sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Inventários

Passar por uma livraria é cada vez mais raro, dada a imensidão e facilidade com que se fazem compras por via informática. Porém, sempre que isso sucede, a tentação de entrar é enorme e a vontade faz o resto.

- Queria o livro ... e não o consegui encontrar.

Após uma consulta, a afirmação peremptória:

- Queria, não, quer! Temos dois e estão lá de certeza.

O equipamento consultado mantém o inventário actualizado e, por isso, seriam os meus olhos, velhos, a não vislumbrarem o que estaria à vista.

A menina, simpática, dirigiu-se ao sítio já por mim vasculhado e teve a mesma sorte. Não era dos meus olhos ...

- Ó F..., o computador diz que há dois ... e não estão ali.

- Vê na gaveta lá do fundo. Se não estiverem lá, estão no armazém.

Mais uns minutos e o regresso de mãos a abanar.

- Nós temos ... aguarde só mais uns minutos que eu já volto. Desculpe.

Fui lendo o outro livro que tinha escolhido (o que faltava era para oferta) e, claro, perdi a noção do tempo. Não faço ideia se foram cinco ou dez minutos. O relógio já me abandonou há tempos e o telemóvel estava, escurinho, no bolso.

- Peço-lhe muita desculpa mas, afinal, não temos. Alguém se esqueceu de dar baixa. Desculpe, mais uma vez, ainda por cima fartou-se de esperar.

Paguei o livro que estava nas minhas mãos já com várias páginas lidas, e saí. Meditei: o inventário não devia ser actualizado de forma automática? Se calhar não. Estou velho e não percebo nada destas modernices.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

A Tinta da China promoveu, no ano passado, um "Clube" de leitores do qual faço parte desde o início. Mensalmente, recebo um livro novo, ainda antes de esse livro ter entrado no circuito comercial, o qual circuito, diga-se, me parece ser cada vez mais restrito em qualidade e alargado em quantidade. A abertura da caixa que traz o livro, sempre acompanhado por uma "graça" de utilidade, cria alguma ansiedade, uma vez que não faço a mais pequena ideia do que irá surgir e estou (ainda) habituado a folhear quase todos os livros antes de os adquirir. Até aqui, têm sido sempre excelentes surpresas, que bem justificam a decisão tomada.

Há três dias recebi o exemplar deste mês. Nele,  António Mega Ferreira faz um roteiro por palavras perdidas no tempo, ordenando-as alfabeticamente, debruçando-se sobre a sua origem e divagando sobre as razões que as levaram ao desuso. O autor refere, no preâmbulo, que apenas utilizou 80 das 250 palavras que inventariou. Dei por mim a confirmar que o meu "computador" já colocou no seu "lixo" tantas palavras bonitas ...

"(...) FINEZA - Há mais de meio século era corrente ouvir, em qualquer loja da Baixa, pedir a fineza de, solicitar um obséquio, reclamar a bondade de. Eram tudo formas mais ou menos preciosas (estas eram mesmo preciosas) de pedir um favor, demandar um serviço, chamar a atenção. No tabuleiro dos rituais de interação social, tanto como as formas de tratamento ("você é estrebaria" era a condenação comum de uma forma que agora se tornou corrente, tal como há 50 anos previa Luís Filipe Lindley Cintra, no seu ainda hoje fundamental estudo Sobre Formas de Tratamento na Língua Portuguesa, publicado em 1972), as saudações e fórmulas de cortesia tinham uma gradação exigente, cuja valorização social classista sempre espreitava por trás da expressão utilizada. Aliás, Cintra sublinhava que a relativa maior complexidade das formas de tratamento no português europeu (o que é usado em Portugal) refletia uma hierarquia social muito rígida, definida e gradativa. Quando em 1974 se abriram as comportas do discurso e da interação, tudo isso foi varrido no lapso de uma geração. Antigamente, a fineza e o obséquio eram um suplemento de cortesia que mascarava um mal-estar social, uma espécie de insegurança no relacionamento com os outros. Normalmente, o seu emprego era desproporcionado em relação ao favor que se pedia. (...)"

Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas
António Mega Ferreira

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Rugas

Foi há 48 anos, tantos quantos durou a ditadura, que alguns quiseram que a primavera de Abril de 1974 voltasse ao Inverno do Maio de 1926. Felizmente, não conseguiram. A maioria não era silenciosa e fez barulho suficiente para que se encolhessem. 

