segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Poupar

No Dia Mundial da Poupança, até as palavras devem ser limitadas ao estritamente essencial, para que a inflação não dê cabo delas.

Luiz Inácio Lula da Silva derrotou ontem o "caramelo" da boca cheia de favas e será o próximo Presidente do Brasil, se tudo correr dentro da normalidade democrática, como se deseja.

"Amanhã, ninguém sabe"

domingo, 30 de outubro de 2022

Ser e estar

Excerto de uma entrevista a Carlos Tê, publicada no Notícias Magazine de hoje:

"(...) Pergunta - Como se define hoje?

Resposta - Aos 67 anos, das coisas que mais temo é a misantropia. Vir a ser um velho rezingão. É das poucas coisas que peço para não ser. Não que queira ser um velhinho muito alegre. Não é isso. Mas gostava muito de manter o equilíbrio que tenho desde os meus 15, 20 anos. É esse o meu longe (...)"


Dei por mim a concordar com o autor de Chico Fininho e de Porto Sentido, entre muitas outras coisas que escreveu e das quais gosto bastante. Arquibaldo é um livro da sua autoria, "hospedado" cá em casa há pouco tempo, e que aguarda, calmamente, a sua vez de ser lido. Não teço, por enquanto, quaisquer comentários, mas estou convicto de que não me irá desiludir.

Voltando à entrevista, da qual transparecem ideias bem arrumadas e resolvidas, alertou-me para a ousadia de tentar sempre manter o contacto com as pessoas, os problemas, a cidadania, sem medo de ser chato, ultrapassado ou convencido, e muito menos deixar de ser aquilo que sempre fui, mesmo que a irreverência esteja fora de moda.

Afinal de contas, por muito burro que seja, quem já viveu mais de setenta anos, passou por tanto, viu tanta coisa, conheceu muitos "filhos da mãe" e muita gente de bem, não tem que fazer actos de contrição ou quedar-se a um canto à espera que chova.

" É esse o meu longe ", sem qualquer dúvida. Assim o consiga apanhar!

sábado, 29 de outubro de 2022

Desabafos

Conheci, há muitos, muitos anos, um homem que tinha sido motorista do Ministro do Interior, como era, na época, designado o actual Ministro da Administração Interna. Desempenhava ele essa função, de forma meritória, pela certa, quando saiu uma lei impedindo os funcionários públicos de poderem ter outra actividade. Parecia de propósito: ele tinha acabado de assinar um contrato de arrendamento para a exploração de uma bomba de gasolina na capital (bem perto da Gulbenkian, de onde saiu não há muito tempo) e, claro, ficou muito preocupado. 

Para conseguir dormir sossegado, contou a situação do Ministro e obteve como resposta, clarinha como água, uma frase lapidar:

- A., não te preocupes. Isso não se aplica a ti. É só para outros ...

O 25 de Abril trouxe, nas intenções e no papel, a universalidade da aplicação das leis, de forma atempada e justa. Quase meio século depois, continuamos a assistir a julgamentos na praça pública, a situações investigadas durante anos para acabarem no cesto dos papéis, a presenciar expedientes que prolongam os processos até às calendas, a constatar que a justiça, se chegar, poderá ser tudo menos justa.

É conhecido, e faz lei, que o tempo da justiça não pode nem deve ser o da cacha jornalística, muito menos o da câmara e do microfone em punho perseguindo quem é acusado de prevaricar e sem lhe permitir o pleno direito à defesa e à justificação na sede própria: os tribunais.

Porém, permitir que aos fogachos se sucedam os dias, os meses, os anos sem fim à vista, que os expedientes sejam regra e as habilidades sejam correntes, apenas contribui para que a justiça, se um dia chegar, seja tudo menos justa.

A continuarmos assim, corremos o risco de o tribunal aplicar a lei, sem remissão, ao roubo da lata de atum e deixar morrer solteira a culpa de quem "apenas" assinou um contrato que nem leu ou levou um banco à falência.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Festival de Jazz

Hoje é dia de assistir ao concerto que o Real Combo Lisbonense traz ao Festival Caldas Jazz deste ano. É o primeiro em sala dos seis que poderão ser vistos no auditório do CCC, pagando, claro. 

Espero lá estar um pouco antes das 21H30, hora prevista para o início do espectáculo. Já sei que haverá gente que, sem respeito pelos outros, chegará atrasado e com um sorriso nos lábios, rir-se-á da sua esperteza e da "estupidez" de quem chegou a horas.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Futuro

Já está aprovado, na generalidade, o Orçamento de Estado para o ano de 2023, estando, por isso, garantido que todos os problemas serão resolvidos ou que todos serão agravados, consoante a perspectiva e o posicionamento político dos deputados sentados na AR. 

Nenhum dos lados da barricada pode garantir que as previsões sairão certas ou erradas, sendo que o mais provável é ninguém acertar. Os orçamentos assentam, todos, em previsões que, no caso do OE, suportam opções políticas. Em teoria, serão objecto de concretização no ano a que se referem. 

Se já é difícil, ou até impossível, acertar em circunstâncias normais, a actual conjuntura garante, sem margem para quaisquer dúvidas, que só um bambúrrio fará com que os números e as políticas explicitadas venham a corresponder à realidade conseguida.

