terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Livre como um passarinho

O rabirruivo chilreia, saltitando de arbusto em arbusto sem se preocupar com o que se passa à sua volta. Está em domínio alheio mas não liga a isso. Sabe que, por aqui, não há caçadores e, mesmo que os houvesse, nenhum desperdiçaria um chumbo que fosse com um passarito tão minúsculo. Algum perigo que possa aparecer em cima de quatro patas, detecta-o com facilidade e um pequeno bater de asas coloca-o a salvo.

Faz-se notado se lhe apetece, esconde-se quando lhe apraz, bem lá metido por entre as folhas, onde nem olhos habituados o detectam. Parece procurar quarto, que a época do acasalamento está a chegar e a noiva deve ser exigente. Sabe que não terá de fazer contrato ou pagar renda, e que o senhorio lhe facultará a instalação de forma condigna e com o maior gosto, protegendo-o, até, se necessário for.

Faz parte da casa, apesar de não ter sido contado no Censos. Não reivindica outra coisa que não seja a liberdade de por aqui andar, sem dar satisfação a ninguém e da forma como lhe dá na real gana. Canta, saltita, esvoaça, sobe ao telhado, desce à relva, mostra-se ou esconde-se, vive bem e de acordo com as suas regras. Tem prazer nisso, nota-se à légua.

Partirá se e quando lhe apetecer, gozando a liberdade que é sua e há-de manter até ao fim. Não há preço que a pague!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Delírios

A maioria absoluta do Partido Socialista completa hoje o seu primeiro aniversário, sem grandes festas, que o tempo não está para apagar velas, cortar o bolinho ou cantar os parabéns. A "bebé" teve um primeiro ano de vida muito atribulado, contrariando as expectativas criadas aquando do seu nascimento. Faltas de ar sistemáticas, constipações frequentes, algumas delas com grandes probabilidades de se tornarem pneumonias graves, outras que deixaram sequelas não muito habituais, como o esquecimento e a gaguez.

O mundo político parece estar a mudar, a julgar pelas exibições que os dois partidos mais recentes tiveram nos espectáculos recentes que organizaram. Da entronização do líder supremo aos gritos com voz entaramelada pela ânsia de falar sem nada dizer, houve de tudo.

- É disto que o meu povo gosta!?

Os altares, a corrupção nos concursos, os ordenados e os prémios, os arguidos e os secretários que antes de o ser já eram, a falta de clareza e de verdade, não ajudam nada. A contestação social é resultado de injustiças antigas e estimulada pelas notícias, pondo a nu que há filhos e enteados, sendo que, para ser filho, na maior parte das vezes basta exibir o cartão.

Quero acreditar que a grande maioria dos que se disponibilizam para servir a causa pública são gente séria. Afigura-se-me ser imprescindível que esses se demarquem claramente das ovelhas ronhosas e digam que a sociedade mais justa é possível, que a justiça será implacável e rápida para com os aproveitadores sem escrúpulos nem vergonha. "A democracia é o pior dos regimes, com excepção de todos os outros."

Dos outros, já tive a minha conta!

domingo, 29 de janeiro de 2023

Remédios

A temperatura do ar confirmava as previsões do IPMA e não estaria para lá dos cinco graus quando a caminhada se iniciou. O mar tranquilo, o céu azul, o vento ausente, o sol a cumprir as suas obrigações, a conversa a fluir, as mãos nos bolsos (o que é raro, para quem fala sempre com elas), e, num ápice, o frio deixou de estar presente. A meio, já apetecia tirar o casaco, ainda que o andar fosse tranquilo, sem excessos ou correrias. 

- O médico disse-me que, na nossa idade, o importante é andar, não é correr. Olha o C.: corridinhas, corridinhas e agora está com um problema nos joelhos que nem andar consegue. 

O fecho estava entalado na ourela do casaco e nem para baixo nem para cima.

- É o costume. Nunca tens cuidado. Agora aguenta ...

O que não tem remédio, remediado está. Mais casaco, menos casaco, o passeio matinal prosseguiu e foi concluído sem suadelas escusadas e com muita conversa, de ontem, de hoje e até do amanhã.

- Vai ser muito complicado, não achas?

Voltando ao casaco, se fosse a menos, talvez houvesse complicação ou necessidade de alargar mais o passo. Muitos também não os têm e andam todos os dias, por obrigação e não por desporto e prazer.

A manhã aproxima-se do fim e o almoço do início. Há muita gente caminhando junto à Lagoa, bicicletas, atletas correndo. Surgem dificuldades no trânsito. A via pedonal torna-se estreita, uns encolhem-se, outros passam para a estrada, sem qualquer perigo que os carros são poucos e vêm devagar, alguns fazem "sala" para pôr a conversa em dia. Tudo se compõe. É bom caminhar na Foz em qualquer altura e, em manhãs destas, fantástico.

- Agora é chegada a altura de meditar nos objectivos da próxima semana, de modo a não comprometer os resultados fixados e o prémio prometido. Qualquer falhanço põe o "cacau" a voar ... 

