sexta-feira, 28 de abril de 2023

Futuro

António Gedeão escreveu na sua "Pedra Filosofal" que o sonho comanda a vida e sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança. 

Abril abriu as portas ao sonho, criou expectativas para um futuro melhor, um homem novo, uma vida digna, uma abertura ao mundo, o derrubar de muros, o acesso ao saber, a visão crítica, a opinião sem rodeios nem receios.

O tempo vai esmorecendo a cor do céu, tornando o azul cada dia mais cinzento, trazendo à tona o se da dúvida, a incerteza da onda, a ambiguidade da água que cai sem cuidar da existência do chapéu de chuva. 

Por muito que os dias passados influenciem e determinem o pensamento, parece ser fácil e correcto concluir que vivemos tempos novos como, quase de certeza, sempre aconteceu e isso não impediu, antes facilitou, a evolução do mundo e a sua melhoria indiscutível.

Espreitando pela janela do pessimismo, vemos a guerra, a inteligência artificial, a miséria de uns e a opulência de outros, as alarvidades dos doutos sabedores do óbvio, as eternas cabeças que tentam controlar e impôr o correcto, o bom, o moral, o devido. E que ambicionam uma sociedade acrítica, onde eles apareçam como únicos sabedores e salvadores.

Fechando essa janela e abrindo a porta do futuro, deparamos com gente de elevado nível, contestária nas ideias e com pensamento próprio, sem medo de exibir as suas diferenças, desenvolvendo o seu saber e não se encolhendo nas suas opiniões. O mundo será deles, por muito que custe aos que sobem o escadote e partem os degraus para tentar evitar que outros cheguem. Por muito que barafustem e pateiem, falem e gritem, não conseguirão manter o equilíbrio instável que a sofreguidão lhes dá e lhes irá provocar uma queda estrondosa. 

O sonho comanda a vida!

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Retorno

O caminho do blogue já vai longo - começou no dia 15 de Maio de 2006 - e, com maior ou menor esforço, mais ou menos qualidade, tem mantido uma existência regular, com opiniões, estórias, críticas, evidências e muitas outras tentativas de ser claro, o que quase nunca acontece, por deficiência intrínseca do autor.

Nos primeiros anos, postava-se sem quaisquer obrigações de o fazer diariamente, antes escrevendo apenas quando apetecia e parecia haver qualquer coisa interessante para registar. A pandemia alterou tudo na nossa vida e também no blogue. Desde 16 de Março de 2020 e até hoje, todos os dias apareceu por aqui alguma coisa, melhor ou pior, com mais ou menos interesse, uma parte significativa até perfeitamente dispensável e sem qualquer conteúdo.

Curiosamente, reparei agora, as duas datas estão relacionadas com a cidade: o começo aconteceu no dia 15 de Maio, feriado das Caldas e Dia da Cidade e a escrita diária iniciou-se em 16 de Março, data na qual se comemora a tentativa de golpe que antecedeu o glorioso 25 de Abril.

A pandemia, felizmente, já nos deixou e chegou a altura de voltar aos primórdios. O blogue não vai encerrar mas o "castigo" de o ler diariamente acaba. O trabalho, o lazer, o turismo, a pressa de fazer o que ainda não foi feito, despertam vontades, acicatam ideias, trazem ocupações que tolhem compromissos, que a idade dispensa e a vontade não quer. Talvez vão surgindo coisas bem mais interessantes e menos maçadoras. Nunca se sabe!

Tem muito mais piada a surpresa!

terça-feira, 25 de abril de 2023

Liberdade

A minha amiga Liberdade e eu próprio festejamos o aniversário na mesma data. E é hoje! Eu levo uns bons anos a mais, tive o privilégio de a ver nascer e de participar nos seus primeiros passos, choros e sonhos, acalentando com ela a esperança de ver o sol nascer para todos e que o dia fosse o inicial, inteiro e limpo de um futuro risonho e próspero.

O tempo passou e em ambos parece estar a deixar marcas. Para mim, não será de estranhar que os 71 tenham trazido algumas maleitas, incómodos, com dor aqui, com dor ali, com cor acolá, o costume. Nela, bem mais nova, é que é preocupante. Ainda nem chegou aos cinquenta e todos os dias se notam os efeitos que algumas ervas daninhas lhe vão causando, parecendo até, em algumas situações, que há quem queira o regresso daquela agricultura de antanho, com as enxadas na mão, a fome e o medo do "vizinho" que pode bufar sem ninguém notar ou saber. 

Causa algum incómodo ouvir e ver gente que já nasceu nos dias claros a pretender dar lições e a clamar sem conhecimento e, pior, sem educação. Pensando bem, nem merecem ser escutados.