Com outros paninhos, outras conversas mas, ainda assim, de dedo em riste, estão a (res)surgir alguns com saudades daquilo que, na sua maior parte, não viveram. E, por vezes, parece que têm alguma audiência ...

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Opções

Há muitos anos, quase no tempo em que os animais falavam, participei num colóquio, dirigido pelo jornalista Joaquim Furtado, sobre formas de fazer (ou não fazer) rádio. Era a época da ascensão das "rádios pirata" e, a dada altura, o jornalista deu a sua ideia sobre a condução de uma emissão de rádio e da manutenção do microfone aberto. Nunca mais esqueci o conselho.

- É simples. Se não tem nada para dizer, ponha música, de preferência boa.

Estou nessa situação. Por isso, música, se possível boa.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Novas

Novas, há novas, gritou Bocage quando chegou à praça, perante o pasmo dos aí presentes.
- Compradinhas agora mesmo, disse, exibindo as botas novas que calçava.

Dia cheio de novidades ou talvez não.

Chegou o Outono, como acontece todos os anos, que eu me lembre; comemoraram-se 200 anos da primeira Constituição Portuguesa; os russos iniciaram os referendos para tentar legitimar a invasão da Ucrânia; a guerra continua, ainda que com menos directos das televisões e menos comentários dos "sabões"; os preços aumentam e toda a gente se lastima, até os que estão a ganhar, e muito, com isso; o Ministério Público abriu mais um rigoroso inquérito já não me lembro sobre quê, mas isso não tem importância nenhuma; Portugal anunciou, através de António Costa, que se vai candidatar ao Conselho de Segurança da ONU, para o biénio 2027/2028, com a esperança de que a guerra já tenha acabado nessa altura, acrescento eu.

São assuntos e acontecimentos relevantes, aos quais todos devemos dar atenção e manifestar o nosso apreço. Felizmente que não são os únicos e que há algo mais importante que acontecerá hoje e marcará o futuro e a história do país, sem qualquer dúvida.

Costa receberá Montenegro, ambos acompanhados por dois ajudantes, que pouca relevância terão no diálogo que vai acontecer. Os dois, neste primeiro dia de Outono, vão abrir as páginas dos estudos que hão-de determinar a localização do futuro aeroporto, as quais ainda se encontram em branco, mas deverão ser preenchidas nos próximos 50 anos e dar lugar a um Livro Branco sobre as vicissitudes que justificarão o atraso e a importância da obra, que demorou muito tempo, obrigou a tantos estudos e tornou a conversa sobre o assunto insuportável.

O parágrafo anterior é longo, fastidioso e chato de ler, tal como a tarefa que está em cima da mesa.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Pescador

Aquele professor era famoso pelas estórias que contava nas aulas. Antes da matéria havia sempre alguma nova, que prendia a atenção de toda a plateia e fazia o tempo passar mais depressa. Muitas aulas houve que só foram reais nos últimos cinco minutos ou, se a campainha tocava, apenas por uns instantes, para lembrar os temas que deviam ter sido tratados. 

Dizia ser um caçador exímio, um pescador ainda melhor, jogador de xadrez e damas imbatível, imparável com uma raqueta de ténis de mesa nas mãos, tudo isto numa verborreia impecável, clara e sem hipóteses de contestação ou contraditório, palavras que não constavam do vocabulário acessível por aquela época. Falava de música, a sério e não essa coisa eléctrica que vocês ouvem. Desliga-se a ficha, acabou. Na única vez que se disponibilizou para as damas, com o I., perdeu. Nunca mais se sentou frente a um aluno, com o tabuleiro pelo meio. De vez em quando dava umas bolas no ténis de mesa, mas jogar, nem pensar.

- Imaginem que ontem fui à Foz. O dia estava lindo e o mar com a cor maravilhosa do costume. Saí do carro e olhei lá bem para o fundo. O cardume ia a passar. Voltei de imediato a casa, peguei na cana de pesca, fui a S. Martinho e ainda os apanhei quase todos. 

Sorrisos escondidos, olhares cúmplices, tudo excitado e alertado pelo toque da campainha.

- Há dúvidas? O ponto (agora diz-se teste) é na próxima aula e não vai ser fácil!

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Confissão

Em cada dia que passa me sinto mais compelido a penitenciar-me de um defeito de que padeço e que, nesta época de incertezas, se acentua a um nível que nunca pensei ser possível atingir: sou invejoso.

