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sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Inveja

Palram pega e papagaio ...


Está poisada no passadiço, logo pela manhã, ainda o sol mal despontou no horizonte. Altiva, desligada de tudo que se passa à volta, olha ao longe e não quer reparar em quem se aproxima. A cabeça não se move na direcção de quem está quase, quase a chegar-lhe. Parece não ver. Não dá quaisquer sinais de susto ou de receio. Tudo lhe passa ao lado e ao largo. 

Quando se julga que vai ser desta que fará guarda de honra aos veraneantes, levanta voo, rápida, e interna-se na vegetação dunar. Desaparece completamente. Por mais esforço que os olhos façam, não se vislumbram aquelas penas negras debruadas a branco, num conjunto harmonioso e raro. Sabe-se que está ali bem perto. Ouve-se o palrar de várias, que já se tinham precavido dos visitantes indesejáveis. A cena repetiu-se várias vezes. Nada garante que a pega rabuda fosse a mesma, mas que parecia ser, parecia.

A caminhada, prévia ao mergulho no oceano sempre agradável  ainda que, vezes demais, impregnado de algas inoportunas, tornava-se mais apetecível e motivadora quando se descortinava, lá ao fundo, a sua pose altaneira e se apreciava, invejando, a capacidade de aguentar, sem pestanejar nem tremer, as vozes, os delírios, as inconveniências, os dislates e os disparates do mundo que a rodeia.

Deve ser bom ser pega, rabuda e a preto e branco.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Vespas

Surgiu do nada, sendo que esse nada foi algo de palpável ou resultado de distração: porta aberta, janela entreaberta, qualquer objecto vindo de fora e ela aproveitou a boleia. Era a possibilidade de conhecer novos caminhos, novas paisagens, outros costumes.

Não há certeza sobre a forma como apareceu no vidro da janela, subindo e descendo de forma vagarosa, como a deliciar-se com o passeio mas buscando a liberdade que a luz do dia lhe indicava, apesar da chuva incessante. 

- Olha uma vespa! É enorme!

Era bem maior do que aquelas que aparecem normalmente no jardim e que por lá permanecem sem causarem qualquer dano, embora, por vezes, se devam arreliar com as primas abelhas, na disputa do pólen de melhor qualidade. A preocupação de evitar o seu desaparecimento da natureza condicionou a racionalidade do perigo que ela transportava, sentindo-se aprisionada e perturbada.

Abriu-se a janela, tentando que, sem chegar perto e sem movimentos bruscos que a assustassem, ela descobrisse, com o seu radar próprio, o caminho para o sítio de onde tinha vindo ou algum parecido. O semáforo não funcionou e a seta, virtual, que lhe foi apresentada foi ignorada por completo. A aflição começava a dar sinais.

- Vai buscar um pano, pega-lhe e manda-a pela janela.

Há muitos anos que não era picado por uma vespa. Lembrava-me bem da última vez e das dores que me tinha causado. A racionalidade não esteve presente e o pano não criou a protecção necessária. A vespa não perdoou a ousadia e ferrou o dedo com tal violência que o pano, com ela dentro, voou pelo quintal fora.

Não faço ideia se, como se diz, ela morreu depois de ferrar o "dente". Isso já não me preocupa, até porque o Código Penal, que eu saiba, ainda não prevê que possa constituir crime sacudir para longe uma simples vespa.

O que sei é que já passaram quase dois dias, já coloquei vinagre várias vezes, apertei com uma faca, coloquei gelo, besuntei com Fenistil e o "pai-de-todos", esse dedo fundamental para a linguagem gestual dos machos, ainda não me deu descanso, continuando a trazer a vespa à minha mente, sem contemplações e com dores suficientes para eu não a esquecer.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Recordações

Numa época em que os animais, e muito bem, são acarinhados e há muita gente a envidar esforços para que sejam respeitados, a memória fez "ressuscitar" um conjunto de quadras que constavam de um dos livros da instrução primária, talvez o da 4ª. classe. 

A "enciclopédia Net" esclareceu que o seu autor foi Pedro Diniz (1839?-1896) e que Antero de Quental o recolheu no seu Tesouro Poético da Infância, livro que não consta da biblioteca caseira mas que ainda é possível encontrar à venda.