A minha amiga Liberdade há-de sobreviver a toda essa gentalha e eu espero continuar a acompanhá-la, para meu bem, dela e de todos os que por cá continuarem.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Prémio Camões

Chico Buarque recebe hoje o Prémio Camões, que lhe foi atribuído em 2019 e cujo diploma não obteve a assinatura do "boneco" que estava Presidente do Brasil. Chico era um estorvo para o regabofe que o tal e os que o acompanhavam pretendiam levar a cabo.

São do romance "Estorvo" as palavras que se seguem e que aprovam Chico Buarque também como um grande escritor, a par do músico excepcional que é.

"(...) Fazia tempo que não vinha aqui de noite, e quando vi à distância a nova iluminação do condomínio, pensei que fosse uma filmagem. Um aparato de holofotes azula os paralelepípedos, devassa as árvores por baixo das copas e ofusca a vista de quem chega. Não localizo o vigia que pede para eu me identificar. É mais um vigia, são várias vozes que repetem o meu nome como um eco na guarita. A resposta também chega em série, e tenho que ouvir "não consta da lista", "não consta da lista", "não consta da lista". Depois ouço uma risada que vai e volta, e uma cigarra emaranha-se nos meus cabelos. Não sei de que lista estão falando, só quero deixar uma mala na casa 16, e devo ter algum problema porque as vozes vão-se alterando. Perguntam o que trago naquela mala, e antes que eu possa responder, uma silhueta arranca a alça da minha mão. Apesar do tranco, fico agradecido; a mala encontrou seu destino e estou afinal solto dela. Penso que estou solto de tudo, que a cidade me espera, mas quando ensaio a retirada, umas garras penetram meu braço e arrastam-me de volta ao foco de luz. Um camarada de jaquetão bege vem-me abraçar, depois desce as mãos pelas minhas costas, apalpa as minhas nádegas, virilhas, coxas, atrás do joelho, e está revistando meu tornozelo quando chega um carro grande e preto com vidros fumés. Abre-se um centímetro na janela da frente, e o homem que está na direcção fala um nome comprido de mulher. A guarita acha que está bom e acciona o portão electrónico, mas o carro não dá a partida. Uma voz de mulher pergunta se não quero subir. Procuro a mulher no clarão da guarita, mas a voz vem da treva do fundo do carro preto. Todos os vigias baixam da guarita para atender à voz, falam "positivo madame", em seguida o chauffeur sai do carro e abre a porta de trás para eu entrar.(...)"  

Estorvo
Chico Buarque
Publicações Dom Quixote (1991)

domingo, 23 de abril de 2023

Dia Mundial do Livro

Há muitos anos que, diariamente, comemoro o livro como objecto essencial para o meu bem-estar. Pouco ou muito, todos os dias leio (n)um livro e disso retiro sempre prazer, mesmo quando acontece a leitura não me ser agradável. Raramente coloco um livro de lado sem chegar ao fim.

Não atribuo grande importância às comemorações do dia disto e daquilo, que são, na maior parte das vezes, meras acções de marketing destinadas a promover o gasto, mesmo que o objecto acabe por não ser consumido. O importante é comprar!

O livro é um caso especial. Pela importância que teve, tem e irá continuar a ter no desenvolvimento do saber e por parecer que se encontra em vias de extinção e a ser cada vez mais decorativo e menos folheado. O livro é, como definiu António Lobo Antunes, "o ouvido que se encosta à terra para escutar o mundo". 

Os meus continuam por aqui, amontoados e a ocuparem cada vez mais espaço, obrigando a retirar os da frente para alcançar os escondidos lá atrás, e a ter um cuidado extremo na "catalogação", para que seja possível saber onde param. A lógica da arrumação ajuda mas é a base de dados que garante a descoberta sempre que necessário.

E para quê, perguntam os mais novos. Hoje lêem-se livros no PC, no tablet e até no telemóvel, sem peso a segurar e a transportar e sem ocupação de espaço em casa.


sábado, 22 de abril de 2023

Flores murchas


De acordo com a informação prestada pelo autor - o meu amigo ADS - a flor tem grandes dificuldades em abrir as pétalas, fazendo-o apenas por volta do meio-dia. Talvez seja a demonstração do mal que causam as grandes noitadas, alimentadas por grandes comezainas e melhores beberragens. O que é estranho é isto acontecer na capital e a flor conseguir dormir toda a manhã, com aquele ruído ensurdecedor que a cidade emite bem antes de o sol raiar.

Até aqui, tudo dentro da normalidade a que está sujeita uma desgraçada de uma bela flor, que tem de viver naquela confusão de gente, trânsito, poluição. Todavia, consta, aqui pela província, que a coitada da flor também sofre muito com os "sabores" de Itália que perpassaram recentemente pela Luz e por Alvalade e lhe trouxeram muita preguiça. Ou será desgosto?

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Incertezas

A notícia sobre o seu desaparecimento foi reproduzida aqui, admitindo-se que o Fofinho, dado o tempo decorrido, já se tivesse fartado da má vida e regressado a casa.