Estás a delirar ... Isso era dantes. Agora, és técnico superior de lazer, sem objectivos que valham prémios pequeninos e muito menos chorudos.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Palavras bonitas

O PAÍS SEM MAL

Um etnólogo diz ter encontrado
Entre selvas e rios depois de uma longa busca
Uma tribo de índios errantes
Exaustos exauridos semimortos
Pois tinham partido desde há longos anos
Percorrendo florestas desertos e campinas
Subindo e descendo montanhas e colinas
Atravessando rios
Em busca do país sem mal -
Como os revolucionários do meu tempo
Nada tinham encontrado

Ilhas
Sophia de Mello Breyner Andresen
Caminho (2004)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Partidas

Se há dias em que não apetece escrever nada, hoje é um deles. 

O blogue perdeu um leitor e eu, um amigo, ex-colega de um trato impecável, uma lealdade irrepreensível e um carácter extraordinário. Para além disto, que não é nada pouco e é cada vez mais raro, ainda era um excelente cozinheiro e disso deu provas em algumas comezainas que por aqui realizou, evidenciando grande capacidade e gosto.

Acabou o sofrimento para o E.R., que hoje deixou a Encarnação e partiu para o espaço do céu que, de acordo com a sua fé, lhe estava reservado. Dele vou sempre recordar o trabalho que comigo partilhou com grande proximidade, o seu incrível sentido de humor e a cumplicidade amiga com que sempre me distinguiu. 

Adeus, E.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Polémicas

A pandemia criou o hábito de postar diariamente qualquer coisa no blogue. Um simples texto, uma fotografia, alguma música, a poesia e a prosa de consagrados ou de menos conhecidos, uma simples opinião, uma estória, um facto, uma diversão.

O hábito não faz o monge mas ajuda a criar vícios e aquilo que, tudo o indicava, seria uma diversão passageira para iludir o tempo de "clausura", passou a quase obrigação quotidiana. Não devia acontecer, ainda por cima a alguém que já deixou, há quase meia dúzia de anos, os deveres que a vida lhe impingiu ou ofereceu. 

É mau! Ou melhor, é péssimo! Não pela falta de assunto - há sempre - (dos arroz de tordos de ontem à chuva que está a cair neste momento), mas porque escrever o que quer que seja é uma manifestação de ideias, opiniões, sensações, inclinações, que ficam registadas e por aqui permanecerão para sempre, vinculando o seu autor e pondo a nu as suas (in)capacidades. Tudo isto agravado por a opinião de hoje poder ser totalmente oposta à que foi emitida ontem ou há dez anos. Só não mudam de opinião os burros...

E corre-se o risco de aquilo que hoje é uma verdade insofismável, amanhã passar a uma mentira clarinha e sem fundamento. São consequências inevitáveis da sociedade vertiginosa em que nos tornámos, da vivência carregada de opinadores sem escrúpulos nem competência, de toda a gente, eu incluído, se sentir capaz de analisar, comentar e difundir tudo e mais um par de botas.

Nos últimos tempos, os esquecimentos, os desconhecimentos, os "sabia mas não pensei", "conhecia mas não me pareceu relevante", têm sido muitos e, alguns deles, de pôr os cabelos em pé.

Está em marcha mais uma polémica: o custo do altar que irá ser utilizado pelo Papa, nas Jornadas Mundiais da Juventude, que irão ter lugar na zona do Rio Trancão, em 2023. Há quem saiba, há quem diga que disse e quem negue ter ouvido, há quem considere exagerado e quem entenda o contrário, há quem afirme que o Papa Francisco vai ficar atrapalhado quando acessar àquele luxo, há quem contraponha que a ocasião, única, justifica tudo. Para calar todas as vozes, o Presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, apareceu a defender, peremptoriamente, que não se trata de despesa mas sim de um investimento. Altamente rentável, afirmou. No presente, pela imagem que catapulta por todo o mundo; no futuro, pela utilização imensa que lhe vai ser dada.

A ver vamos ...

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Tudo o que havia em casa tinha sido comprado antes da guerra. As panelas e os tachos estavam escurecidos, sem asas, os púcaros sem esmalte, os cântaros furados, remendados com uns bocados que se fixavam no buraco. Os casacos eram arranjados, os colarinhos das camisas virados, os fatos de domingo passavam a ser de todos-os-dias. Não pararmos de crescer era o desespero das mães, obrigadas a acrescentar os vestidos com uma tira de tecido, a comprar os sapatos um número acima, e já apertados no ano seguinte. Tudo devia ter uso, o estojo dos lápis, a caixa de pintura Lefranc e a caixa das bolachas de manteiga LU. Não se deitava nada fora. Os baldes da noite serviam de estrume no jardim, o esterco apanhado na rua depois de passar um cavalo servia de adubo para os vasos das flores, o jornal servia para embrulhar legumes, secar por dentro os sapatos molhados, limpar o rabo na casa de banho.

