! Ficam apenas alguns pequenos exemplos de como é possível, na mesmíssima língua, escrever de formas tão diversas.

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(...) felizmente que as avencas lhe cobriam a voz
- Obrigado avencas
e o meu pai entretido a desenhar-me um relógio no pulso
- Se não páras quieta não consigo Marina 
uma janelinha para o fim do mês
- Hoje não são dezoito são doze
- Faz de conta que são dezoito pronto
e envelheci uma semana, embora tivesse aferrolhado o ar pedi às avencas que me ajudassem dado que um dos cavalheiros
- Não há cá um gira-discos para as garotas dançarem? (...)
Boa tarde às coisas aí em baixo
António Lobo Antunes
D. Quixote (2003) 
 
(...) O Cabo não se convenceu, levantou uma das pálpebras de Budião, que estavam fechadas, deu-lhe dois tapas no rosto, um pontapé de leve na canela.
- Não se mexe. Há quanto tempo ele está aí? 
- Desde que chegou. Mas tem comido. A corrente do braço é calculada para ele poder segurar o prato e comer, eu mesmo calculei. Ontem comeu feijão com pé de porco, comeu tudo. Hoje foi que ainda não comeu, também ainda é cedo. Hoje eu ...
- Solte ele, desamarre. (...)
Viva o Povo Brasileiro
João Ubaldo Ribeiro
D. Quixote (1998) 
 
 (...) Foi um dia de grandes trabalhos para Lídia. Trouxera uma bata, que vestira, atou e cobriu os cabelos com um lenço, e, arregaçando as mangas, lançou-se à lida com alegria, esquivando-se a brincadeiras de mãos que Ricardo Reis, à passagem, sentia dever usar com ela, erro seu, falta de experiência e de psicologia, que esta mulher não quer agora outro prazer que este de limpar, lavar e varrer, nem o esforço lhe custa, de tão habituada que está, e por isso canta, em voz baixa para que a vizinhança não estranhe a liberdade da mulher a dias, logo à primeira vez que veio trabalhar a casa do senhor doutor. (...)
O Ano da Morte de Ricardo Reis
José Saramago
Caminho (1984)

(...) Simplesmente, Bambo não era um anfíbio qualquer. Embora modesto na escala animal, tinha a sua personalidade. Precatado, discreto, negava-se a cair nos braços do primeiro que lhe desse a salvação.
- Ora viva quem também anda acordado a estas horas!
Não respondeu.
- Na boa da conquista, está-se mesmo a ver! ...
Moita. Nunca dera troco a brincadeiras tolas. De resto, não andava às gatas, como o outro insinuava. Amores, só na primavera e na ribeira de Arcã. (...)
Bichos
Miguel Torga
Coimbra (1940)

(...) Zana me deu a farda do filho; ficou frouxa no meu corpo e provocou risadas. Engoli as risadas; e devolvi a roupa antes de ser engolido pelos olhos de Zana, incapaz de ver a farda em outro corpo. E, graças a Halim, ingressei no Galinheiro dos Vândalos.
No liceu havia vestígios do Caçula: ex-namoradas, histórias de algazarra, de cenas heroicas, duelos, desafios. Nas paredes do banheiro havia inscrições de sua autoria. Por onde passava, deixava um gesto ousado, de valentia, ou um epigrama qualquer, palavras de humor e ironia. Eu cheguei a terminar o curso que ele havia abandonado no último ano. Na verdade, o Caçula não terminou nada, jamais frequentaria uma faculdade, desprezava um diploma universitário, ignorava tudo o que não lhe desse um prazer intenso, fortíssimo, de caçador de aventuras sem fim.
Halim e Zana pensavam que o filho doutor ia corrigi-lo, que cedo ou tarde a vida dura em S. Paulo podia domá-lo. (...)
Dois Irmãos
Milton Hatoum
Companhia das Letras (2017) 
 