A economia de guerra que parece estar (ou já está) a caminho e o aumento das taxas de juro hoje anunciado pelo Banco Central Europeu - apesar do comentário contrário à decisão logo feito pelo nosso sempre atento e opinioso Presidente - parecem indiciar que o mar vai estar encapelado e que não irá ser fácil nadar nas marés fortes que, inevitavelmente, surgirão no próximo ano.

Fica a esperança (há sempre esperança) que as "cabeças" europeias tenham capacidade de análise e de decisão, e que os interesses de todos se sobreponham aos de cada um. Aos políticos europeus, que estarão conscientes de que não há dois países iguais, cabe a responsabilidade de impedirem a ruptura e a obrigação de segurarem a Europa unida na diversidade.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Chegou ontem e vai ter de aguardar que o actual seja concluído. Vai passar à frente dos que já se perfilavam na linha de partida ou não fosse ele mais um para juntar a todos os outros do mesmo autor, sempre em lugar (muito) especial. Longe vai o tempo em que era possível ler mais do que um ao mesmo tempo, sem perder o fio de cada meada. Além disso, os livros do ALA são sempre lidos em exclusivo, por a qualidade a isso obrigar e não poder haver devaneios. Cada palavra tem um sinal, um significado, um fito, uma justificação.

Mas, como sempre, a curiosidade foi mais forte: abri, deliciou-me logo a dedicatória "Aos meus irmãos João e Pedro porque toda a vida fizemos chichi juntos, lado a lado, para a cascata do jardim." A página seguinte mostrou a qualidade do costume e a vontade de ler não deu tréguas. Começa assim:

A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite quando a poltrona em que me sento de súbito desconfortável, enorme, e os objectos aumentam nos naperons, inclinados para mim a escutarem, a quem terá pertencido a santinha de talha a que falta um dos dedos, que garganta tosse dentro da minha a chamar, que segredos são estes de que não entendo as palavras, o que desejam ao certo vindos de uma gaveta empenada, cheia de laços de cabelo desbotados e fotografias antigas, por exemplo um bombeiro com uma criança ao colo

(-Tio Quê)

e o vento que suspira na chaminé à procura, tantos ossos a mais no meu corpo, tantos dedos nas mãos, o médico no hospital para mim

- Vamos ver vamos ver

enquanto os tubos do estetoscópio se enrolam na mesa num vagar carnívoro e lá fora, na rua, uma ambulância se afasta a gritar, há quantos anos morreu a minha mãe, meu Deus, a solidão e um pingo de torneira que atravessa o escuro desde a cozinha aqui ou um gonzo de janela, quase vivo, a bater não sei onde, e qualquer coisa, encostada ao caixilho, a repetir o meu nome, o médico sublinhava análises num vagar severo enquanto o olho esquerdo dele aumentava até mim e baixava de novo, com a ponta da caneta a insistir no papel e um dos sapatos, sei lá a razão, me incomodava, já agora qual o motivo de a minha mãe não estar comigo como quando, em pequeno, depois da luz apagada, me poisava a palma no cabelo antes de se ir embora, olha o som dos passos dela cada vez menos nítido, olha a voz do meu pai na sala, tão longe

- Que medroso o pequeno

enquanto eu descia o declive dos lençóis na direcção do sono, afundando-me para além da cave onde uma máquina de costura avariada (...)

O tamanho do Mundo
António Lobo Antunes
D. Quixote (2022)

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Palavras bonitas

TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não, 
não tenho ritmo mais não.

Vai, Carlos!
Carlos Drummond de Andrade
Tinta da China (2022)

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Gaibéus

Vinham das Beiras, de terras cujos nomes nunca eram explicitados,

- Lá de cima ...

em grupo, sob as ordens, claras e rudes, do homem que os contratava e depois cedia para trabalhos agrícolas sazonais: a vindima, a ceifa, a plantação ou o arranque do bacelo.

Eram, habitualmente, cerca de vinte, dos quais um se dedicava a fazer a comida, tendo o horário reduzido em algum tempo, para esse efeito. A Quinta dava a maior parte dos ingredientes - batatas, couves, feijão, tomates, nabiças, algumas alfaces - e a lenha necessária para que o lume ardesse na lareira da cozinha da casa onde se alojavam, todos ao monte, como convém a quem sai dos seus sítios e se agrupa para "dar ao dedo". Sopa era o único prato garantido, nem sempre acompanhada do naco de pão com chouriço. Outro acompanhamento só acontecia quando, pressionado fortemente por todos, o "dono" deles lá cedia e comprava alguma coisa de mais substancial para o jantar, normalmente uns ossitos com carne reduzida, que o homem do talho cedia a bom preço.

Ao que constava, os homens não recebiam o valor pago pela Quinta ao "dono", e ainda tinham de descontar o valor atribuído ao alojamento, que não era cobrado, e à alimentação, também de borla para os mínimos. A Quinta pagava um valor diário por cada um dos trabalhadores e um valor global ao "dono", que superava largamente o salário de quem "vergava a mola". E o homem era um "gajo porreiro", que proporcionava àquela gente o regresso a casa com algumas notas no bolso ...

Já lá vão mais de cinquenta anos e ontem voltei a lembrar-me, ao ver e ouvir as notícias sobre muitos timorenses que para cá vieram ... dormir no Rossio.

domingo, 23 de outubro de 2022

Fim da semana

Uma semana com pouco interesse está a chegar ao fim e a próxima (quase) irá determinar o final deste mês de Outubro, que trouxe alguma água para minorar a seca e vai abalar, em princípio, sem que nada digno de registo aconteça. A rotina está instalada, sem quebras ou interrupções.

