quinta-feira, 31 de março de 2022

Vespas

A vespa é um insecto muito semelhante à abelha que produz esse alimento extraordinariamente bom e nutritivo chamado mel. Porém, ao contrário da obreira, a vespa a única coisa que sabe e gosta de fazer é picar, estando sempre disponível para o fazer, não distinguindo nada nem ninguém. 

Imita a abelha, saltitando de flor em flor, voando sempre com mais velocidade para chegar primeiro, não vá o pólen acabar. Não produz mel, talvez faça cera, da outra, e nunca está satisfeita com a produção acontecida.

- É doce, é verdade, mas podia ser muito melhor ... se fosse de rosmaninho, seria muito mais saboroso.

 - Mas não há rosmaninho disponível por aqui!?

- Podia ser urze, ou buganvília, ou hibisco. Ficava melhor de certeza.

Por mais evidentes que sejam as escolhas da abelha, por melhores que sejam os resultados obtidos, a vespa continua a achar que está mal e que seriam muito melhores se fosse ouvida. Ela, sim, sabe bem e nem precisa de estudar. Vem-lhe do berço!

Não conhece o trabalho nem a forma de o mesmo se concretizar. Nunca o fez, não o faz nem pensa algum dia ter essa desdita. Paira acima, como Deus omnipresente e omnisciente, com o respeito devido por Deus que, ao que sei, detesta as vespas. Sabe, porém, fazer uma coisa, uma apenas: morder. Com violência, e sempre com a escapadela na mira, não vá o diabo tecê-las.

- O mel não é suficientemente doce. Até está um pouco escuro ...

- Nesta altura não há flores que o façam mais claro.

- Há, há. Não procuraste bem, mas também não te vou ensinar.

A saga continua e não parará nunca. É a lei da vida: a abelha trabalha, a vespa morde. Daqui não saímos. A abelha executa o que sabe, sempre com a preocupação de produzir o melhor mel para todos. Nem sempre consegue, mas o esforço é contínuo. Ao contrário, a vespa sabe tudo de tudo, apesar de nunca ter feito nada. E morde, morde, sem cessar e sem se cansar. Pudera!

Nota: qualquer semelhança entre as vespas e os sapientes "paineleiros" das televisões e das redes ditas sociais não é mera coincidência.

quarta-feira, 30 de março de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Acabei de ler o diário que Gonçalo M. Tavares escreveu, de 23 de Março de 2020 a 20 de Junho do mesmo ano, com entradas diárias sobre a pandemia que assolou o mundo e que, nesta altura, estará em hibernação, porque outros valores mais altos se alevantam. Para além da qualidade, há muito reconhecida, da escrita do autor, é um documento que perdurará para o futuro e para a história.

"20 de Junho de 2020
Diante do acontecimento, ficar atento e em pé

Dia de solstício. O Verão começou este sábado às 22H44.
Dia e biologia cronometrados com este falso rigor.
Podemos falar assim da partida de um foguetão da NASA, mas não das coisas vivas.
Noventa dias, hoje. Diário da Peste, fim.
2020, ano suspenso, nuvem. Nem cai nem sobe.
Ritmo destes diários, corrente eléctrica debaixo do texto.
Por vezes de manhã, outras à noite: uma excitação diante da notícia: notícia como curto-circuito.
Energia primeiro fechada em casa. Mas, se a energia não sai em texto, essa energia torna fraco e demente quem a tem.
Necessidade absoluta, diário.
Diante do acontecimento, ficar atento e em pé.
Força contra o muito mais forte.
Ou estás presente nos dias fortes ou foges. Ou de boca aberta fazes um ohh como som, resposta e pasmo.
Diário da Peste como companheiro nos dias duros e nos dias feitos para ver. Necessidade e tensão.
E tentativa de documento para que a memória bamba deixe um vestígio mais claro.
(...)
Não vai apenas haver um depois disto, mas um grande depois.
Um trágico, leve, pesado, terrível, efusivo, faminto, debochado, perverso, egoísta, incerto, tremido, assustador: um depois que será tudo isto e mais.
Um depois ambíguo, brutal e alegre.

Diário da Peste
Gonçalo M. Tavares

terça-feira, 29 de março de 2022

Joelhos

- Está a doer-me o joelho ...

- Deve ser mudança de tempo. Se calhar vai chover!