Pelo que parece, assim não aconteceu. O Bairro tem cartazes colados em inúmeros sítios, ressaltando até uma segunda impressão, já sem o nome em escrita manual, para que se torne mais fácil a toda a gente, incluindo os pitosgas, entender a mensagem e colaborar na procura.

Pobre bichano. Deve estar sofrendo muito ou, pelo contrário, arranjou uma nova família de acolhimento que o apaparica de tal forma que já nem à rua vem, para não correr o risco de se cruzar com os antigos donos e regressar ao cativeiro.

Outra hipótese a equacionar será a possibilidade de o gatinho ter querido a sua alforria e ter apanhado o comboio para bem longe, onde ninguém o condicione nem obrigue, usufruindo da liberdade que lhe é intrínseca e que os humanos cerceiam quase sempre. 

As incertezas fazem parte do dia a dia de cada um de nós e tornam a vida muito menos sensaborona do que seria se tudo fosse claro e com resposta antecipada e um problema tão banal como o desaparecimento de um gato pode, afinal, colocar tantas alternativas e incertezas quantas a imaginação conseguir levar a cabo. 

E nem sequer foi consultada a Inteligência Artificial, que nos mostraria milhares de hipóteses, sem contudo fazer aparecer o Fofinho.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Birrinhas

Ainda não é desta. Marcelo mantém as suas dúvidas sobre a eutanásia e torna a devolver o diploma ao Parlamento, sem o promulgar. Refere algumas indicações de pormenor, retiradas da sua sábia cartola.

- Os meninos não fazem o ditado sem erros, como querem que vos dê positiva. Vou enviar informação escrita aos encarregados de educação.

Parece que as dúvidas constitucionais estão todas sanadas. Subsistem as existenciais e a vontade de marcar terreno. Os dias vão passando, dando razão aos que dizem que, no país, só há dois tipos de problemas: aqueles que o tempo resolve e os outros, que nem o tempo consegue resolver.

O Governo, invejoso, não quer enviar o parecer jurídico à Comissão Parlamentar de Inquérito da TAP. Esse douto parecer, se existe, suportou a porta de saída da senhora CEO e, de acordo com outras opiniões ilustres, é fundamental para a análise da Comissão.

Sururu armado, com uns a dizerem que o menino se portou mal, outros a afirmarem que o menino não tem de indicar a matéria e os sítios onde estuda, devendo apenas responder às questões do teste.

Por este caminho, ainda chega ao poder alguém, escolhido por uma qualquer divindade, que tem as certezas absolutas sobre tudo e não admitirá discussão.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Figos

A figueira é uma árvore que se pode ver em todas as regiões do país, embora o seu fruto não tenha a mesma qualidade em todos os sítios. Há zonas onde o figo, seja moscatel ou pingo-de-mel, é doce, fresco, muito saboroso. Outras há em que é bem melhor saboreá-lo passado ou seco, para que as papilas gustativas não sofram nenhuma desilusão. 

Todos são produzidos por árvores que, tendo por particularidade a ausência de flor, desenvolvem o seu verde em cômoros, pequenos espaços, no meio de outras, com cereal semeado em volta, dispensando as habituais tarefas de cuidar, da poda à pulverização, do adubo ao remexer da terra. Estão lá e pronto. Cumprem a sua função de dar figos a quem deles gosta e de servir de poiso aos pássaros.

Na minha juventude, aprendia-se e dizia-se, quando acontecia uma qualquer queda, que se tinha plantado uma figueira no local onde se dera o trambolhão.

- Vai com atenção e vê lá se a figueira que aí plantaste já deu figos ...

Ontem, António Costa plantou uma figueira na visita que fez aos hipermercados, à procura do IVA 0%. Cedeu ao popularucho, ao chamamento das câmaras e dos microfones, aos mirones opinativos ou deslumbrados com a imagem, numa arruada perfeitamente escusada e que talvez se devesse ter estendido às mercearias de bairro. Seria a festa completa e a queda bem mais eloquente.

Daqui a uns tempos, alguém lhe irá perguntar se a figueira plantada já deu figos ou se a estrada está arranjada para dar passagem aos pretendentes sabões ...

terça-feira, 18 de abril de 2023

Palavras bonitas

Em 1995, numa incursão extemporânea pelas "teatrices", escrevi um texto, que foi levado à cena e se chamava "O julgamento do Zé". Abria com um poema de Joaquim Pessoa e hoje fui à procura do livro de onde o "roubei". Está desaparecido ou ausentou-se e não regressou.

Joaquim Pessoa também se ausentou ontem, aos 75 anos. Fica o registo de um poema, grande, muito bonito e assertivo.


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

A leitura da biografia de Natália Correia - O dever de deslumbrar, de Filipa Martins - já leva dois terços e não está ainda concluída por ser interrompida por outros livros que se alcandoram e insinuam, fazendo lembrar tempos idos, quando a mesa de cabeceira tinha dois ou três a serem "consumidos" em simultâneo.