Como toda a gente sabia, a senhora que havia tomado as rédeas do Reino Unido não chegou a durar dois meses. A história registará a velocidade meteórica com que passou pelo 10 de Downing Street. No próximo fim de semana irá saber-se se o Brasil continua a ser governado pelo tal da boca cheia de favas ou se o céu ficará mais limpo. Em Itália, tomou posse como Primeira-Ministra uma senhora com acentuado pendor para o lado contrário ao coração, o que não parece augurar nada de bom. Lá pelo Leste, a guerra continua, explodindo em perigosidade e causando cada vez mais danos aos que lá se mantêm, como sempre.

Por cá, Marcelo continuou a falar todos os dias, porque sim e porque não, dando a ideia de que, afinal, Deus se enganou ao ter-nos dado dois ouvidos e uma boca quando o ideal seria, como ele exprime, o contrário.

António Costa chegou a acordo com a Espanha e a França sobre as ligações do gasoduto que hão-de permitir-nos aceder à Europa de forma directa. Não faço ideia se resolverá os nossos problemas energéticos, mas constato que o deputado europeu Paulo Rangel se apressou a dizer que o acordo não prestava e a exigir ao Primeiro-Ministro que o mostre ao povoléu, para que este possa confirmar se o dito é bom ou mau. O homem deverá ter o dom da adivinhação ou pediu ao hacker Rui Pinto para lhe dar acesso ao computador governamental, conseguindo, dessa forma, comentar um assunto sem o conhecer.

Até o futebol se mantém rotineiro: o Glorioso ganhou no Dragão e o Sporting infligiu uma derrota ao Casa Pia e nem assim conseguiu calar esses "adeptos" fenomenais da Juve Leo. A Polícia de Segurança Pública deve ter mobilizado (a avaliar pela sistemática divulgação da falta de recursos humanos) todos os seus efectivos para garantir que os "índios" que se deslocaram ao Porto não faziam asneiras e para fazer umas "cócegas" nos meninos que exultaram de tal maneira em Alvalade que até cadeiras voaram.

Valha-nos que a semana chegou ao fim e a próxima, que irá ser melhor!

sábado, 22 de outubro de 2022

Festival de Jazz

Apenas uma nota para não perder o fio à meada, que o tempo urge e ainda há muita coisa a fazer.

Hoje, a parte da manhã foi parcialmente passada no CCC, assistindo a um grande concerto com que a "nossa" Banda Comércio e Indústria abriu o Festival de Jazz deste ano.

Se os que se seguem proporcionarem espectáculos idênticos em qualidade, vamos ter um grande Festival.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Partidas do tempo

A paragem do autocarro estaria a, sensivelmente, um quilómetro do sítio onde moravam e era o limite para os seus passeios mais ou menos diários. Eram mãe e filha, respeitavam-se muito, mantendo a distância e eliminando as confianças impróprias e contrárias à "boa educação". Falavam, ou melhor, sussurravam de forma quase imperceptível tornando muito difícil que outros pudessem entender o que diziam.

Para além de o volume das vozes ser extremamente baixo, cada palavra demorava uma eternidade a ser soletrada. Uma frase pronunciada por uma, só era entendível pela outra após terem percorrido umas boas dezenas de metros, sem pressas, como convém a quem já evidenciava algumas dificuldades de locomoção e tinha tempo de sobra para chegar ao destino.

A noite anterior tinha trazido muita chuva, os buracos da estrada ainda mantinham as poças de água, confirmando a violência com que S. Pedro tinha despejado os penicos do céu.

- Óóó ... mãããe ...

- Siiim ... fiiilha

- Oooolhe ... Saaabe ...

- O quêêê ... fiiilha?

- Uuuuma deeesgraça ...

- Que aconteeeceeeuuu?

- Mooolhei um pééé

- Mooolhaste um pééé, fiiilha?

- Siiim ... mãããe

- E agooora?

- Teeemos de voooltaaar a caaasa.

- Aaachas?

- Siiim ... mãããe

- E pooorquêêê?

- Teeenho o pééé tooodo mooolhado

- Ah ... entããão vaaamos

- Siiim ... mãããe

- Pooodes reeesfriiiar

- Pooois 

O passeio ficou por ali e consta que, quando chegaram a casa, o pé já estava enxuto.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Clara encontrou a avó sentada na varanda, imersa nos seus pensamentos. Rodeavam-na vasos de plantas de que cuidava com dedicação e fotografias antigas que guardava numa caixa velha no fundo de uma gaveta, algumas com tanta idade como ela. Aninhou-se ao seu lado, Soledad devolveu-lhe um sorriso carinhoso. Passou os olhos pelas fotografias espalhadas sobre o banco, selecionando uma de família: a avó Sole, o irmão e os pais, Juan e Mercedes sentados em duas cadeiras, com os filhos um de cada lado. Formavam uma família bonita, as feições da mãe replicadas na filha Soledad e as do pai no filho Santiago. Unidos num sorriso, não podiam imaginar o que o futuro lhes reservava.

O retrato foi encomendado pelo pai. Juan quis imortalizar a harmonia familiar, como se adivinhasse a tempestade a aproximar-se. Combinou com o fotógrafo, vestiram-se a preceito e compareceram no dia e hora marcados. A moldura passou a fazer parte da decoração da casa, encimando o louceiro em frente à porta da rua. Foi dos poucos pertences que Mercedes trouxe consigo quando decidiram fugir para Elvas. Oitenta anos depois, Clara segurava nas mãos aquele pedaço de história.