Vivíamos com falta de tudo. Objetos, imagens, distrações, explicações acerca de nós e do mundo limitadas ao catecismo e aos sermões da Quaresma do padre Riquet, às últimas notícias de amanhã anunciadas na rádio pela voz poderosa de Geneviève Tabouis, às histórias das mulheres que contavam as suas vidas e as da vizinhança durante a tarde à volta de uma caneca de café. As crianças acreditavam durante mais tempo no Pai Natal, que os bebés vinham no bico da cegonha ou que os meninos nascem das couves e as meninas das flores.

As pessoas deslocavam-se a pé ou de bicicleta, numa cadência regular, os homens com os joelhos afastados, as pernas das calças presas em baixo com molas, as mulheres com as nádegas apertadas na saia justa, desenhando movimentos fluidos na tranquilidade das ruas. O cenário era de silêncio e a bicicleta marcava a velocidade da vida.

Vivíamos quase na merda. E ríamos. (...)"

Os anos
Annie Ernaux
Livros do Brasil (2020)

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Quantos?

Os números dizem pouco e interessam menos. Fica a música, para quem dela gosta e hoje inicia mais um ano na caminhada.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Divagações

Desde sempre que encaro cada dia como um novo começo, o início de um ciclo, uma nova batalha, mais um desafio. O passado tem influência, dá lastro e experiência, permite corrigir e evitar, recordar, destapar, ponderar.

Mas é o futuro, sempre o futuro, que interessa. É nele que nos projectamos, nos debruçamos, nos despimos e nos mostramos capazes, com a preocupação de tornar cada dia melhor do que o anterior. Não vai ser sempre possível. Não há estradas sem curvas, mares sem ondas, céus sem nuvens. Há um caminho a ser percorrido, com dedicação e profissionalismo, honestidade e preocupação, não isento de erros e apenas com a certeza de que, todos os dias, nos tentamos superar.

Surgirão - surgem sempre - aqueles dotados que tudo fariam muito melhor e que detêm a receita milagrosa para a pior doença. A maior parte são frustrados tocadores de ouvido, para quem o compasso da vida apenas desenha arcos e nunca circunferências.

Inicia-se hoje um novo ciclo, lá bem no centro da Europa, com muito frio e os tiros bem perto. Vai trazer a ansiedade distante bem perto, preocupação, receio e também, esperamos todos, muitas alegrias.

Continuarei, sempre, um "tuga" empedernido, mas vou "estar" polaco durante uns tempos.

domingo, 22 de janeiro de 2023

À procura da manhã clara

A perspectiva tem destas coisas, iludindo ou criando situações que parecem o que não são e são o que não parecem. 

Um olhar apressado pode indiciar que as Berlengas vieram até à "aberta" e querem entrar na Lagoa. Não é verdade! A manhã estava de sonho, sem vento, um sol radioso, a água, um espelho, mas as Ilhas continuavam no seu lugar, lá ao longe, dando apenas a ideia de que pretendiam, também, usufruir da beleza.

sábado, 21 de janeiro de 2023

Memória

Ontem foi o Dia Mundial do Queijo e não me lembrei!

- Andas a comer muito queijo ...

Há inúmeras variedades de queijo, admiradas e deglutidas por milhões de pessoas em todo o mundo, Portugal incluído. Não há estatísticas, que eu saiba, sobre a percentagem de portugueses que gostam de queijo e também não se vislumbram trabalhos académicos que evidenciem quantos o comem regularmente. Mas são muitos, não há a menor dúvida.

Como resultado desse abuso gastronómico, os efeitos secundários fazem-se sentir e dão nas vistas. Nos últimos tempos tem aparecido muita gente, com e sem responsabilidades, com lapsos de memória acentuados, mesmo preocupantes. Consta que o Ministro da Saúde já nomeou um grupo de trabalho para estudar o gravíssimo problema e, enquanto não surge a solução definitiva, vão sendo feitos apelos para que se coma o queijo com moderação e acompanhado de um bocadinho de pão, para minorar os riscos.

Os exemplos recentes evidenciam que, quando os "queijeiros" fazem apelo à memória, ela já os abandonou e não se encontra.

Fontes bem informadas asseguram que, nesses casos, a memória foi, com o queijo, pela pia abaixo ...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Exagero

Está a fazer um pequeno alojamento rural, com duas ou três casas em madeira, para alugar a quem está longe da natureza e quer dela disfrutar, viajando pelo campo e beneficiando da proximidade citadina.

- Agora vou lá pôr um burro. Mas não é fácil.

A conversa, de café, mostrou, como se fosse preciso, as mudanças que se operaram na sociedade e no comportamento de todos, nos últimos 50 anos. 

- Comprei-o. Tem seis anos e é castrado, para se portar bem. Ainda lá não está. Não é nada fácil!

Fiquei a saber que, primeiro, o local tem de ser legalizado como morada do burro e este tem de ser registado. A habitação do asinino é obrigada a apresentar condições mínimas, definidas na lei (dos burros, presumo) e essas condições estão sujeitas a verificação por quem de direito. Não percebi bem se o registo do animal é feito na Conservatória do Registo Civil ou num outro local a esse fim dedicado. Também não indaguei se recolhem a impressão digital e certificam a altura do animal e também me passou indagar se o cartão do quadrúpede tem validade ou é vitalício.