E é tão feio ter inveja! Para atenuar o castigo que este meu pecado merece, esclareço que não me invejo de quem tem carros, parelhas e montes, mas apenas desses privilegiados a quem o criador dotou com a capacidade e inteligência que lhes permitem nunca se enganarem e raramente terem dúvidas.

O Orçamento Geral do Estado irá ser, de acordo com a lei, apresentado na Assembleia da República, no próximo mês. Os "matemáticos" das projecções não se cansam de enunciar os números que vão acontecer, o crescimento do PIB que surgirá, o aumento inevitável do petróleo e dos tomates, os prejuízos a suportar pelas empresas, a razia nas disponibilidades das famílias, as receitas e as despesas do Estado, tudo em relação ao ano de 2023, com a certeza, certa, de cada um, sendo esta diferente da de todos os outros e a única inquestionavelmente correcta.

Os ilustres estudiosos e, por isso, sabedores, apresentam números rigorosos, apesar de, por definição, um orçamento ser sempre previsional, carregado de dúvidas e contingências, e sujeito a vicissitudes e imprevisibilidades que podem, e vão, surgir. As certezas, sempre antecipadamente exibidas com o calor próprio de quem domina todos os dados e sabe do que fala, desapareceram quando ninguém conseguiu adivinhar a pandemia e serão deitadas ao lixo se a vontade bélica daquele caramelo russo se mantiver.

Gostava tanto de saber (também sou curioso, outro defeito) o que se vai passar até ao final deste ano e, mais ainda, o que surgirá em 2023. Humildemente reconheço que me falta a capacidade de alguns e que, invejoso, invejo.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Gordo

A proeminente barriga dificultava-lhe os movimentos. Sem solução. Não havia remédio que resolvesse o problema. Era assim e pronto. Toda a gente lhe dizia que comia demais e ele tinha plena consciência disso. Que havia de fazer? Para ele, a mesa era um altar de preces e a comida, o meio de concretizar a devoção.

Todos os dias, quando balanceava o que havia feito, prometia corrigir o seu vício no dia seguinte. As razões que justificavam essa vontade ele sabia-as bem: a mobilidade era cada vez menor, os fatos cada vez mais apertados e difíceis de arranjar, as tarefas a complicarem-se todos os dias, a paciência para escutar recriminações e conselhos a desaparecer.

- Amanhã é que vai ser!

E não era. Comprometia-se para o dia seguinte, bem sabendo do falhanço antecipado.

- E se jejuasse um dia. Talvez resultasse.

Tentou. A manhã passou sem problemas de maior. A hora do almoço chegou e a vontade de comer manifestou-se. Bebeu água, muita, de tal maneira que a bexiga se queixou e obrigou-o a dar-lhe a importância como, até aí, nunca tinha acontecido. Passou ao lado do lanche e recusou a oferta de um colega para o cafezinho das cinco.

Iria voltar para casa e talvez as coisas se compusessem. Foi exactamente o contrário. O regresso revelou-se difícil. O cérebro não dava tréguas nem permitia que outros pensamentos desanuviassem o sofrimento, que já era atroz. A mesa posta e a comida saltavam à sua frente. O estômago fazia-lhe cócegas. A cabeça começava a doer. Desistiu.

Entrou no primeiro restaurante que lhe apareceu pela frente. Sentou-se e pediu comida, com urgência. O que houvesse feito e pudesse ser comido no imediato. Saciou-se a preceito, fazendo vista grossa à estupefacção de todos face à quantidade ingerida e à sofreguidão exposta.

Nunca mais repetiu a experiência. A cada comentário ou conselho que lhe transmitem, responde sempre:

- Mais vale ser gordo do que ficar maluco!

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Despedidas

Depois de umas enormes chuvadas acompanhadas de estrondos bem audíveis vindos lá do céu, a intempérie acalmou e já não justifica o aviso amarelo em vigor para o dia de hoje. Isto no que ao Oeste se refere, bem entendido, porque do resto do país a minha ignorância é grande. Não foi dia de saída, o aconchego da casinha ditou a sua lei e as notícias não contemplaram o tempo. Outros valores mais altos se alevantaram.

A varanda mostra agora um sol radioso na Foz e a imaginação diz que o mar deverá estar tão bom como esteve ontem. Não vale a pena ir confirmar. Os próximos dias hão-de dar de presente de despedida desta época balnear e de introdução ao ingresso outonal mais um ou dois dias de água morna e mar calmo.