Noutra fotografia, em tons sépia, reconheceu os traços do bisavô Juan rodeado de árvores de fruto em modos de trabalho, ao lado de outros homens, nenhum deles lhe era familiar. Dando a volta ao retrato leu "Monte do Loreto, Elvas, novembro de 1936", um mês antes do desaparecimento do homem. Deteve-se a amiudá-lo, bom seria se para além do aspecto físico as fotografias revelassem pensamentos, e fosse possível adivinhar nos olhos do bisavô o que o inquietava naquele momento. O que estaria a sentir? Haveria realmente outra mulher na sua vida? Tê-la-ia preferido, deixando para trás a mulher Mercedes e os dois filhos? Não fez perguntas, quis poupar a avó. (...)" 

Sombras da raia
Nuno Franco Pires
Visgarolho (2022)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Novos interesses

Estão os dois sentados numa das mesas do café. As vestimentas denunciam-nos como trabalhadores da construção civil, em plena pausa do almoço. Na sua frente, duas bicas que vão sorvendo em pequenos goles, sem pressas e completamente desconcentrados da tarefa de beber.

Um deles tem, ao lado da chávena, o telemóvel e, no ecrã, um jogo qualquer que o indicador direito mantém em actividade frenética e a coscuvilhice permitiu ver apenas com uma mirada. Sem olhar, a mão esquerda pega na chávena, leva-a à boca e fá-lo beber mais um gole.

O outro não tem na mão o moderno aparelho - deve tê-lo no bolso - mas sim uma moeda, que lhe permite desvendar, com alguma violência, os números ou os bonecos - a coscuvilhice não conseguiu descortinar - das duas "raspadinhas" estacionadas no seu lado direito. A mão esquerda imita a do companheiro e "dá-lhe" o café.

Tudo à sua volta é ignorado. Só há olhos para os jogos, um, virtual, que dá gozo, e o outro, real, que pode trazer uns trocos e, por isso, também algum gozo. 

Não há mais espectáculo. O café bebido de forma rápida, como é costume. Regresso rápido a casa que o céu, negro, ameaça trazer de novo a chuva, com a intensidade com que já caiu hoje. O chapéu não veio e não há horta nas costas ...

Faz alguma confusão mas ... são os tempos modernos e a actualização dos interesses. Só a chuva se mantém igual!

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Palavras bonitas

O RECREIO

Na minh'Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar -
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar ...

- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar ...

Se a corda se parte um dia,
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada ...

- Cá por mim não mudo a corda
Seria grande estopada ...

Se o indez morre, deixá-lo ...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca ... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive ...

- Mudar a corda era fácil ...
Tal ideia nunca tive ...
Paris - outubro 1915
Poesia completa
Mário de Sá-Carneiro

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Gigantes

Digerida que está a eliminatória da Taça de Portugal, parece legítimo concluir, uma vez mais, quanto está certo o ditado de que mais vale quem quer que quem pode. 

O meu Caldas (sou sócio há quase meio século) merecia ter despachado o "meu" Benfica, que veio à Mata convencido que bastava trazer as camisolas e assinar autógrafos, e esperar que os golos entrassem só com o prestígio do nome. Jogaram-se 120 minutos e mais alguns de descontos, e só uma grande penalidade, falhada por conta do grande esforço dispendido, lhe permitiu que prosseguisse em prova.

O Caldas Sport Clube, fundado em 15 de Maio de 1916, jogou um futebol de hoje, apesar de a maior parte dos seus jogadores, treinador incluído, ganharem a vida em outra actividade. O comentador da RTP poucas vezes acentuou isso, referindo, contudo e por várias vezes, que a Mata é um estádio à moda antiga, embora com relvado novo. Se investigasse um pouco, saberia que, à moda antiga, era um rectângulo pelado, com bancada de madeira e balneários bem pequeninos.

Os lados de Alvalade ficaram ainda pior na fotografia. Não se deram bem com a "malta" da Póvoa, que os levou até Barcelos e aí lhes deu uma "galadela" impeditiva de prosseguirem na prova, como, aliás, mais seis clubes da divisão principal.

Estará lá um que não ganhou para o susto que muito o fez tremer na Mata!

domingo, 16 de outubro de 2022

sábado, 15 de outubro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

No dia em que Agustina completaria 100 anos, abre-se o armário, retira-se um dos vários livros dela que por lá descansam e, à sorte, surge isto:

"(...)
- Tire lá a salva de prata que não é precisa. Quer dizer que o defeito é um condutor de felicidade?

- Exactamente. A perfeição não é erótica. É o erro que é erótico e não a beleza.

 O doutor Horácio punha-se a pensar se Maria Rosa durante toda a vida de casada não estivera sempre informada das escapadelas do Nabasco que, afinal, não tinha necessidade de ter amantes. Os mandamentos não se destinam a promover a perfeição do homem, mas a medir as suas imperfeições, mais necessárias do que ímpias. "Será que ela viu isto?" - pensou o doutor, fazendo como de costume o gesto de acertar os óculos no nariz como para ter a certeza de que eles lá estavam.