Na próxima conversa, não me hão-de fugir estes detalhes, importantes, para mim que sou coscuvilheiro, e para o burro, que deve possuir identidade própria e única, de forma a evitar que seja mais um dos muitos indocumentados que por aí vivem (muitos vegetam). 

A todos os animais deve ser assegurada uma vida digna e quem o não faça deve ser responsabilizado e penalizado por isso, e impedido de os ter. Porém, com tanta gente a viver, ainda, em condições miseráveis, não estaremos a exagerar? Ou, contrariando o ditado, a pôr os bois à frente do carro?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Palavras bonitas

Passam hoje 100 anos sobre o nascimento do grande Eugénio de Andrade.

Agora as palavras

Obedecem-me agora muito menos,
as palavras. A propósito
de nada resmungam, não fazem
caso do que lhes digo,
não respeitam a minha idade.
Provavelmente fartaram-se da rédea,
não me perdoam
a mão rigorosa, a indiferença
pelo fogo-de-artifício.
Eu gosto delas, nunca tive outra
paixão, e elas durante muitos anos
também gostaram de mim: dançavam
à minha roda quando as encontrava.
Com elas fazia o lume,
sustentava os meus dias, mas agora
estão ariscas, escapam-se por entre
as mãos, arreganham os dentes
se tento retê-las. Ou será que
já só procuro as mais encabritadas?

O sal da língua
Eugénio de Andrade
Associação Portuguesa de Escritores (2001)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Aviões

A TAP "voou" até S. Bento, aterrou e por lá passou uma boa parte do dia. Os controladores, aéreos, ainda tentaram fazer o seu trabalho, indagando a posição, procurando perceber as coordenadas, a altitude e a velocidade, de cruzeiro, de levantamento ou de aterragem. Foi muito difícil determinar o local exacto da "aeronave", o seu destino e a zona de partida, parecendo, por vezes, que o "avião" ia em piloto automático e ninguém sabia quem o tinha ligado. Talvez uma análise cuidada à caixa negra traga possibilidades de se entender o que aconteceu, quem decidiu o quê e quem assinou.

Com tantas indefinições de rota, sem o nónio do Pedro (Nunes), com muita gente a mandar palpites, uma parte dela sem sequer saber de que lado sopra o vento e qual a pista onde a aterragem deve acontecer, fica a desagradável sensação de ouvir alguém a responder, na Assembleia da República Portuguesa, num inglês algo engasgado e a obrigar alguns dos controladores a usarem o auscultador-tradutor no ouvidinho.

Enfim ... anda comigo ver os aviões.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Santo Antão

Ainda que S. Pedro não esteja a colaborar, mandando chuva, vento e frio em quantidade significativa, hoje deve haver Santo Antão naquele monte sobranceiro ao castelo de Óbidos, depois de dois anos de jejum pandémico.

A "festa do chouriço" fazia parte da alforria da (minha) juventude que, noutros tempos faltava às aulas e para lá caminhava em busca de alguma diversão, dos namoricos, do chouriço assado e, muitas vezes, da estreia na água-pé, bebida transportada pelos mais velhos nos garrafões empalhados e que eles facultavam a quem pedia e ofereciam a quem passava. Por vezes, havia algum tocador de concertina a animar a paródia e a pôr toda a gente a dançar, quando as pernas já estavam meio trôpegas e a cabeça algo toldada.

Ao final do dia, a juventude regressava a pé ou no comboio e a maioria dos mais velhos lá ia ficando a fazer o sacrifício de acabar com o chouriço, o pão, o vinho e a água-pé, para não regressarem carregados, por ser feio desperdiçar comida e muito menos bebida e, finalmente, por valer mais fazer mal do que sobrar.

Não tenho a mínima noção da forma como, actualmente, se faz a festa do santo do chouriço, lá bem no cume do monte, onde agora se chega subindo escadas ao invés de palmilhar aquela enorme inclinação à custa de escorregadelas e atabalhoados agarranços à primeira coisa que surgisse, fosse urze ou esteva, pinheirito ou cardo. O importante era evitar a queda.

Há muitos, muitos anos que lá não vou. O estômago passou a zangar-se com o chouriço assado e ganhou aversão ao vinho e à água-pé. Os joelhos já não dispõem da elasticidade necessária para subir tantos degraus, a curiosidade vai desaparecendo e a pachorra perdendo-se.

Enfim, alterações que a idade tece ...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Apesar de vir com o preço colado ao vidro da mala - «5000 dólares» num laranja florescente -, a carrinha Chevrolet que August trouxera do stand fora a melhor solução para levar as bicicletas. Como eu ia só com a Patience, e a última paragem distava umas sete milhas da praia de West Dennis, seria tudo o que tínhamos quando o comboio chegasse, às seis e dez da manhã. Isso e um par de mochilas com o pouco que faltava na casa de Cape Code. Patience ia mais pesada. Levava o trabalho de casa e Anna não sei-quantas, o seu romance preferido, cuja foto da badana mostrava ter sido escrito por algum pai natal russo.