De despedida definitiva foi o dia lá pelo Reino Unido, com o funeral da Rainha Isabel II a ser, finalmente, concretizado, com todo o acompanhamento real e importante presente e ido de todas as partes do mundo. Marcelo representou todo o Portugal, junto do país com quem mantemos a mais antiga aliança e que nos safou nas invasões francesas. As televisões encarregaram-se de transmitir o espectáculo lacrimejante, que há-de ficar na história dos directos televisivos ... enquanto houver televisão.

A rotina vai regressar em breve, com a guerra, a inflacção, o tempo, as reformas e as taxas de juro na ordem do dia, ou da noite, uma vez que já falta pouco para que os principais jornais televisivos sejam transmitidos com o sol desaparecido há muito. Até Janeiro, os dias serão cada vez mais curtos, mas isso pouco importa a quem trabalha. Já ninguém moureja de sol a sol ... felizmente. 

domingo, 18 de setembro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) É natural um engenheiro sonhar-se feito só de gestos simples. No dia em que conheceu Camille, Tomass prometeu a si mesmo evitar gestos extraordinários. Por outras palavras, ia guardar as mãos nos bolsos. Por outras palavras, ia manter as mãos no sítio. Falhou, naturalmente. Tomass aproximou-se de Camille como se o instante estivesse ao mesmo tempo a acontecer e a ser manuscrito. O momento não era um destino, era uma descoberta. Ainda pensava ter as mãos nos bolsos, já Tomass era um fetiche entre os dedos de Camille. Sentiu a cabeça reduzida às dimensões de um totem do pacífico, a imagem diminuta de um rinoceronte estereotipado, dois cornos, um grande e um pequeno, a pele tesa por fora.

- Este é o meu corpo - disse Tomass, a medo.

- Eu sei.

Camille sabia. Era mulher capaz de construir um homem novo, de baixo para cima, sem aquele respeito exagerado pela alma. Camile era a respiração do quarto e a arquitetura do dentro, era vontade, embora carne. Carne! Que palavra agradável, carne! Devia ser proibida!

- Eu sou uma liberal, mas no bom sentido.

- Pois, já vi. Não conhecia.

Camille elevava-se acima de Tomass, como o mar, feminino em francês, masculino em português e feminino e masculino em espanhol, dito castelhano. Camille era um mar afirmativo, em inglês, língua franca, feliz e fácil. Camille era o chefe, o patrão, o capataz. Gerações consecutivas de bondade e maldade repovoavam a atmosfera do quarto, alterando o clima, derretendo os gelos e resgatando do frio mamíferos minúsculos, irreconhecíveis a pequenas distâncias.

- Liberal à europeia ou à americana?

- À americana, claro.

- Eia, grande coração! - exclamou Tomass, deliciado.

Quando éramos peixes
José Gardeazabal
Companhia das Letras (2022)

sábado, 17 de setembro de 2022

Números e jogos

Os jogos de cartas são, sempre o foram e continuarão a ser, inúmeros e variados. De meros divertimentos sociais aos de batota, que faziam os mais distraídos ou menos hábeis perderem dinheirinho, havia, e há, de tudo.

Jogar à bisca lambida, à sueca, à canasta ou ao king fazia parte da actividade lúdica e era pretexto para encontros e conversas que se prolongavam pela noite dentro. Atravessavam todas as classes, ainda que a bisca lambida não fosse presença num serão de canasta. 

A lerpa, o montinho, o sete e meio, a bogalhinha ou a vermelhinha exigiam discrição e muito cuidado, não fossem as autoridades aparecer e estragarem a diversão, com a calma que lhes era habitual ...

Estas lembranças não serão alheias à escolha do número de porta abaixo "azulejado", por não parecer credível que a autarquia tivesse atribuído "meio" número a uma habitação. Nunca se sabe ... na mesma rua, há dois números "6" e não se vislumbrou ninguém que estranhasse o facto, a não ser um mero viajante sem mais nada com que se preocupar.




sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Evolução


A porta, também envidraçada, era, porém, estreita e dava acesso à oficina, também ela exígua. Estava sempre aberta e proporcionava uma vista "larga" para o conteúdo. O banco de trabalho era um pequeno tripé de madeira, onde o senhor D. se sentava, pressuroso, a cuidar das encomendas. Usava um bigode grosso, já bem mesclado de branco. Era bonacheirão e bem nutrido ou, como se diria hoje, com algumas adiposidades.