Ontem, fazendo mais uma pausa na vida de Natália, comecei um livro de um autor brasileiro, que não conhecia. O livro é designado, na tira da capa, como o "romance de estreia do escritor-prodígio da literatura brasileira contemporânea", o que, por si só, desperta a curiosidade e a vontade de começar.

Ainda vai no princípio mas já deu para notar que o malfadado Acordo Ortográfico só por aqui é obrigatório e que, como sempre pensei, a riqueza da língua está nas suas variantes e não na formatação obrigatória que alguns iluminados quiseram. E é tão saboroso encontrar palavras novas e ir à procura do seu significado. O livro até traz um glosário, que serve de marcador e auxilia na compreensão.

"(...) Ryan Giggs recebeu outra bola enfiada nas costas do lateral adversário, e com a perna esquerda acertou mais um cruzamento na cabeça de Chicharito Hernández.

- Tomar no cu, neguim. Só faz gol assim! - Douglas defendia as cores do Barcelona, e tava puto.

 - Chora, não, maluco. Vira logo essa porra aí e vamo pró jogo.

Já tava pra terminar a partida. Com esse gol, o terceiro do atacante mexicano, o placar marcava cinco pro Manchester United, time de Murilo, quatro pro Braça. Biel marolava com os dois enquanto apertava um baseado. Os amigos já tavam pra lá de Bagdá. Não que apostar uma dose de vodca a cada gol sofrido fosse novidade na casa, muito pelo contrário, já era um clássico entre eles. Mas naquela noite a porteira tava aberta. Pra se ter uma ideia, na última partida Murilo derrotou Biel por oito a seis, quer dizer, já entrou embrasado pro duelo com Douglas, seu maior rival no Bomba Patch. Isso sem contar o primeiro jogo, que terminou com o placard magro de um a um e foi pros penâltis. O que é sempre pior, porque obriga o jogador a beber várias doses, alternando com o adversário.

Na hora que sofreu o quinto gol, Douglas achou melhor deixar por isso mesmo. Se fossem pros penâltis do jeito que tavam, o bagulho ia ficar esquisito. O problema é que Murilo não consegue ganhar e ficar na moral. Ele tem que gastar os outros até o limite. E o pior de tudo, o que deixa Douglas mais bolado: só ganha com a mesma jogada.

Já nos acréscimos, Murilo gastava a onda quando Douglas, com sangue no olho, meteu uma bola na direita pro Messi. O craque argentino invadiu a área na diagonal, limpou dois adversários e bateu cruzado. O goleiro do United nem saiu na foto. Cinco a cinco no final do segundo tempo. (...)" 

Via Ápia
Geovani Martins
Companhia das Letras (2023)

domingo, 16 de abril de 2023

Pendura

O encontro tinha sido combinado por uma razão qualquer que já caiu na gaveta do esquecimento. Devia tratar-se de alguma comemoração importante ou de discussão de um assunto premente para os três. Nessa altura, não havia telemóveis e muito menos grupos de conversa fiada. Foi decidido: no final daquele dia (quarta-feira ?), juntar-nos-íamos em Óbidos, antes de regressarmos a casa. O local era uma tasca bem perto do local de trabalho do L., que gabava muito os petiscos feitos pela dona e estava convencido de que iríamos gostar. Juntava-se o útil ao agradável, por as ocupações dos três dificultarem a cavaqueira de que tanto gostávamos.

A estrada que nos trazia de Peniche não era, ainda, o IP de hoje e era difícil fazer o trajecto em menos de meia hora. Ficou acordado que tentaríamos chegar por volta das seis, embora fosse difícil fazer previsões num trabalho que tinha muito de surpresa e nada de desligar a máquina quando chegava a hora. E as horas a mais ficavam sempre ausentes da folha de pagamento ...

Devemos ter cumprido o horário previsto e o carro levou-nos mesmo até à porta da tasca. Ainda era permitida a circulação automóvel na vila, embora a entrada na porta da dita requeresse alguma perícia. O L. já estava sentado à mesa, num reservado que a senhora da tasca nos facultou, para que o repasto fosse mais recatado e sem necessidade de cumprimentos constantes. Os três eram conhecidos na zona, sendo o L. o que mais gente cumprimentava. 

Quando entrámos, um personagem desconhecido acompanhou-nos, com grande descontracção e tomou lugar de imediato na mesa. Deduzimos que seria algum amigo do L., que não conhecíamos e que ele teria convidado. Comemos, bebemos, como se os quatro se conhecessem perfeitamente há muito. Quando nos preparávamos para iniciar a "importante" conversa, o "amigo" despediu-se:

- Tenho de ir. Já estou atrasado e a minha mulher fica preocupada. Obrigado e até à próxima.

 - É teu colega?, perguntámos ao L.

 - Não. Entrou convosco. Pensei que era vosso amigo.

- É preciso ter lata ...

Estava descoberto. A barriguinha dele já ia cheia, à borla. Dividimos a conta por três, embora tivessem sido quatro a morfar e o pendura talvez o que mais enfardou.