Judite não reclamava por não acompanhar o marido e estabeleceu-se um acordo entre eles que agradou a todos: estavam casados, mas fora de certos compromissos que só convinham a uma linhagem, a um nome de família em permanência. Não faziam nem aceitavam convites juntos, não eram vistos ao mesmo tempo em lugares de recreio ou de cerimónia. Isto criava uma falta de cumplicidade que afinal lhes deixava a independência da vontade com respeito à sua própria diferença. Contudo, não ficava esclarecido se o casal se amava ou se experimentavam um conceito novo de matrimónio.

Judite não entrava nestas cogitações e limitava-se a ser uma boa criada, aproveitando as suas folgas da maneira que lhe dava mais prazer e que era a de ser útil e descomprometida. Quando fazia um cruzeiro achava sempre maneira de se ocupar das crianças nos infantários ou dos cães nas suas jaulas de bordo. Nunca se queixava de nada e comia a sopa fria sem repugnância e esperava pacientemente que lhe mudassem a roupa do seu beliche. Ao terceiro dia de viagem já a tinham reconhecido como a hóspede  encantadora e guardavam-lhe um lugar abrigado ao lado da piscina, como se ela fosse uma parenta incógnita. Era tudo natural, sem troca de benefícios; ao fim da viagem, ela partia deixando uma saudade atrás dela. Tanto a empregada da faxina, como o rapaz do bar, e até o capitão que, para a experimentar, lhe apertara o braço de maneira convidativa, guardavam um pequeno despeito de amor vendo-a sair com as suas malas de mão que, de repente, a denunciavam como uma pessoa rica. Que andara ela a fazer senão a enganá-los a todos? (...)"

A ronda da noite
Agustina Bessa-Luís
Guimarães Editores (2006)

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Jogos

Logo pela manhã, a ida ao café revela-se obrigatória, para ir comprar o Expresso, aproveitando-se a deslocação para a primeira bica. Durante muitos anos, essa tarefa era realizada ao sábado mas, como não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe, a pandemia ou a concorrência - não faço ideia e não tenciono telefonar a Francisco Balsemão para saber - alteraram a saída para a sexta-feira. Não é melhor nem pior, é apenas diferente, pelo menos para quem, agora, tem os dias todos por sua conta. Sai o sábado à sexta-feira ...

No quiosque que o café mantém, num recanto junto à entrada, vendem-se jornais (cada vez menos), revistas (cor-de-rosa, as preferidas), isqueiros, tabaco de enrolar, mortalhas para o mesmo, cautelas de lotaria físicas e virtuais, registam-se totolotos, totobolas, euromilhões, e, imaginem só, raspadinhas. Pelo que me dizem, é a "mercadoria" que mais saída tem, procurada por gente de todas as idades e disponibilidades, desde o mais abonado àquele que, com alguma dificuldade, ainda consegue descortinar uma notita bem lá no fundo do bolso.

- Esta tem cinco euros. Troque por outra e dê-me mais duas das mesmas.

A nota de vinte foi colocada em cima do balcão e o empregado abre a registadora e prepara o troco. Se bem percebi, seriam dez euros.

- Deixe estar. Dê-me mais duas daquelas.

O dedo apontado definia as preferidas, diferentes das anteriores, mas seguramente das boas. Simples. Talvez até possa ter sido um excelente negócio. Quando saí, a raspagem executava-se com ansiedade, numa das mesas da esplanada. Fiquei sem saber se houve ou não prémio chorudo. Alguém ganhou, disso não tenho dúvidas.

A vida é um jogo ...

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Mea culpa

"Os peixes ouvem mas não falam; os homens ouvem pouco e falam muito."
Padre António Vieira - Sermão de Santo António aos peixes

Marcelo Rebelo de Sousa, como bom leitor que sempre foi, deve ter lido este livro há muitos, muitos anos, ainda que, com a pressa que lhe é característica, passou pelo acima formulado como cão por vinha vindimada e não fixou a recomendação implícita.

Foi pena e agora já não é fácil mudar. Cumpriu-se o ditado de que "quem muito fala pouco acerta" e teve de fazer mea culpa na forma como comentou essa grande chatice que está na ordem do dia e que a Igreja não consegue digerir e muito menos explicar.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Lápis

Foi a primeira ferramenta de escrita que usei e isso talvez justifique o gosto que ainda se mantém em escrever a lápis. Sempre que necessito de escrevinhar algo, por curto que seja, a tentação é forte e, bastas vezes, o rascunho a lápis sobrepõe-se à tentação de digitar directamente no computador, ainda que haja alguma habilidade com o teclado (presunção e água benta ...).

Para além disto, o lápis sempre me acompanhou na leitura, servindo, em tempos, para anotações despertadas pelos conteúdos ou para comentários que, um dia, alguém lesse e achasse bem estúpidos. Estão por aí muitas provas, que não deixam esquecer essa fase. Agora já não comento nada, mas o lápis continua a acompanhar-me nas leituras.

A edição dos livros sofreu, julgo, transformações imensas no decorrer dos tempos e, ultimamente, deverá estar entregue aos programas informáticos que, automaticamente, se encarregam de efectuar as tarefas antes desempenhadas por aqueles senhores que liam e reliam as provas tipográficas, buscando a "gralha" que podia deitar um trabalho difícil para o lixo.

E é aqui que entra, de novo, o lápis: raro é o livro que não contém "gralhas" e erros ortográficos grosseiros, como os que detectei no livro cuja leitura está em curso: destinguem e caír.