E, em rima, se confirma e esclarece que o corvo crocita, a raposa regouga e alguns burros, não todos, zurram

                    VOZES DOS ANIMAIS

Palram pega e papagaio                                        O pardal, daninho aos campos,
E cacareja a galinha;                                             Não aprendeu a cantar;
Os ternos pombos arrulham,                               Como os ratos e as doninhas,
Geme a rola inocentinha.                                      Apenas sabe chiar.

Muge a vaca, berra o touro;                                 O negro corvo crocita;
Grasna a rã, ruge o leão;                                      Zune o mosquito enfadonho;
O gato mia, uiva o lobo,                                       A serpente no deserto
Também uiva e ladra o cão.                                 Solta assobio medonho.

Relincha o nobre cavalo;                                      Chia a lebre; grasna o pato;
Os elefantes dão urros;                                         Ouvem-se os porcos grunhir;
A tímida ovelha bale;                                            Libando o suco das flores,
Zurrar é próprio dos burros.                                Costuma a abelha zumbir.

Regouga a sagaz raposa                                       Bramam os tigres, as onças;
(Bichinho muito matreiro);                                   Pia, pia o pintainho;
Nos ramos cantam as aves,                                  Cucurica e canta o galo;
Mas pia o mocho agoureiro.                                 Late e gane o cachorrinho.

Sabem as aves ligeiras                                          A vitelinha dá berros;
O canto seu variar;                                               O cordeirinho balidos
Fazem às vezes gorjeios,                                     O macaquinho dá guinchos;
Às vezes põem-se a chilrar.                                A criancinha, vagidos.

                                                A fala foi dada ao homem,
                                                Rei dos outros animais.
                                                Nos versos lidos acima,
                                                Se encontram, em pobre rima,
                                                As vozes dos principais.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Sebastião

Preto, pêlo lustroso, cauda a abanar, olhos atentos ao que vai acontecendo à sua volta. Anda e ciranda, chamando a atenção e reivindicando as honras da casa. Quatro patas, orelhas meio caídas, nem o chamamento da dona, acompanhado de petisco visível, o afasta das visitas.

- Este cão ... está com medo da trovoada.

E não era para desprezar. Os relâmpagos iluminavam o céu e sucediam-se a um ritmo frenético. O Sebastião, encolhido, procurava o apoio das nossas pernas e dizia, lá na sua língua:

- Deixem-me ficar aqui. Não faço mal a ninguém, lá fora chove muito e eu tenho medo da luz.

Os clientes do hotel manifestaram agrado e carinho pela presença do animal, e a gerente ficou menos constrangida e não o pressionou mais.

- Adora estar cá dentro e quando vêm clientes novos, fica curioso e não arreda pé. Por vezes, afasta-se e pode estar três ou quatro horas sem aparecer. Mas volta sempre ...

Certo dia, um habitante fazia a sua caminhada e o Sebastião, preocupado, por certo, com a sua segurança, seguiu-o a alguma distância. Percorridos três ou quatro quilómetros, o homem chegou a casa e só então reparou que o cão o tinha acompanhado até ali. Conhecia-o bem e sabia onde morava. Já não lhe apetecia caminhar mais e resolveu pegar no carro, oferecendo um lugar ao Sebastião e trazendo-o de volta ao hotel. Aí chegado, abriu a porta do carro e o Sebastião, agradecido, saiu. Já estava nos seus terrenos e ficou por ali, a desfrutar mais um pouco de ar puro, sem pressa da hora de recolher. Alguém, de passagem, presenciou a cena e concluiu, de imediato, tratar-se de abandono de animal. Daí a telefonar para a GNR, comunicando o "crime" e a matrícula do carro do "insensível" ser humano foi um instante, talvez até usando o telemóvel ao volante. 

As autoridades vieram de imediato e encontraram o Sebastião ainda na rua. Confirmava-se o "crime" denunciado e era urgente contactar o "criminoso". A matrícula transmitida permitiu chegar-lhe depressa e ouvir a surpresa do homem, contando o que tinha acontecido.

Satisfeito com a duração do recreio e da actividade física, o Sebastião aproveitou a nesga da porta e instalou-se no "quarto" que lhe pertence e de onde esteve prestes a ser arredado, por uma denúncia anónima, apressada ... mas politicamente correcta.