Trinta anos depois, o L. já partiu há muito, a recordação mantém-se fresca e o pendura continua por identificar.

sábado, 15 de abril de 2023

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Gatos

O gato sobe a rua, cauteloso, como que antevendo qualquer desgraça que lhe possa estar reservada. As patas já não têm a elasticidade de outros tempos, a agilidade é quase inexistente, a dificuldade da pequena subida é um pesadelo, como se se tratasse da Serra da Estrela. Os anos não perdoam, nem mesmo aos gatos.

Pára junto ao candeeiro. Há ali um papel afixado, com fotografia a cores. Está escrito em linguagem humana, decerto impossível de entender por quem nunca passou do recreio da escola e com todo o cuidado, para não ser corrido. O A4 contém uma mensagem, em letras enormes:

Sou o Fofinho!

Siamês e castrado. Se alguém me encontrar, ligue para o ??? ??? ???.

O gato, velho e cansado, parou. Não é dele a fotografia nem podia ser. Já não é fofinho, se é que algum dia o foi. Não é castrado mas, nesta altura da vida, é como se fosse, e isso já lhe é completamente indiferente. Olha para a figura do seu parente longínquo, que até usa coleira, tem aspecto saudável e está bem nutrido. Por onde andará? Noutros tempos, com facilidade faria uma investigação pelas zonas mais recônditas da cidade e talvez o ajudasse no regresso ao lar. Agora, tomara ele que não venha nenhum carro enquanto descansa. Já não consegue fugir e há gente muito distraída.

Como é diferente a vida: um, tinha um lar e abandonou-o, sem razão aparente e sem ser por amor, que é assunto em que não é versado desde muito novo; o outro, coitado, precisava de um lar ou, pelo menos, uma Gataria Residencial para Idosos, onde obtivesse algum carinho. 

Arrasta-se pela rua, em busca de um pouco de sossego num cantinho esconso, sempre com muita atenção aos pópós, não vá o diabo tecê-las.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Fui dar à taberna daquele a quem chamavam Chocolatinho, incerto sobre se progredia na minha demanda ou para onde poderia ir agora. Estava um daqueles dias de outono desolados e desprovidos de luz, e voltei a encontrar uma certa recompensa naquela animação.

Miúdos de doze anos bebiam cerveja pela garrafa, todos vestidos como jovens gangsters - ou talvez rappers -, e velhos de chinelos sujos faziam a algazarra habitual em torno das mesas de fórmica. Um televisor moderno, demasiado grande para o espaço que ocupava, debitava as notícias dos últimos crimes em locais do país que nenhuma daquelas pessoas alguma vez conheceria. O proprietário recebia os clientes com a máscara no queixo, lançando perdigotos em volta, de cada vez que alguém conseguia arrancar-lhe uma palavra - mas, ao mesmo tempo, era como se em tudo aquilo houvesse uma espécie de harmonia, até de comunhão.

- Pode fumar, que aqui toda a gente fuma - disse-me, extraindo um cinzeiro de baixo do balcão e depondo-o sobre o tampo, com a mão colossal e endurecida. Mais uma?

E eu percebi que me tratava com a deferência dos que se empenham em recuperar a sua melhor linguagem porque, por uma vez, encontraram alguém capaz de a decifrar.

Talvez fosse ele o traficante daquele bairro, sim. Ninguém estaria em melhor posição para o ser, e em todo o caso quem desempenhasse esse papel não poderia fazê-lo sem a sua cumplicidade. Mas, afinal, não poderia ser pior, a sorte daquele gente? Um capo assim, com o seu negócio legítimo e os seus esforços para manter a ordem - talvez pudesse ser até mais conciliador do que uma autoridade.

O pior do crime organizado era quando ele se desorganizava. Isso, sim, podia levar a que se estilhaçasse tudo - e de uma maneira irreversível.

Bebi mais uma cerveja, sentindo um rubor aflorar-me às faces, e apaguei o cigarro no cinzeiro que o dito Chocolatinho me fornecera. Mulheres entravam e saíam, para um café e uma bisbilhotice, e a cada uma delas algum dos homens lançava um piropo surdo mas intencional, aliás nem sempre rechaçado.

O televisor falava de um acidente de automóvel na Beira Alta e os garotos que bebiam contavam as moedas, a conferir se poderiam pedir mais uma também. Olhei através da porta aberta, certificando-me de que a chuva voltara a recolher-se, e saí. (...)"

Jénifer, ou a princesa da França
Joel Neto
Retratos da Fundação
Fundação Francisco Manuel dos Santos (2023)

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Tecnologia

Não havendo notícias novas sobre a TAP e não sendo curial dar palpites sobre o (meu) Benfica, poder-se-á dissertar sobre alguma outra coisa? Estou em crer que não e também tenho a certeza que as capacidades, se alguma vez existiram, estão a esvair-se tal como o vocabulário, que se vai perdendo, ficando cada vez mais reduzido, repetido e alterado, tipo conversa de cota, bué chata.