O lápis, zangado e chato, assinala, corrige e sorri ...

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Ossos

Há já algum tempo que não conversava com ele, entendendo-se, claro, que o bom dia, boa tarde não são sinónimos de conversa, quando por aí nos encontramos.

- Isto não anda nada bem. Agora, com esta idade, rebentei o menisco. Durante o tempo da bola nunca tive nada nos joelhos e agora, toma.

Um olhar, mesmo não muito concentrado, dava para perceber que havia mais qualquer coisa para contar.

- Já foi ao médico?

- Claro que sim. Fui ao ortopedista F...., fiz vários exames ordenados por ele e, no fim, disse-me que era melhor aproveitar e colocar um joelho novo.

Não imaginava ser possível substituir o joelho natural por um artificial, mas parece que é e, de acordo com o médico do meu interlocutor, até é fácil. Sempre a aprender ...

- Torci o nariz e disse-lhe: ó doutor, na minha idade? Porque não, respondeu. Fica como novo e até nem é caro. Aí à volta de 8.000 Eur e a coisa faz-se. 

Estava satisfeito pelo desabafo mas era evidente o desconforto que a situação lhe causou. 

- Disse-lhe que ia pensar e falar com a minha mulher. Quando cheguei à rua, mandei-o à m..... com todas as letras, mas sem som. Vou ao SNS tratar do menisco e o joelho novo fica para quando voltar a jogar à bola!!!

Rimos os dois, ainda que seja difícil compreender o negócio na saúde.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Orçamento

O documento com as previsões orçamentais para 2023 foi hoje entregue na Assembleia da República, cumprindo, à risca, o prazo legalmente fixado para o efeito. Ficou, assim, desvendado o segredo, com a entrega da pen onde se fixa tudo. Longe vão os tempos das inúmeras páginas em papel, que os recepcionistas tinham dificuldade em manusear. Também desaparece a ansiedade do Presidente da República a qual, na sua idade, não é nada recomendável. Evaporam-se as adivinhações que por aí proliferaram e as opiniões sobre o desconhecido que foram sendo emitidas.

Lá para Janeiro de 2024 já se terá uma ideia, mais ou menos clara, sobre se a "adivinhação" correspondeu à realidade ou se foram "palpites" que pouco se ajustaram à realidade. Essas eventuais divergências já não preocuparão ninguém e muito menos levarão a extensos comentários ou opiniões. Barco parado não faz viagem e, por essa altura, já estará em vigor o OGE para 2024, que terá dado a celeuma do costume em finais de Setembro, princípios de Outubro de 2023, e nos dias subsequentes. 

Entretanto, as notícias de Leste não são nada animadoras e, aos olhos de quem, pelo menos por enquanto, está bem longe do conflito real, as nuvens adensam-se e a eminência de mais trovoada acentua-se.

Pergunta-se: as despesas que todos os países têm suportado estavam previstas e devidamente orçamentadas? Resposta: não sejas idiota. Podem sempre fazer-se orçamentos rectificativos, que legalizem os erros do prognóstico.

Há sempre um testo para uma panela. Clarinho como água!

domingo, 9 de outubro de 2022

Constatação

A visita de hoje ao Fólio, festival literário que se realiza na linda vila de Óbidos, confirmou a minha insignificância e permitiu verificar que qualquer semelhança entre a minha capacidade de pensar e de me exprimir com a de quem sabe nem sequer é mera coincidência: não existe mesmo.

A conversa do escritor Mia Couto com o psiquiatra José Gameiro, conduzida pela jornalista Sara Figueiredo Costa marcou bem a distância (era o tema) entre quem pensa bem, exterioriza melhor e sintetiza de forma magnífica, e os outros. 

Depois disto, ainda houve tempo para ouvir uma parte de um outro colóquio com a cantora Rita Redshoes, o actor Pedro Lamares e o escritor Afonso Cruz, com a pergunta "Os criadores têm super poderes?" a servir de tema. A parte ouvida foi, também, muito interessante.

Há ainda muito para ver e ouvir no Festival, mas a tarde de hoje será difícil de superar.

sábado, 8 de outubro de 2022

Se ...

Se Jorge de Sena (1919-1978) ainda por cá andasse, não perderia a oportunidade para fazer poemas direccionados a algumas pessoas que, gaguejando, tentam mascarar e justificar o que se vai descobrindo, quando lhes cabe "apenas" a obrigação de fomentar o escrutínio dos factos e a sua punição.

De púrpura andas vestido
Que Roma te concedeu
para que humilde defendas
o direito dos humildes
em Terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!

Mas a mitra que te cobre
não te dói como os espinhos
na cabeça do teu Mestre.
Doem-te os cornos dos ricos
das terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal

9 de Dezembro de 1956 

Dedicácias
Jorge de Sena
Três Sinais Editores (1999) 

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Espanto

Merecerá um esgar de espanto ou apenas deve ser apelidado de parvoíce, meio estranha quando já está cumprido quase um quarto do século XXI? Talvez seja devido ao desenvolvimento das viagens espaciais, já acessíveis aos mortais bem endinheirados, ou à facilidade de contactos trazida pelos telemóveis e afins. Apesar de tudo, o espanto é generalizado, mesmo até para os incréus.

De acordo com as afirmações do chefe da igreja russa, Putin foi colocado no poder por determinação divina; do lado de lá do Atlântico, Bolsonaro reivindica para si a benção celeste e aqui, neste cantinho à beira mar plantado, Ventura afirma ser inspirado e abençoado por Deus.