Com excepção dos breves instantes que demorava a deslocação à tasca, onde saciava a sede com um copinho tinto, dos pequenos, já se vê, estava sempre lá.

Ele e a sovela, a forma com três medidas, a cera, a linha, a faca sempre afiada. Fossem gáspeas ou meias-solas, protectores de biqueira ou brochas para proteger as solas, numa carreirinha toda à volta, tudo ele fazia ou consertava.

O senhor D. era sapateiro. Com a evolução que determina ser preciso mudar alguma coisa ainda que tudo fique na mesma, hoje seria reparador de calçado ou, com estudos, técnico superior de reparação de calcantes.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Sinalização

Expressiva e, tudo o indica, deveras eficiente, como é raro ver-se no país.

Não havia sinais odoríferos ou outros, evidenciando que alguém houvesse prevaricado e infringido o determinado por mão popular preocupada.

O sinal será candidato à nova versão do Código da Estrada.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Exercício...

... fundamental e garantidamente melhor quando enquadrado por profissional dedicado e competente.


terça-feira, 13 de setembro de 2022

Aulas

As minhas aulas sempre começaram no dia 7 de Outubro, após três meses de férias grandes, acessíveis apenas a alguns, anote-se. Outros aproveitavam-nas para irem treinando o trabalho que não tardaria a reclamar a sua presença em definitivo.

Esta invenção de diminuir as merecidas férias e dar início à estopada das aulas ainda Setembro não vai a meio, é muito recente e não se afigura de grande efeito. Basta ver e ouvir as notícias para perceber que há muitos alunos sem professor e muitos professores sem alunos, em resultado das doenças que os afectaram nos últimos dias.

Tudo isto acarreta dificuldades que não aconteciam no meu tempo, época em que os alunos eram "meia dúzia de gatos pingados", que gozavam bem as grandes férias ou conseguiam, mesmo não as gozando, atravessar os atalhos sinuosos que davam acesso à nesgazinha da porta de acesso à escada.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Transformações

"... nada se perde, nada se cria, tudo se transforma."

O azul passa a cinzento e o verde a amarelo. Quem diria ...

domingo, 11 de setembro de 2022

Diversidade

Crianças choram ao colo,
Riem, nos jogos, miúdos.
Os velhos pisam o solo,
Na borda, peixes graúdos.

sábado, 10 de setembro de 2022

Surpresa

Aguarde só um momento!
Não vai poder passar!
Acontece casamento
E a testemunha é o mar!

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Escuridão

Os estores estão sempre corridos, as portas e as janelas fechadas. Vivem enclausurados em casa e passam dias sem dela saírem. Os contactos resumem-se a um meneio de cabeça, com um sussurro de saudação.

O "chefe", logo pela manhã, vai comprar o pão. Rapidamente regressa ao "paraíso", onde tudo se encontra blindado. A porta abre-se. Fecha num instante, não permitindo indiscrições internas. Se o carteiro ou alguém toca a campainha, abre-se uma nesga para ouvir o que o visitante tem para contar ou entregar. Tudo extremamente rápido, que há muito para fazer internamente.

À noite, o "chefe" pega no carro e vai dar uma volta, normalmente sozinho. Não demora muito! As luzes são apagadas ainda antes de o carro estar devidamente arrumado no quintal. Raramente a família sai em conjunto e, quando isso acontece, é uma aventura digna de registo. O chefe instala-se ao volante; uma das filhas traz um saquinho, que coloca na mala; a outra surge daí a pouco, com outro saquinho, que vai para o banco de trás; a mãe é a última a chegar, movendo-se com alguma dificuldade e trazendo mais um saquinho.

Com toda a gente instalada, o "chefe" põe o motor a trabalhar. Alto! Falta qualquer coisa! A mãe sai e o motor continua a fazer barulho. Por pouco tempo. O "chefe" acha a demora muita e a gasolina está cara. Desliga-o. A mãe regressa, sem nada nas mãos. Instala-se no "lugar do morto". Sai a filha mais velha. Não demora quase nada e traz mais um saquinho. Finalmente, estão reunidas as condições para a viagem e a marcha inicia-se. 

Regressarão à noite, já no sossego e com a reserva de que tanto gostam. 

A conta da luz deve ser enorme ou serão corujas?