Permanecia descansado, de lapiseira na mão, tentando captar alguma coisa que valesse a pena e se encontrasse lá bem no fundo, e nada surgia. O elevador devia estar avariado ou desligado, por falta de reparação ou de dinheiro para a luz. 

A música estava a tocar. De forma aleatória e de acordo com a escolha feita pelo equipamento, sem intervenção humana, passava sem se preocupar com o estilo e saltando de disco para disco e de artista para artista, sem qualquer dificuldade.  As novas tecnologias dispensam a colocação dos CD's e não se correm riscos de a agulha estragar os LP's. As capas não se deterioram, cabem centenas sem necessidade de móvel, e nem é preciso levantar da cadeira. Uma maravilha, que permite a surpresa de uma qualquer música surgir quando menos se espera e, desta, a memória já só detinha uma vaga ideia.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Contabilidades

Aprendi com ele as "partidas dobradas", o "deve e o haver", o "diário e o razão", o "inventário e o balanço", os lançamentos simples e os compostos, a folha de caixa, o balancete e a demonstração de resultados. E muitas outras coisas, claro, que me abriram portas, despertaram curiosidades e me "obrigaram" a andar a vida toda à volta com os números.

Pouco depois do Exame de Aptidão concluído, numa cavaqueira para adultos com 15 anos, disse-me:

- Se quiseres, arranjo-te emprego no BPA.

- Muito obrigado, sôtor, mas já trabalho num escritório e vou lá continuar, talvez até à tropa.

Mal sabia ele que o meu futuro iria passar pela banca, embora nunca no BPA. Estas palavras foram recordadas em algumas conversas ao longo da vida. Já não serão mais ...

A sua maneira de andar pela sala, o seu tom de voz, claro e assertivo, a dedicação com que ensinava, mantiveram-no sempre na minha lembrança. O livro, da sua autoria, que conservei até o ter oferecido para uma exposição comemorativa do cinquentenário da Escola, era o suporte da aprendizagem. Estava lá tudo! Mesmo aqueles que tinham algumas dificuldades, aprendiam cedo que a um débito correspondem sempre um ou vários créditos e que a diferença entre os custos e os proveitos é o resultado líquido do exercício, positivo ou negativo.

Partiu hoje o Professor Jorge Gonçalves Amaro. Apesar de ser do conhecimento de todos que os anos, mais tarde ou mais cedo, determinam este desfecho, é com emoção que recordo um homem que conheci há sessenta anos e me marcou profundamente.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Serviço público

Se tivesse na minha posse o endereço electrónico daquele ex-Secretário de Estado que, preocupado, tentou fazer um agrado ao Presidente da República, enviar-lhe-ia um pedido para me conceder o especial favor de aumentar as horas do dia de hoje, o que me teria dado um jeitão.

Não é possível! Primeiro, porque aquele menino já não exerce funções no executivo nacional; segundo, porque a duração dos dias não está ao alcance de um qualquer, nem dependente da colagem de uma folha no calendário ou de um cartaz no primeiro muro disponível; terceiro, porque os assuntos de tão grande responsabilidade não podem ser tratados com mensagens amorfas, comentários nas redes ou mails de convivialidade abundantemente abreviada. 

Apesar de os últimos tempos terem sido férteis em asneiras que mais parecem obra de meninos rabinos numa aula da escola leccionada por um professor básico, convenhamos que é importante que as criancices se saibam e desse conhecimento resulte a consciência que servir publicamente é muito mais do que servir o (seu) público. 

E há muitos "abafadores" à espreita e sedentos de agarrarem uma oportunidade.

domingo, 9 de abril de 2023

Palavras bonitas

QUEREM O CÉU

Querem o céu, a mística mansão
Da alma.
E, se estivessem lá,
Queriam a terra, a sórdida morada
Da raiz.
Mas é o céu que lhes diz
Eternidade,
Verdade,
Santidade
E descanso.
Assim se pode mistificar
A preguiça,
O pecado, 
A mentira
E a transitória vida natural.

O grande tecto azul, porém, não dá sinal
De acolher o aceno.
Afaga as nuvens, e da luz solar
Faz o dia maior ou mais pequeno.

Cântico do Homem
Miguel Torga
Coimbra (1974)

sábado, 8 de abril de 2023

Páscoa

Está tudo muito sossegadinho, a desfrutar de umas mini-férias da Páscoa, viajando até ao Algarve para dar um mergulhinho sem dor nos tornozelos ou ir até à Serra da Estrela em busca da neve que, desta vez, fez um manguito e não apareceu. Está no seu direito e ninguém lhe leva a mal o gesto, consagrado por Raphael Bordallo Pinheiro e agora confirmado pelo escultor Carlos Oliveira. A obra foi "arquivada" nos jardins do Palácio de Belém, quem sabe se para o PR a ter sempre à mão e a utilizar quando lhe apetecer.