Levanta-se a dúvida: chegarão estas notícias lá acima, ao lugar divino, ou de tanto ser invocado o seu nome em vão, Deus já não liga nenhuma e espera que o tempo faça o seu trabalho e liberte a sociedade de tais personagens, confiando no saber resultante da experiência de quem assistiu a tudo.

A mistura da religião com a política deu sempre mau resultado e originou muitas desgraças que ficaram e ficarão na história para todo o sempre, por mais véus que se tentem colocar. Estão a surgir "iluminados" que conseguem ser ouvidos, soletrando falinhas mansas e olhos doces, e tentando, a pouco e pouco mas de forma convincente, fabricar um futuro que não se afigura nada bom.

E tudo em nome de Deus, que não lhes passou qualquer procuração para o efeito.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Conversa fiada

Esta é uma crónica de um fictício debate, que não ocorreu mas podia ter acontecido numa qualquer televisão onde a actualidade assume o protagonismo, a primazia e a importância. Neste acontecimento não acontecido estão presentes o apresentador, a quem cabe fazer as honras da casa e dirigir a conversa, e três distintas damas que vêm fazendo furor nestes últimos tempos, a saber: a Senhora Doutora Guerra, ilustre gestora de conflitos, com influência conhecida e reconhecida em todos os cantos do mundo e, mais recentemente, na disputa entre a Ucrânia e a Rússia ou vice-versa, ou na invasão da primeira pela segunda, ou o que lhes aprouver; a Professora Doutora Inflação, com excelentes serviços prestados em vários países da América do Sul, e que resolveu regressar à Europa, para que os povos ditos e reditos como os mais bem instalados do planeta possam usufruir da sua larga e valiosa experiência; finalmente, a Desembargadora Taxa de Juro, única com direito à referência ao apelido de família, não apenas pela sua antiguidade mas, fundamentalmente, pela importância que detém na liderança das relações financeiras mundiais.

O apresentador dá as boas-vindas às presentes, agradecendo-lhes a disponibilidade para participarem numa discussão tão importante quanto necessária, e alerta para a necessidade imperiosa de as intervenções serem curtas e claras.

- O tempo, em televisão, é sempre curto e, por isso, partimos de imediato para o que aqui nos trouxe. Doutora Guerra, o que acha da situação que, actualmente, todos vivemos?

Antes de responder à sua pergunta, que agradeço, permita-me que cumprimente as ilustres participantes no painel e bem assim como a si e a todos os espectadores e espectadoras que nos seguem lá em casa, decerto com toda a atenção e interesse. Uma saudação especial para os animais de companhia, que não entenderão o que aqui vai acontecer, mas estarão atentos e deitadinhos no colo ou aos pés dos seus donos e donas. Quanto à situação actual no mundo, é difícil fazer uma avaliação pormenorizada, por ainda não ser possível conhecer todos os dados do problema, quais os interesses em jogo e o que poderá surgir de novo, com a evolução que já aconteceu e a que, por certo, irá surgir a breve trecho.

 - Muito obrigado, Doutora Guerra, pela clareza e pela capacidade de síntese da sua exposição tão clara. Dirijo-me, agora, à Professora Doutora Inflação, a quem questiono sobre se acha que o aumento de todos os bens veio para ficar ou é passageiro?

- Permita-me, em primeiro lugar, que saúde as minhas colegas de painel e faça minhas as doutas palavras proferidas pela Doutora Guerra, enfatizando, também, a saudação a todos os bichos e bichas que, em casa, estarão bem atentos e muito preocupados com o que, infelizmente, não vão ouvir esta noite. Em relação à sua pergunta, é claro para todos e todas que o aumento do custo dos bens, especialmente os essenciais, é preocupante e que o bom senso nos avisa para não se criarem alarmismos, que ainda viriam agravar mais a situação em que vivemos.

- Fico-lhe grato pela clareza e, como o nosso tempo está quase a chegar ao fim, apelo à capacidade de síntese que é, aliás, sempre seu apanágio, da Desembargadora Taxa de Juro, para que esclareça, a mim e principalmente aos nossos telespectadores: é ou não verdade que a Senhora pode vir a atingir valores nunca antes alcançados?

- Vou procurar ser sensível ao apelo para ser sintética, característica por si reconhecida e elogiada, o que muito agradeço, mas não posso nem quero deixar de prestar as minhas homenagens à qualidade científica e pessoal das minhas colegas de debate, de as cumprimentar efusivamente e a todos os telespectadores. Gostaria, ainda, de deixar expresso quanto me honra e apraz a participação neste debate, com assunto tão importante e gente tão ilustre. Quanto à sua pergunta, que agradeço e me permite prestar alguns esclarecimentos providenciais, devo dizer-lhe que ainda é muito cedo para alvitrar hipóteses, que seriam meras suposições carecidas de evidência científica e, por isso, pouco esclarecedoras. Como bem sabe, o mundo sofre alterações de minuto a minuto e a evolução do meu valor nunca foi constante nem linear, desde há muitos anos.

- E foi o debate possível. O nosso tempo chegou ao fim. Agradeço às insignes participantes o incómodo causado pela deslocação a este estúdio e também, e fundamentalmente, os brilhantes e esclarecedores contributos dados sobre temas que tanto nos preocupam hoje. Voltaremos na próxima semana!