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Palavras bonitas

   CRUELDADES

Sou da condição
do voo
vivo no gume da faca

na própria ferida
da ferida
se o poema desacata

E se as palavras invento
visto-as com os punhais
e os espinhos do pensamento

Evito silvas e frestas
as crueldades fatais
retiro o selo do lacre

Misturo o muito e o mais

Paixão
Maria Teresa Horta
D. Quixote (2021)

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Independência

Mesmo quando o afã do dia deixa pouco tempo para pensar nos rabiscos, há um esforço para alimentar este vício, que começou em 2006 e, desde Abril de 2020, a pandemia permitiu ou obrigou a dar-lhe comida diariamente.

Hoje comemoram-se 200 anos do Grito do Ipiranga, gritado por D. Pedro IV, de Portugal, I do Brasil e o nosso PR foi lá, para assistir às festas. A avaliar pelas notícias e pelas conversas de muitos brasileiros que para cá vieram, a situação naquele país agrava-se todos os dias, com muita gente a passar fome. Bem ou mal contados, são referidos cerca de trinta milhões de brasileiros, três vezes a população de Portugal.

É quase certo que o "caramelo" que por lá manda terá uma explicação para isto. O meu problema é que não consigo ouvi-lo e muito menos entendê-lo, por não perceber patavina do que ele diz, sempre com aquela boca cheia de favas.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Inflação

"Deveria ter sido mais cedo. Receber agora implica receber menos em 2023. É pouco. Para fazerem isto, mais valia estarem quietos. As coisas estão todas a aumentar, até o pão. Sou contra. Acho que podiam pagar muito mais. Já não se aguenta."

"Aguenta, aguenta", afirmou há uns anos um reputado banqueiro, numa outra crise. Aguentou-se mesmo e não houve medidas excepcionais. Cada um fez pela vida e só houve "passos" próprios para ultrapassar os problemas. Memórias curtas ...

Marcelo, sempre atento, aproveitou para transmitir urbi et orbi que o PSD tinha sido fundamental, ao fazer propostas que obrigaram o governo a tomar decisões. O colinho dá sempre jeito e fica para memória futura. O PR sabe bem disso. É importante estar sempre presente e ter protagonismo, tanto mais quando se está de partida para o Brasil e não se sabe como a viagem irá correr.

Os comentadores, barões, marqueses ou duques, puxaram dos seus galões, analisaram, fizeram contas, estudaram ao pormenor, foram ao âmago das questões, ao cerne das coisas, aos interstícios da economia, aos meandros das finanças, aos números do orçamento, às projecções claras e convincentes do que vem aí e, com o brilhantismo do costume, concluíram, sem margem para quaisquer dúvidas:

- Era possível fazer muito mais, como o futuro demonstrará.

Se correr mal e tudo isto ficar mais complicado, os mesmos de agora virão dizer que, afinal, tudo era previsível e só não viu quem não esteve atento.

A guerra continua a todo o gás ... ou sem ele!

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Cabelos

Podia ser à escovinha, uma carecada, à tijela, rente, rapado à navalha ou só tesoura. Era sempre na barbearia e o barbeiro, responsável, dizia umas larachas, contava umas novidades, falava do Benfica e, no final, despedia-se:

- Então até para o mês que vem.

Muito legitimamente foi de férias. Avisou mas a cabeça já não é o que era, e o cabelo continua a crescer. É necessário pô-lo em condições de não se enrolar e de não dar muito trabalho a secar quando se sai do mar. 

Há sempre uma primeira vez para tudo! 

Hoje é dia de experimentar uma nova sensação, que terá início às 19 horas, hora tão estranha para cortar o cabelo que, mesmo puxando a memória, não me lembro de alguma vez ter acontecido. 

Depois de muitos anos a caminhar para a mesma barbearia, o cabelo vai ser cortado por um técnico a sério, devidamente habilitado, moderno, actualizado, instalado numa barber shop. Imagino que será bué da fixe, tipo festa, durará uma beca e não será uma coisa tipo xata.

Não deverá ter larachas, nem conversas da treta e muito menos do Glorioso. Vamos ver se saio de lá tipo  bué satisfeito.

Sempre a aprender! 

domingo, 4 de setembro de 2022

Ânsias

Tropeçou num calhau, caiu desamparado, fez um galo na testa. A mãe, ao apalpar a saliência, calou o choramingas, dizendo:

- Vai cantar à meia-noite.