Depois de nos despedirmos de August, transportámos pela mão as duas bicicletas e despachámo-las no cais de embarque, antes de subirmos para o comboio. Para meados de setembro, cheirava muito a outono, e o céu arroxeara com o aproximar da noite. Dali a Boston, levaria quatro horas, depois havia que esperar pela ligação a Hyannis, de onde pedalaríamos até à casa da praia.

Nos vinte minutos seguintes, chegaram mais passageiros; mesmo assim, quando arrancámos, a carruagem ia a meio. Sentados de frente um para o outro, não dissemos nada até passarmos por Orange, altura em que Patience deixou de olhar para a janela e apontou para as mochilas, no banco mesmo ao meu lado.

- Chegas-me a Karénina?

Isso. Anna nã-sei-das-quantas era, afinal, Karénina, o romance que ela lia, sem nunca parecer fartar-se, a qualquer hora do dia. Se eu passasse por ela, parava para a observar. Via-a quando o pousava e fixava a vista num ponto do universo que eu nunca soube encontrar. Mesmo sem olhar para as páginas, Patience não o largava, capaz de o ler de memória, ou lembrando aquelas pausas que fazia no alpendre a seguir a um gole de whisky, desta vez sem a desculpa de ter o mar pela frente.

- Não leias agora - pedi, enquanto lho estendia. - Tenta dormir.

Sem esperar que me respondesse, ajeitei as mochilas para fazerem de almofada e fui eu que adormeci. (...)"

Mãe, doce mar
João Pinto Coelho
D. Quixote (2022)

domingo, 15 de janeiro de 2023

Destinos

Desde cedo tinha aprendido a diferença entre o andar sempre bêbado do N. e a má disposição de Madame L. Ao primeiro, bastava a proximidade para lhe denunciar o hálito ao tinto bebido no almoço e o apodo surgia, inclemente - anda sempre bêbado; a segunda estava longe de se encontrar bêbada, sendo o seu completo descontrolo fruto, apenas, de uma ligeira indisposição, talvez provocada por um qualquer alimento a que não era tolerante - se não passar, chama-se o médico.

A diferença entre o hálito e a má disposição acontece, na grande maioria das vezes, por obra e graça do berço, das habilidades, dos jogos de cintura, pela descoberta da possibilidade de subir escadas na horizontal ou de abrir portas sem rodar o manípulo.

A sociedade justa e igualitária (ainda) não passa de uma quimera e parece, até, estar cada vez mais fora do alcance dos muitos que "nem foram ouvidos no acto de que nasceram". Entretanto, meia dúzia, alargada, de "caramelos" altamente qualificados em cursos quase desconhecidos, sobem, instalam-se, pavoneiam-se, sempre dentro da lei, das normas e da ética, com a consciência tranquila e a certeza de não terem feito nada de errado para que a "sorte" os bafejasse e lhes desse, de mão beijada e em poucos dias, montantes que, no bolso de uma grande maioria dos seus contemporâneos, nem num ano entrará.

Quase meio século depois, continua a haver gente sempre bêbada e outros que, mesmo aos tombos, apenas têm uma ligeira indisposição que o tempo rapidamente elimina ...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Questionário

Não vale a pena insistirem. Recuso liminarmente ser convidado para Secretário de Estado e muito menos para Ministro. Bolas!

Trinta e seis perguntas para responder, num questionário que nem sequer é de escolha múltipla, é obra. Decidi: nem pensem. António Costa que me desculpe, mas não colaborarei. Ainda por cima, o questionário será destruído logo que o seu "respondente" cesse funções, o que, nalguns casos, pode significar pouco mais de 24 horas. Também neste aspecto, a minha alma fica parva e sem conseguir encontrar explicações.

Um papel, ou melhor, um documento tão importante, preenchido com todo o rigor e sapiência, subscrito por declaração de honra, essencial à vida de todos nós e ao conhecimento dos vindouros, deveria, no mínimo, ter lugar na Torre do Tombo ou, até, num Museu a construir para esse fim específico, talvez utilizando as verbas do PRR ou algum edifício devoluto dos muitos que há na capital.

Mas pronto. Está decidido e quem quiser subir a escada, tem de se dar ao incómodo de responder, com cuidado, para que nada seja omitido. As respostas não podem ser "Sim", "Não" ou "Talvez" e é importante que não contenham erros ortográficos, não vá o diabo tecê-las e alguém as divulgar nesse mar imenso das redes, causando um total descrédito de quem tanto tem de se aplicar. A extensão do "exame" e o nível de respostas exigido deve pressupor que o candidato a ele dedique pelo menos um dia.

Para além de ter de responder aos "rabos de palha", o candidato também fará, em simultâneo, prova inequívoca de que sabe ler e escrever, não necessitando de evidenciar capacidade para contar, porque isso é feito pelas máquinas.