Também sem grandes alardes, conferências de imprensa ou comissões de inquérito, a ginjeira da casa mostrou-se em todo o seu esplendor, provando aos que não conhecem, aos que tinham dúvidas e aos que nunca tinham visto, que, em flor, é das árvores mais bonitas da nossa flora.

No meio desta pasmaceira e com esta publicidade, ainda me arrisco a ter a casa cheia de turistas, de telemóvel  em punho, registando o facto com publicação nas redes e tudo!

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Poupança

Perante o aumento dos bens alimentares, alguns dos quais a aguardar o milagre do IVA 0%, convém arranjar alternativas para ir fazendo com que o mês não sobre.

Na Sexta-Feira Santa, dia em que não se deve comer carne para não pecar, nada melhor do que uma pescaria na Lagoa, que há-de colocar na mesa um bom petisco de berbigão e amêijoa. Junta tudo o que é importante nesta altura: faz-se exercício físico, é de borla e proporciona uma maravilha no prato.


quinta-feira, 6 de abril de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) Portanto, a meio de uma das montanhas que dominam Palermo ergue-se uma pequena cidade célebre pelos seus monumentos antigos, Monreale; e era nas imediações desta terra alta que operavam os últimos malfeitores da ilha. O costume de colocarem sentinelas ao longo do caminho manteve-se. Com que objectivo: tranquilizar ou assustar os viajantes? Não sei.

Os soldados, dispostos a cada curva da estrada, lembram a lendária sentinela do Ministério da Guerra, em França. Durante dez anos, sem se saber porquê, era colocado diariamente um soldado de plantão no corredor que conduzia aos aposentos do ministro, com a missão de afastar da parede todos os transeuntes. Entretanto, um novo ministro, de espírito inquiridor, que sucedeu no cargo a outros cinquenta que tinham passado sem qualquer tipo de espanto pela sentinela, resolveu perguntar o porquê daquela vigilância.

Ninguém foi capaz de lhe responder, nem o chefe de gabinete, nem os funcionários colados há meio século às suas cadeiras. Mas um contínuo, homem com boa memória, que talvez guardasse por escrito as suas memórias, lembrou-se de que lá tinha sido colocado outrora um soldado porque a parede acabara de ser pintada e a mulher do ministro, desconhecendo o facto, manchou nela o seu vestido. A pintura tinha secado, mas a sentinela lá continuou.

Então os bandidos desapareceram, mas as sentinelas permanecem na estrada para Monreale. (...)

A vida errante
Guy de Maupassant
Tinta da China (2023)

P.S. Texto escrito nos finais do século XIX. Quantas situações idênticas ainda existirão por aí?

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Gabriela

Exibida em Portugal em 1977, a telenovela Gabriela, com Sónia Braga a interpretar a protagonista criada pela imaginação, grande, de Jorge Amado, foi um sucesso estonteante e a novidade fez parar o país várias vezes.

A telenovela da TAP não tem qualquer semelhança (menos ainda física) com a ficção exibida há 46 anos, embora crie a sensação de estarmos, de novo, a assistir a (mais) uma história ficcionada, ainda que de pouca qualidade e com vários autores.

No início, como é normal em qualquer ficção, nada se percebia do enredo e ninguém tinha conhecimento do que se teria passado naquelas salas escuras e esconsas que deverão ser os gabinetes da TAP. Nos episódios seguintes, foram aparecendo alguns protagonistas novos, que trouxeram mais suspense e aumentaram o picante.

A obra continua a desenrolar-se e, a cada episódio, surgem novas cenas que prendem o espectador e o deixam boquiaberto. Nesta altura, a protagonista foi despedida das suas funções em directo, embora continue a tratar das tarefas inerentes, subindo ao telhado da casa, reunindo com os adjuntos do Prefeito, garantindo sempre que é apenas Gabriela e que tudo aconteceu por obra e graça de outros, talvez do Nacib, que é danado para a brincadeira.

Tudo parece encaminhar-se para que, no último episódio, Gabriela abandone o palco, não sem antes pôr a boca no trombone e a mão na choruda maquia que lhe cabe pela excelente interpretação.

Nunca mais andará descalça e deixará por aí muita gente sem sapatos e sem vergonha!

terça-feira, 4 de abril de 2023

Palavras bonitas

VARIAÇÕES SOBRE "O JOGADOR DO PIÃO"

Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos - tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Rasga o espaço num gesto ríspido de vida
Reergue o braço a prumo arrisca - nessa roda
possível da maçã ao muro - a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos ... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? - Nada

Mão do breve pião, levanta ao céu a enxada
Passa o proprietário e já não reconhece
talvez o operário inútil sob a messe

Todos os Poemas
Ruy Belo
Assírio & Alvim (2000)

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Homofonia

muito que a senhora professora queria desafiar os seus alunos e levá-los à descoberta de situações específicas da língua portuguesa, que a tornam tão rica.