Não cantou. No dia seguinte ainda estava negro. Devia ter posto gelo. O frigorífico tinha ido de férias. Dois dias depois o galo já não existia. O aviso surgiu, solene, como convém a qualquer aviso que se preze.

- Tens de ter cuidado. Não podes andar sempre a correr, a escaravelhar, a saltar como as cabrinhas. Só me dás fezes!

Nunca parava quieto e a mãe, como todas as mães, preocupava-se.

- Parece que tens bicho carpinteiro.

Não tinha bicho. Era a curiosidade que o movia. A ânsia de ver, de perceber, de saber. Ouvia, perguntava, muitas vezes obtinha como resposta um esclarecedor

- Cala-te!

e continuava a cuscar, a espreitar com receio de que algo escapasse à sua reduzida sagacidade e à dificuldade de entender os adultos. Esforçava-se, mas era difícil, muito difícil.

A concentração era pouca ou nenhuma. A atenção dispersava-se de um lado para o outro, com a elasticidade da gazela e a velocidade da chita. Os olhos percorriam tudo e acabavam por nada reter. Tudo era novo, aliciante, provocador, interessante, estimulante. E tinha "pressa de saber, que a vida é água a correr". 

Cresceu. Manteve a curiosidade, a pressa, a ânsia, o estímulo do desconhecido.

Se tivesse crescido hoje, era hiperactivo e talvez fosse medicado com Ritalina ...

sábado, 3 de setembro de 2022

Sonhos

Li, ouvi, ou sonhei que Mário Laginha e Pedro Burmester estão a preparar um espectáculo a dois, apenas com músicas de Bernardo Sassetti.

Vou estar atento e tentar não perder. Infelizmente, a três nunca mais será possível. Ficam os registos para recordar sempre.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Comboios

Caminhamos a alta velocidade para o final do ano e nem sequer utilizamos o TGV de que tanto se fala e nunca mais cá chega.

Continuamos a ter as ronceiras automotoras como as que, há quase meio século, me serviam de meio de transporte daqui para a capital e de lá para cá, só aos fins de semana e não em todos. As viagens, num e noutro sentido, eram agradáveis. Permitiam sempre pôr um pouco do sono em dia (ou em noite), sentado ou deitado, consoante a disponibilidade do banco. O "pica" surgia na carruagem após uma das muitas paragens, em todas as estações e apeadeiros, e, se era simpático, seguia em frente e não perturbava o sonho do dorminhoco. Se não o era ... abanava com força o ombro e o bocadinho de papel era subtraído ao bolso e entregue quase sem que os olhos se abrissem. Depois, era aguardar pelo túnel do Rossio ou pela chegada às Caldas. Na época, duas horas de sono, mesmo que solto, eram muito importantes.

Ouve-se dizer que é desta! A linha do Oeste irá ser completamente remodelada, electrificada e, dentro de dois anos, permitirá que uma ida a Lisboa se faça em pouco mais de uma hora, confortavelmente sentado e sem as pernas encolhidas. Nessa altura, a procura deverá impedir que haja gente deitada no banco, mas compensará.

A ver vamos! 

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Espelho

Pela manhã, quando o dia ainda nem tinha percorrido um terço do que lhe estava destinado, já o "homem do espelho" ali se instalava, preparado para, como é costume, me questionar acerca da barba, dos cabelos brancos, das rugas, da cara de caso em razão da noite mal dormida, dos planos para as tarefas do dia, tudo o que lhe vem à cabeça e despeja sobre mim, sem preceito nem respeito, enquanto a cara é ensaboada e antes de a lâmina começar a (des)fazer a barba.

Surpresa! Hoje não foi assim, porque toda a regra tem excepção, sabe-se há tempos infinitos.

- Não vale a pena gastar "latim" a dizer-te que estás velho. Toda a gente vê e tu melhor que ninguém. Lembro-te apenas, para a eventualidade de te teres esquecido, que o teu filho faz hoje anos e que, até para ele, o tempo passou num instante.

Estava eu, meio aparvalhado às voltas com a espuma de barbear, à espera que surgisse do lado de lá alguma coisa nova, uma ideia genial, uma descoberta providencial, qualquer coisa que me diminuísse a santa ignorância e ele sai-se com aquela vulgaridade.

- Que novidade ... Isso sei eu há quarenta e um anos e não preciso que me lembres!