E pronto. Com esclarecimentos deste nível, só não dorme quem é tolo!

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

República

 

Comemoram-se hoje 112 anos da implantação da República, embora durante este tempo houvesse uma parte, de quase meio século, em que o comando esteve nas mãos de um "monarca" sem pergaminhos nem sangue azul, e com tormentos que bem marcaram todos e todas, como agora se deve dizer.

Marcelo Rebelo de Sousa entendeu que era um bom momento para dar uma aula de História, assumindo a sua qualidade de conselheiro e de porteiro de portas que se irão abrir daqui a algum tempo, em função da alternância que a democracia encerra. Tem esperança que isso ainda aconteça no seu mandato, o que, decerto, lhe daria grande prazer.

Hoje, ao contrário do que aconteceu há alguns anos, o Presidente da República içou a bandeira nacional na posição correcta, talvez por ter presente o erro do seu antecessor e este não ter por lá aparecido, seguramente por estar preocupado com os bitaites que sente dever mandar, em vez de se deleitar com uns bons banhos na Praia da Coelha, com os cuidados devidos que a idade já aconselha.

VIVA A REPÚBLICA!

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Semelhanças

A senhora professora andava preocupada com o comportamento do Carlinhos. Há já muito tempo que não participava nos debates da aula, não emitia opiniões, não contava estórias, não dizia asneiras, e só respondia, apenas por monossílabos, quando directamente questionado. Estava muito diferente do Carlinhos anteriormente interventivo, muitas vezes inconveniente, crítico dos colegas, comentador verrinoso, falador pelos cotovelos.

Por isso, a senhora professora achou que daquele dia não passava e iria directa ao assunto, para resolver o problema de vez.

- O menino Carlinhos tem algum problema que, eu ou os seus colegas, possamos ajudar a resolver?

 - Não, senhora professora, respondeu secamente.

- Então porque não participa nas aulas como fazia antes?

O Carlinhos hesitou durante alguns segundos. Os olhos da professora fitavam os seus, acusadores e acutilantes. Aqueles olhos mantiveram-no quieto e sem hipóteses de fuga à pergunta.

- Cansei-me, senhora professora. A senhora sabe tudo, ensina tudo, tem razão sobre tudo, até sobre a necessidade de usar sobretudo no Inverno, veja lá. Como posso eu participar se a minha ignorância é imensa e, na grande maioria das discussões, qualquer frase que eu diga é mal entendida, gozada pelos meus colegas e por si recriminada.

A professora embatucou e precisou de algum tempo para se recompor. Não lhe ocorria nada que servisse para quebrar aquele ruidoso silêncio que se instalou. Foi o Carlinhos que deu a volta à situação:

- A senhora professora sabe a semelhança entre uma sapataria e o forno da minha avó?

A vontade da professora era calá-lo de imediato mas, depois de tudo o que tinha dito, não seria pedagógico. Rendeu-se.

- Eu não, mas o menino vai ensinar-me, claro.

- Na sapataria, há sapatos. No forno, a minha avó assa patos.

A professora corou e, de imediato, continuou a explicar a gramática, enfatizando que o grito "Não à guerra" é muito diferente da afirmativa "Não há guerra", embora se pronunciem da mesma forma.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Os pressupostos e as consequências da guerra pouco diferem ao longo do tempo. Quando este livro foi publicado (2017), "apenas" havia sido anexada a Crimeia, balão de ensaio para o que agora se assiste e não se sabe quando irá parar. A menos que ... 

"(...) Em 1972, fui mobilizado para Angola, para uma guerra que se arrastava penosamente desde Fevereiro de 1961. Um conflito que infectava o corpo do país como doença insidiosa. No silêncio do seu pus, traiçoeira, a enfermidade gangrenava as soluções futuras.

Apesar de todos os avisos da História, os políticos da ditadura esqueceram-se que as guerras devem ser ganhas rapidamente, antes que os militares se cansem e o seu entusiasmo se torne rotineiro, a sua paixão em enfado. E, quando tal acontece, aquilo que parece ser uma vitória óbvia acaba por empurrar os exércitos para inevitável derrota. Derrota que nem sempre é um revés militar mas a prostração moral que mina vontades e torna a vitória um destino nebuloso, indesejável pelo sacrifício a que obriga. A ilusão dos primeiros instantes transforma-se em penosa realidade. Às marchas heróicas sucedem-se hinos fúnebres, aos discursos laudatórios seguem-se orações de encomendação, os risos transformam-se em choro, os passos de dança em arrastar de pés atrás de urnas, a esperança em desespero, a energia em cansaço, o amor e a canção em soluço, o desejo em repugnância, as cores garridas dos vestidos das mulheres em panos de luto.

É o tempo da fuga e da revolta.

Paradoxalmente, a guerra é o pior inimigo daqueles que querem conservar os povos subjugados, o mundo imutável. Os que governam o planeta esquecem-se disso, parecem ignorar que este é composto de mudança, como cantou o vate, e que os conflitos apressam a transformação, acrisolam o corpo social. Despojada do conforto, a sociedade deixará de ser a besta aquietada para se tornar no monstro que escarnece do bom senso e se regenera pelo excesso. (...)"

Coleccionadores de sonhos
António Oliveira e Castro
Gradiva (2017)

domingo, 2 de outubro de 2022

Patos

Todos os patinhos sabem bem nadar ...

... nas águas calmas da Lagoa, com a gaivota a vigiar.