E o mestre André a esfregar as mãos ...

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Balanço 2022

Cumprindo a tradição (inovar já não é tarefa que me motive nem espaço que me acolha), ainda que com um ligeiro atraso, ficam as capas dos livros que li em 2022, digitalizadas, tratadas em Power Point, e, finalmente, convertidas em imagem JPG e aqui "plantadas" na esperança de que, para o ano, se repita a acção.

Muitos ou poucos, não interessa. Contribuí para que a estatística de livros lidos não seja tão baixa e para que os escritores, os editores, as livrarias, continuem a sobreviver e a dar-nos sempre livros, bons, de preferência.

De alguns foram deixados por aqui alguns excertos. Isso não significa que outros o não merecessem tanto ou mais. A ocasião faz o ladrão e o momento da leitura também desperta o entusiasmo da partilha.

Se, um dia, alguém se quiser dar ao trabalho de procurar nas estantes as obras pelas quais passei as mãos, os olhos e a "pinha", tem a tarefa mais facilitada pelo menos em relação aos últimos anos.

Sou um lírico, assumido. Porventura haverá alguma alma que perca tempo com isso?!



quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Dinheiro

Circunstâncias que não vale a pena trazer, agora, à colação, determinaram a ida à Bordallo Pinheiro, com o intuito de adquirir uma peça para ofertar. Levando cartão ou dinheiro, não é possível sair daquela casa sem algo. Ontem, uma vez mais, a regra foi confirmada.

Espero que o destinatário da peça dela goste e que, sempre que a olhar, recorde a forma como tratou do meu assunto, sendo certo que não conseguirá, nessa recordação, chegar à infinita gratidão que lhe hei-de manter. Numa das peças miradas e remiradas, saltou a referência a um poema de João de Deus, que não conhecia nem consta dos escaparates cá de casa. Fui à "enciclopédia" virtual e de lá o transcrevo, mantendo toda a actualidade de ter sido escrito há 130 anos.

DINHEIRO

Dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça o maldito,
Tem tanto chiste o ladrão!
O falar, fala de um modo ...
Todo elle, aquelle todo ...
E ellas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.

E a cegueira da justiça
Como elle a tira n'um ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
É só dizer-lhe; Ahi vae ...
Operação melindrosa,
Que não é lá outra cousa;
Cataracta, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Prompta.

N'essas especies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquelle demo faz!
Sem saber nem patavina
De grammatica latina,
Quer-se a gente d'alli fóra?
Vae elle com taes fallinhas,
Taes gaifonas, taes coisinhas ...
Tlim!
Ora ...

Aquella physionomia
E labia que o demo tem!
Mas n'uma secretaria
Ahi é que é vel-o bem!
Quando elle de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a occasião:
«Conhece este amigo antigo?
- Oh meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!
 
Poesias lyricas completas
João de Deus
Imprensa Nacional (M DCCC XCIII)

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Partidas

Meia dúzia de coisas compradas, o carrinho do supermercado a tomar o rumo das caixas, sem grande movimento àquela hora da manhã. Só velhos ...

- Bom dia! Vais a pensar na morte da bezerra?

E ia. Concentrado em tudo e em nada, não me apercebi da chegada dele até ali, quase, quase encostado a mim. Nem valia a pena pedir desculpa. Ele tinha percebido que o corpo andava por ali, os olhos espreitavam as prateleiras, as mãos empurravam o carro, a cabeça estava bem longe.

Meia dúzia de palavras de circunstância, referências ao tempo que não há meio de trazer o sol para que o regresso à praia aconteça.

- Vamos pensar que só faltam três meses. É um instante.

Ambos sabíamos que havia qualquer coisa atravessada na garganta que queria sair. Era difícil. É sempre difícil ...

- Este ano vai ser menos um ...

- Pois ... quem diria. Desde sempre vendeu saúde e afinal ...

- Nem percebi bem como foi ... mas foi.

No próximo Verão, o LT já não nos fará companhia na "nossa" Foz. Os peixes deixarão de picar os seus anzóis e terão saudades, tal como nós.

E vendia saúde ... desde miúdo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Cópias

O que nos chega do Brasil não augura nada de bom para o futuro daquele país e deixa preocupações a quem, mesmo longe, vê o que a alienação, a demagogia, a falta de discernimento e de espírito crítico, podem trazer. Copiando o acontecido no Capitólio dos USA, uma quantidade significativa de vândalos invadiu e destruiu a sede dos poderes democráticos de Brasília, com, a julgar pelas imagens, a complacência de quem devia cuidar da segurança.

Nesta altura haverá muita gente a lembrar-se da sinistra ditadura militar, uns com as rezas a pedir a intervenção da tropa e muitos outros a prepararem o passaporte, não vá o diabo tecê-las.

A memória é curta, a manipulação intensa, o perigo real. Os tempos vão de molde a abrir portas a energúmenos, não acontece apenas do lado de lá do Atlântico e, é dos livros, as cópias são sempre muito piores que os originais.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Ano Novo

Hoje foi dia de Concerto de Ano Novo, não o de Viena - esse aconteceu no primeiro dia de 2023 - mas o que a Banda Comércio e Indústria dedicou à sua cidade.