(...) As mulheres conseguiram se safar, ou os caíngas não se interessaram por elas. Mas dois jovens foram encurralados e os polícias discutiam com eles, negociando certamente qual a parte dos telemóveis e relógios mudaria de mãos, para pagar a multa informal. Só viu os caíngas meterem coisas nos bolsos e virarem costas. Quando estavam a mais de vinte metros, os jovens espoliados gritaram, vocês é que são os ladrões, vão bardamerda, vamos votar contra vocês, esperem só pra ver, o vosso partido vai ser bassulado, viva a oposição radical, ao que os policiais nem ripostaram, apenas encolhendo os ombros. Entregaram um objecto a cada um dos fiscais municipais. Todos felizes, iriam transformar os produtos roubados em cerveja, sobretudo. Heitor sentiu, devia ter gritado como alguns populares fizeram, deixem lá os moços em paz, estão só a ganhar a vida deles, não estão a roubar nem a matar. Devia, sim, gritar e se indignar, já era altura de terminar essa pouca vergonha de polícias e fiscais corruptos.
O tímido e as mulheres
Pepetela
D. Quixote (2013) 

Quatro anos é um pedaço de tempo muito pequeno. E, olhado de longe, parece relativamente homogéneo. Poderia dizer que foram sempre dias felizes, e de algum modo relativamente iguais.
Mas não estaria a ser exacto. Um dia, no terceiro ano, aconteceu algo diferente. Estava na mezzanine, embrenhado no trabalho, e não me apercebi de nada. 
Só quando desci a escada, horas mais tarde, verifiquei que alguma coisa se alterara: enrolado num pano, em cima da tua saia, havia um gato muito pequeno. (...)
A cidade de Ulisses
Teolinda Gersão
Sextante (2011)

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Batatas

- Os fetos estão cada vez maiores. Podemos apanhá-los e ir fazer a cama às batatas.

Era assim: apanhavam-se os fetos, sempre os maiores, e fazia-se a "cama" para as batatas no espaço da casa que pudesse estar desocupado dois ou três meses. O soalho era coberto com os fetos e, por cima, colocavam-se as batatas novas, bem espalhadas para que não ficassem sobrepostas, cobrindo-se com uma nova camada de fetos. As portadas eram fechadas, para que a luz do sol não entrasse. O objectivo era impedir que as batatas grelassem para, assim, durarem o tempo necessário a serem consumidas. Eram retiradas, à medida das necessidades, com cuidado, para que os fetos não destapassem as que ainda ficavam a aguardar a sua vez de serem consumidas. Não havia, nem podia haver, desperdício. Com a comida não se brinca ...

Os velhos lembram-se de cada coisa. Alguém, com dez réis de testa actualizados, conversa a ligar fetos a batatas, a grelos e ao desperdício. Gente tonta. Qual é a necessidade? Está tudo ali, com saquinho, na primeira prateleira. É só puxar e pagar na caixa. Com cartão, claro!

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Rotina

Apesar de mais de dois anos passados em pandemia, complementada, nos últimos dois meses, pela entrada, no nosso quotidiano, da invasão da Rússia à Ucrânia, o calendário cumpriu-se e o mês de Maio chegou na altura devida. Abriu as portas ao regresso, tão esperado, do Verão, que nos há-de trazer vitamina D e bons mergulhos para aclarar as ideias, disso tão necessitadas.

Desde o início da pandemia que tem havido, diariamente, qualquer coisa por aqui, na maior parte das vezes insignificante, noutras talvez com algum interesse.

Não vou deixar que "postar" passe a ser uma obrigação, um dever, um objectivo. Já não tenho idade para isso, nem para encarar a vida como um cumprimento de ordens, situação a que nunca me submeti com agrado, embora tivesse acontecido muitas vezes. Agora já é tarde e nada a isso me obriga. Até me pagam o ordenado sem pedirem, muito menos exigirem, nada em troca.

A porta do "diário" vai continuar aberta, vou copiar os Diários, de Miguel Torga - que presunção!!! - e escrever sempre que me apeteça, quando me aprouver, desde que queira, agora ou logo, já ou amanhã, nesta semana ou na outra, sem obrigações, horários, vínculos ou rotinas. 

Teimoso, como sempre, inteiro, como convém.

domingo, 1 de maio de 2022

Maio maduro

"Sempre no mês do trigo se cantará"

Para que a borracha não apague o passado nem o deixemos voltar, mesmo pretensamente actualizado.