Naquele dia resolveu seguir o conselho do inspector do concelho com quem, na semana anterior, tinha trocado umas ideias sobre o que lhe ia na cabeça e sentido um apoio incondicional à ousadia, sem nenhuma objecção.

Depois de permitir que os meninos saltassem a barreira de buxo existente no recreio, aguardou que enchessem o bucho com o lanche da manhã e voltassem a entrar na sala de aula.

Já com todos refastelados nos respectivos assentos, dirigiu-se ao quadro negro e, pegando no giz, nele inscreveu a palavra  VITÓRIA, não olvidando o necessário acento, fundamental para lhe dar o sentido pretendido. Disse-lhes que aquela era a palavra que serviria para premiar o aluno que, sem qualquer ajuda, conseguisse citar o maior número de palavras homófonas.

A sua voz foi clara quando proclamou:

- Sois vós que deveis tentar descobrir o maior número delas, num máximo de seis. A vitória será da turma, se todos conseguirem chegar ao resultado pretendido.

Os alunos sentiram que o desafio era enorme, tão grande como a hera que subia pelas paredes da escola e quase a cobria.

- Tenham bom senso em todas as respostas e tenham presente que eu farei o censo de todas elas com a maior atenção e informarei o inspector concelhio. 

Os alunos mostraram grande excitação pelo desafio, que se apresentava muito diferente do que era habitual.

- As respostas devem ser escritas num papel, com o nome de cada um, e dobrado em quatro partes. Deverão colocar os papelinhos no cesto que se encontra na secretária e, ao sexto papel, a prova acaba. O objectivo é que todos respondam, pensando muito bem nas respostas que darão e tentando apenas utilizar as certezas que tenham.

O Carlinhos estava delirante. Lembrou-se logo que o paço do seu vizinho era uma construção enorme, com jardim e tudo, e que ele costumava sair de casa, logo pela manhã, em passo acelerado. Escrito e dobrado o primeiro papel, a tarefa tornou-se mais difícil e o Carlinhos segurou a cabeça com a mão esquerda, esperando que o lápis lhe desse outras hipóteses.

Pensou, coçou a testa, mudou a mão que segurava a cabeça e esta negava-lhe resposta. Com apenas um papelinho, ficaria entre os últimos, ele cuja ambição era sempre ganhar. Pensou, meditou e, de repente:

- A minha mãe esteve ontem a coser as minhas calças, enquanto, no fogão, o peixe estava a cozer para o jantar. Mais duas ... Faltam outras tantas.

Lá fora, o cavalo passou a galope. O cavaleiro ia bem sentado na sua sela, evidenciando o seu garbo equestre. Todos os alunos levantaram os olhos e invejaram o seu porte, a sua elegância e destreza, a liberdade de que usufruía. Só a professora conheceu o cavaleiro e sabia que ele tinha estado encerrado numa cela da prisão, de onde tinha saído nessa manhã.

Não disse nada. A tarefa foi concluída por todos mas nenhum conseguiu as seis palavras! 

domingo, 2 de abril de 2023

Já era ...

O mundo está cada vez mais efémero. Não há tempo para digerir acontecimentos, opiniões ou imagens. Tudo chega num instante e parte no outro.

Ler jornais era, em tempos, saber mais. Já não é. Quando o jornal chega às bancas, as novidades já deixaram de o ser há muito. Tudo foi ultrapassado, analisado, desmentido, arrumado na gaveta mais funda que esteja disponível ou no canto mais recôndito que surja, sempre com a perspectiva de aparecer um espaço amplo que receba a novidade e esteja preparado para a abandonar de imediato.

O Dr. Google, a Wikipédia, os Influencers, Youtubers e quejandos têm, na ponta do dedo, a resposta para todos os problemas, questões, dúvidas, sendo essa resposta instantânea, certeira e sem margem para quaisquer discussões.

E toda a gente (eu incluído) manda bitaites, na busca incessante do protagonismo e do degrau que lhe permita subir, por pouco que seja, na escada da fama.

Por mais estapafúrdia, incoerente, mentirosa, falsa, estúpida ou parva que seja uma afirmação, haverá sempre quem, exibindo uma ignorância imensa mascarada de verdadeira eloquência, diga, afirme, escreva e teime que

- Tenho a certeza que é assim. Vi na Net!

sábado, 1 de abril de 2023

Mentira

Para não correr o risco de por aqui deixar algo em que ninguém acredita, o melhor é não escrever nada e muito menos opinar sobre algo do muito que por aí vai acontecendo.

Hoje é Dia das Mentiras, repetindo-se uma tradição velha e relha, com muitos anos a contar factos que o não são, acontecimentos que não se deram, propostas que nunca serão realidade. Não deve tardar muito que esta palavra também seja eliminada do léxico do comum dos mortais e que os novos cultores da língua a substituam por outra mais charmosa e menos agressiva, como, por exemplo, dia das inverdades.