O CCC esteve completamente lotado e mais de 700 pessoas assistiram a uma excelente tarde musical, com um conjunto de peças muito bem escolhido, onde não faltaram as polkas e as valsas de Strauss, o tango de Piazzola e duas gaitas de foles que fizeram as delícias da plateia, tal a qualidade exibida.

Está de parabéns a Banda Comércio e Indústria, superiormente dirigida pelo Maestro Adelino Mota, pela qualidade que, uma vez mais, foi possível apreciar e aplaudir, e também pelo prazer imenso de ver uma quantidade significativa de jovens talentos, que garantirão a continuidade da obra a caminho do século.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Palha

Depois de uma semana de sol radioso, apenas toldado pela escuridão de alguns figurões e figuronas (acertemos o passo com a moda) que, a qualquer preço, tentam gravar o seu nome nos anais da governação e nos respectivos currículos, volta a chuva. E com violência. Provoca algumas inundações e a  molha, impiedosa, dos jornalistas televisivos que têm o azar ou são obrigados a estar de serviço à reportagem do momento, ouvindo o balanço do primeiro transeunte que apareça disponível para as câmaras.

Bem melhor deve ser correr atrás de ministros e ministras (acertemos o passo com a moda), de microfone em punho e perguntas, repetidas mil vezes, na ponta da língua.

- Não sabia?

- Já disse tudo o que tinha a dizer no local próprio. Agora vou trabalhar ...

- Mas ... acha que tem condições?

- Já disse tudo ... 

- E não se demite?

Peripécias que se têm repetido nos últimos dias, por haver gente sem escrúpulos e que não se enxerga. A obtenção da primeira página, da abertura do telejornal, do cargo no currículo, da importância na ribalta, do acesso às portas que o poder abre (?).

Quase meio século passado, parece haver quem queira chamar o antigo, dar oportunidade de uns garganeiros gritarem e gesticularem, trazer excepções como retratos de regra. O exercício de qualquer cargo, público ou privado, deve acontecer com rigor, dedicação e empenho, tendo presente que poder não é colar cartazes em qualquer parede mas antes tomar decisões que, desagradando a alguns, tenham o bem de todos por objectivo.

Quem tem rabos de palha deve ficar instalado no palheiro onde os criou e esperar que o tempo passe...

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Expresso

Passaram 50 anos. Meio século. Era sábado e, pela manhã, antes de me dirigir ao Lisboa & Açores da Rua das Montras para levantar o dinheiro necessário ao pagamento das jornas da semana - os bancos e muita outra gente, eu incluído, ainda trabalhava ao sábado - fui comprá-lo.

Era o primeiro número de um jornal com um conceito novo, desde logo por ser semanário, e porque as novidades, naquela época como ainda agora, atraíam quem tinha vontade de saber. A Jornália, onde o comprei, já fechou há largos anos. O Lisboa & Açores mudou de nome e de sítio e já poucos se recordarão dele e muitos menos do caixa - Sr. Mendonça - que estava de pé e contava o dinheiro a conversar sobre tudo, incluindo o tempo.

O Expresso continua e o vício de o comprar também, como sempre aconteceu ao longo deste meio século. Falhei muito poucos ...

A edição de hoje é enorme, com o tamanho original, para matar saudades de uma leitura que se apresenta tão diferente e, muitas vezes, logo desactualizada. Até o dia da saída mudou. Agora, sai o sábado à sexta-feira.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) As histórias da minha avó, que eu adorava ouvir, e ela me contava ao jantar e ao fim de semana, atraíam-me e estabeleciam entre nós um elo mágico. Ela revelava-me um mundo antigo, cheio de interditos e mistérios. De uma beleza escura, enigmática, que excitava a minha imaginação. Havia grandeza nas suas descrições da vida de outros tempos. As mãos rachadas pelo frio. O trabalho na mercearia do pai: a forma como pegava na barra de manteiga e cortava uma fatia de 50 gramas a pedido do freguês, porque a manteiga era um luxo para quem vivia com o dinheiro escrupulosamente contado. Descrevia-me o sabor do açúcar mascavado, a caligrafia perfeita do meu avô, anotando no livro de contas o que levavam fiado. Havia beleza no rigor. Contou-me que o seu nome, Josefa, surgiu porque a sua mãe tinha tido uma gestação de barriga bicuda, sinal de varão, e portanto decidiu-se que ficaria com o nome do pai, José, e bordou-se o enxoval com a inicial J em maiúsculo. O nome de uma rapariga não tinha importância, por isso simplificaram, feminizando o nome: Josefa. Com o desgosto, o pai recusou pegar-lhe ao colo e evitou olhá-la nos primeiros meses. Depois, foi-se fazendo à ideia. Não havia solução. A minha avó era uma criança bonita, com olhos azuis cheios de luz, e o pai quebrou. <<Uma linda criança. Uma menina abençoada.>>

Deus não deu mais filhos ao meu bisavô, porque o Senhor tem os seus desígnios. Decidiu que a menina iria estudar, para não acabar a vender, como ele, feijão-frade ou grão, bacalhau seco, toucinho fumado e banha de porco. Tudo a peso. A minha avó contava que tinha sido uma das poucas raparigas da vila a completar o liceu.(...)"

