terça-feira, 21 de novembro de 2023

Palavras bonitas

PEQUENA CANÇÃO DOS TRAIDORES

As figueiras do Diabo dão os figos
que às vezes os amigos
nos obrigam a comer.

As figueiras do Diabo têm todas
um dia qualquer Judas
enforcado por prazer.

Porque afinal
ao fim e ao cabo
há sempre amigos
e amigos do Diabo.

Obra Poética (Vol. 2)
Joaquim Pessoa
Litexa Editora

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) A chegada de Dona Felícia ao palácio do governador está prevista para a detardinha do dia 29 de dezembro, já quase ao cair da noite. Ela se apresentará vestida de ponto em branco, como convém a uma donzela renascida das cinzas do mais feroz opróbrio e que já não contava vir a merecer qualquer tipo de piedade ou misericórdia da parte do marido.

O zeloso bispo providenciou uma égua igualmente branca e ajaezada a preceito, no lombo da qual Dona Felícia percorrerá as três léguas que separam a cidade da Ribeira Grande da vila da Praia, pudicamente montada na tradicional posição feminina chamada de amazona. Noutros tempos ela estava habituada a passear na cómoda charrua Princesa Real que, ao chegar a Santiago, o marido, o governador-geral Chapuzet, tinha encontrado desconjuntada e abandonada a apodrecer num armazém de velharias, e a tinha mandado restaurar, com minucioso rigor, pelo engenheiro Teive Cabral, que nas suas horas vagas também se dedicava a trabalhos em madeira, para que a sua jovem esposa pudesse viajar com comodidade pelos diversos recantos da ilha que valia a pena conhecer.

E de facto não foram poucos os passeios que fizeram a dois ou em grupo mais alargado pelo vale da Fonte Ana ou até à nascente de Monte Agarro, para além de diversas jornadas a locais no interior da ilha, tendo ficado a lembrança de uma ida às imediações da Ribeira dos Engenhos, sítio que tinha ficado com curiosidade de conhecer depois de o cirurgião Lima, que tinha acompanhado o governador na sua digressão à zona para convencer os rendeiros, lhe ter contado com evidente entusiasmo a indiscritível beleza de toda aquela área.

Porém, hoje as situações estão mudadas. O próprio marido, que não teve uma única palavra para retorquir à proposição do bispo, e vai por isso obrigado, praticamente manu militari, a perdoar e de novo aceitar a esposa repudiada, não fez qualquer oferecimento do veículo, nem o próprio bispo se atreveria a ir tão longe pedindo-lhe também a cedência desse excelente transporte oficial. (...)"

Infortúnios de um governador nos trópicos
Germano Almeida
Caminho (2023)

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Percentagens

Era mais uma das habituais reuniões mensais, para análise dos resultados alcançados, em confrontação directa com os objectivos definidos para o ano em curso. Nelas, era apresentado um quadro com os resultados - o PowerPoint estava a dar os primeiros passos - e cada um comentava os seus, ensaiava justificações para o que ficara por realizar, enfatizava o que tinha acontecido de bom. O PowerPoint dava suporte visual e colorido, sendo o verde a esperança e a satisfação de todos.

Naquela reunião iriam, pela primeira vez, ser apresentados os resultados obtidos pelo contact center, contratado recentemente em outsourcing. O seu objectivo era contactar diariamente, via telefone, todos os clientes com prestações em atraso e assim, com a pressão, obter a regularização integral ou parcial do crédito vencido.

A conversa de apresentação foi novidade para todos e decorreu de forma eloquente, não deixando margem para dúvidas: são "sabões". O arrazoado foi extenso, as justificações, claras, a concretização definitiva e sem peias. O PowerPoint suportava os discursos e registava, a verde Bold, que havia sido conseguido sucesso em 99% dos telefonemas efectuados.

- Mas o valor do vencido não desceu ... murmurou-se à boca pequena, observação que, apesar de sussurrada, deve ter sido escutada ou imaginada no palco. A resposta, esclarecida, não tardou:

- A percentagem indicada diz respeito às chamadas atendidas. Se pagaram ou não, já não é connosco. 

terça-feira, 14 de novembro de 2023

A escada do humor

Com a devida vénia, muito respeito pelo autor e sem pagar direitos ao dito, transcrevo, uma vez mais, a crónica, diária, que Miguel Esteves Cardoso mantém no jornal Público.

" O INTER-IDADES PARA O PORTO

     Quando eu tinha 27 anos e me davam 30, protestava violentamente: "Calma aí! Não tenho 30, só tenho 27!" Quando tinha 38 e me davam 40, ainda era pior: "Quais 40?! Quarenta tinha a tua tia. Fica sabendo que só tenho 38!"

     Aos 47, quando começaram a atribuir-me a idade caluniosa de 50 anos, até tremi de raiva: "Ainda sou um quarentão! Deixa-me em paz! Vai morrer longe!" E dez anos depois, quando cheguei aos 58, lá estavam os caluniadores outra vez ao ataque, dando-me sessentas sem mais nem menos: "Sessenta? Estão malucos ou quê? Ainda não tenho 60! Sou só um jovenzinho de 58!"