Um cão no meio do caminho
Isabela Figueiredo
Caminho (2022)

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Sossego

No sossego desta rua de pouco trânsito, nada acontece. Ouvem-se os melros, os cartaxos, as rolas e alguns mais cujo canto o ouvido já não consegue identificar. Os gatos passeiam pelo quintal, preocupam-se com a adubagem das flores e a rega da relva, aproveitam os cantinhos ensolarados para uma sesta reconfortante, sempre de olho atento ao que à sua volta se passa.

A passagem de carros é rara. Quem trabalha, saiu de manhã e regressa no final do dia, estacionando à porta ou na garagem. São tão poucos ... Da meia dúzia que por aqui circula durante o dia, a maior parte enganou-se com a pressa ou distraiu-se com o telemóvel. Pelo combustível que se queima por aqui, o ambiente não se deteriora. 

Os caixotes do lixo "moram" na rua de cima e na de baixo, bem perto para serem utilizados e longe o suficiente para não serem cheirados. A avaliar pelo autocolante, a última lavagem já aconteceu há bastante tempo ou o papel não foi substituído. 

O bulício não entra! Não há crianças que joguem a bola, as poucas que aqui vivem saem de manhã e chegam no final da tarde, quando o sol já partiu para outro hemisfério. Os velhos aconchegam-se nas lareiras ou nos cobertores, o carteiro deixa o carrinho no cruzamento e uma das mãos chega-lhe para trazer a correspondência, a polícia nunca por aqui passa, por ter mais que fazer ... na esquadra. Até o sismo da noite passada, que parece ter sido sentido por muita gente, passou completamente ao lado e nem um tilinto fez.

Deixem-me sossegado!

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Promessas

Nos tempos "da outra senhora" eram frequentes as anedotas, à boca pequena, a retratarem e a gozarem com as figuras gradas que faziam e sustentavam o regime déspota que por cá mandou quase meio século.

Desde dizer-se que o Botas mandava fazer casacos sem bolsos por deles não necessitar - mete as mãos nos bolsos dos outros - até aos envelopes redondos que o Tomás queria comprar para poder enviar as circulares, havia para todos os gostos, sempre com alguma graça e crítica feroz.

Contava-se que o Botas era muito esperto e que isso se manifestava desde miúdo. 

- O gajo é fino. Sempre foi!

Quando era criança, teria tido uma doença que fez a mãe desesperar pela sua sobrevivência. Recorreu à Santa lá do Vimioso e prometeu-lhe vender uma cabra e dar-lhe o respectivo valor, se o menino se curasse. Com maior ou menor dificuldade - disso não reza a história - o Botas salvou-se e ficou impecável. A mãe, naturalmente, resolveu cumprir a promessa e agradecer a graça concedida.

- Vais à feira, levas a cabra e o galo que já estão ali separados. Vendes os dois. O dinheiro da cabra é para a Santa e podes ir logo entregá-lo ao senhor prior, a quem dizes que é de uma promessa e que a mãe lhe explicará tudo na missa de Domingo. O do galo será para comprarmos qualquer coisa que nos recorde o milagre de teres ficado bom.

O Botas lá foi. Regressou ao final do dia e entregou à mãe duas notas de cem. Espantada, a mãe reagiu de imediato:

- Então não te disse para entregares o dinheiro ao senhor prior?

- Entreguei, mas só o valor da cabra, como me tinha dito.

- Queres-me fazer crer que o galo valeu duzentos mil réis ...

- E valeu, mãe. A quem me perguntava, eu respondia que só vendia os dois animais em conjunto. Houve um que se interessou e perguntou o preço. E eu disse-lhe: vinte mil réis pela cabra e duzentos pelo galo. Aceitou e eu vendi. Está tudo certo e a promessa cumprida.

domingo, 1 de janeiro de 2023

Novo Ano

Cheguei!

Dei hoje início a uma longa caminhada, que faço votos decorra sem pedras no caminho, sem escolhos, sem atrapalhações, sem habilidades ou tratos de polé, sem ódios, sem atropelos, sem comportamentos miseráveis, sem chico-espertices, sem aproveitamentos, sem violência clara ou encapotada, sem discriminações.

Tenho consciência do lirismo que estas palavras encerram e que corro o risco (ou tenho a certeza) de que, em Dezembro, ao verificar o balanço final, dele constarão insucessos, os quais, como tem acontecido com os meus antecessores, serão mais do que as coisas boas que, naturalmente, irão surgir.

Ainda assim, vale a pena manter a esperança de que haverá um esforço universal para que muita coisa melhore e se consiga que o todo seja maior do que a simples soma das partes.