     Agora tenho 68 e estranho que ainda não me deem 70. Se calhar, já estou tão velho que passei essa barreira, e entrei no mundo mentiroso dos elogiozinhos de lar da terceira idade: "Ele hoje está muito bonito! Foi ele que escolheu as calças, não foi? E calçou os sapatos sozinho, não calçaste?"

     Mas, caso alguém esteja prestes a dar-me 70 anos, está bem, pronto, já aprendi a minha lição. As piores armadilhas são aquelas que nós próprios nos encarregamos de montar. Aquilo que nos envelhece escusadamente não é a prontidão dos outros para nos fazer mais velhos do que somos. É a veemência com que negamos ser de uma idade que estamos mesmo à beira de atingir.

     Disse mal dos trintas? Mais me agarrei aos trintas. Eram muito piores do que os vintes, mas era o que havia. Amaldiçoei os quarentas? Mais malditos foram os meus quarentas. E assim sucessivamente.

     É como ir no Inter-Idades de Lisboa ao Porto, em que, depois de nascer em Lisboa, os 10 anos são Vila Franca, 20 anos são Santarém, 30 são Entroncamento, 40 são Pombal, 50 são Alfarelos, 60 são Coimbra, 70 são Aveiro, 80 são Espinho, 90 são Gaia e a morte é o Porto.

     A Pampilhosa ficou de fora para que se faça dela o que quiserem.

     Já que vamos todos a caminho do Porto, parando nas estações todas, faz algum sentido protestar que ainda não chegámos a Alfarelos? Que bom seria poder ficar sempre em Alfarelos!"

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Livros

Os livros, tenho a certeza, têm inúmeras utilidades, sendo uma delas - não sei bem se a principal - o de serem lidos, embora as gentes que estudam estas coisas, digam que são cada vez menos os que perdem tempo com isso.

Cá pela Casa, paradeiro de muitos desde sempre, os livros são, nas últimas semanas, uma ocupação diária não apenas para a leitura que sempre foi rotina, mas para uma nova arrumação. Os espaços que lhes são destinados não esticam e a ordem, apesar do suporte informático, é essencial para nos entendermos (eu e eles).  Passá-los de um lado para o outro permite, para além do manuseamento que, por vezes, não acontecia há anos, passar o pano do pó,

- já nem me lembrava deste ...

(re)ler o princípio ou o fim, ou ambos, intercalado por uma página "ao calhas". A tarefa está muito longe de ser concluída, mas ... qual é a pressa? Uma pequena alteração na ordem, o intercalar de mais um que estava ausente, um outro que regressou, provoca a desordem total e obriga a mais trabalho.

E para quê?

Porque dá gozo, traz recordações e transmite-lhes o conforto de se saberem lembrados, o que, para quem não fala e convive sem se manifestar, não deverá ser despiciendo.

Apesar do muito trabalho já desenvolvido, ainda não encontrei nenhum envelope com dinheiro, o que, como eu esperava, me diferencia claramente do outro e me garante que o Ministério Público, em princípio, não passará por cá para colaborar na (des)arrumação.

As eleições estão marcadas para 10 de Março do próximo ano e, até lá, ou muito me engano ou os resultados das investigações em curso não verão a luz do dia. 

É muito mais fácil arrumar livros ... 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Novos tempos

"(...) Cesse tudo quanto a antiga musa canta,
que outro valor mais alto se alevanta. (...)"
Os Lusíadas - Luís de Camões

Acabaram as notícias e as imagens das guerras. Num ápice, tudo se alterou e as atenções viraram-se para o pedido de demissão do Primeiro Ministro António Costa, que o Presidente da República aceitou de imediato.

Sobre António Costa recaem suspeitas da prática de ilícitos criminais e tráfico de influências, no âmbito da exploração do lítio e do hidrogénio, que levaram à detenção de personalidades que lhe são próximas, de entre as quais se destaca o seu Chefe de Gabinete.

A Procuradoria- Geral da República, o Ministério Público e a PSP (?) irão investigar com a habitual celeridade e eficiência, e apresentar as provas irrefutáveis que, quase de certeza, se encontram já disponíveis e bem guardadas.

Aguardemos, sentados, os capítulos seguintes da novela que hoje teve a sua estreia e que terá, nos próximos capítulos, as eleições antecipadas. 

Felizmente, serão as cruzes dos eleitores a determinarem as caras que virão a seguir.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Ecos

Como se uma não bastasse, agora são duas as guerras que abrem telejornais, preenchem primeiras páginas e, vejam só, alimentam a verve do nosso Marcelo que, apesar do imenso trabalho, ainda consegue dar um saltinho à manifestação e opinar em grande.

O fim destas catástrofes não se vislumbra, ainda que muitos milhares já o tenham sentido e sofrido. O  diálogo é coisa que não existe, apesar de toda a gente falar inglês fluentemente. 

Procura-se, analisa-se, opina-se, acontecem cimeiras, e nada. 

Como sempre, quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão mais pequenino que o grande nada com facilidade para fora da zona perigosa.

Talvez a solução apareça quando os americanos decidirem se querem ser mandados pelo mais velho ou pelo mais tonto!

domingo, 5 de novembro de 2023