Já caíram uns pingos, ainda que nada de significativo. Talvez amanhã haja mais. 

Isto de fazer a ligação entre dores mais ou menos crónicas e mudanças de tempo tem que se lhe diga. É o saber da experiência feito e desde que me conheço que o oiço. Apesar disso, tenho para mim a sabedoria do meu pai, lá do alto da sua experiência de uma vida que durou mais de 90 anos: é do tempo, sim, mas do que eu já levo. E eu, invejoso, copio-lhe a crença. A dor no joelho não pode ser do tempo que há-de fazer amanhã e dizer isso é apenas uma desculpa para justificar o que não sabemos.

Este joelho, maroto, não se habitua a viver na esquerda sem as peças que lhe foram retiradas há mais de quatro décadas e, teimoso como o dono, recusa a adaptação, sinalizando com regularidade a sua situação e vincando as diferenças que tem da direita. Talvez seja reguilice para dar nas vistas, para se manter ao lado do vizinho e com ele fazer questão de dividir o trabalho diário, apesar de não ser tão dotado e não poder exibir-se muito. Não deve ser fácil. O corpo do dono cada vez se vai tornando mais pesado, diminuindo a mobilidade na mesma proporção, ou mais.

Tem alguma razão o lado esquerdo, como sempre. Aguente-se. Ninguém o mandou não ser cuidadoso o suficiente. O tal saber da experiência feito ensina-nos que, quando a esquerda facilita, a direita aproveita. 

Não vou tirar as peças à direita só para equilibrar. É a vida! 

segunda-feira, 28 de março de 2022

Pintassilgos

Desde muito miúdo que me habituei a gostar de pintassilgos. O seu modo ondulado de voar, o seu chilreio delicioso, as suas cores tão bonitas, fazem deles os meus pássaros de eleição. Mesmo no tempo das "caçadas" aos pássaros, o pintassilgo era sagrado. Os melros, os tordos, os tentilhões, os pardais-telhado, as felosas brancas, os estorninhos, não ficavam descansados perante um "bando" de miúdos armados com uma pressão de ar ou com meia dúzia de fisgas. O pintassilgo podia estar descansado. Ninguém lhe fazia mal e todos ficavam extasiados com a sua beleza.

Procurados com a ânsia da descoberta, os ninhos de qualquer ave eram respeitados, para garantir que a espécie continuava. O desenvolvimento da criação era seguido com curiosidade e atenção, ao longe.

- Já tem dois "seixos". Não se pode mexer. Enjeitam ...

Todos viviam na crença de que os ovos eram "seixos" e que chamar-lhes pelo nome correcto ou mexer-lhes podia significar o abandono do ninho pelos pais. Assistia-se ao desenvolvimento das crias, primeiro completamente nuas, depois com a penugem, a seguir as primeiras penas, até que um dia, quando se chegava, só restava o ninho. A família tinha partido, para se dedicar à vida normal, deixando o lar para algum cuco que dele se quisesse apropriar.

- Já abalaram ...

Graças aos pesticidas que fizeram (ou ainda fazem) as "delícias" da agricultura, os pintassilgos quase desapareceram. Felizmente, parece que estão a recuperar e já se voltaram a ver bandos pousados nos caniços, os quais, à aproximação dos humanos, levantam naquele voo gracioso e único, chilreando com uma musicalidade que é única na natureza. 

Há uns dias, um pintassilgo pousou na parede do meu escritório e passou a fazer-me companhia diária. Não canta nem voa, a não ser na imaginação do dono, mas que é bonito, é.

domingo, 27 de março de 2022

Dia Mundial do Teatro

Por que vio as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro, e ella não podia viver sem elle

Eu só quero prantear
este mal que a muitos toca
Que estou já como minhoca 
Que puseram a secar. 

Triste desaventurada,
que tão alta está a canada 
para mim como as estrelas; 
Ó coitadas das goelas! 
Ó goelas da coitada!

Triste desdentada escura 
quem me trouxe a tais mazelas?
Ó gengivas e arnelas
deitai babas de securas.

Carpi-vos, beiços coitados
que já lá vão meus toucados.
E a cinta e a fraldilha;
Ontem bebi a mantilha,
que me custou dois cruzados. (...)

Pranto de Maria Parda
Gil Vicente

Foi há muitos anos (agora já tudo foi há muito tempo), não me lembro quantos mas recordo as circunstâncias quase como se tivesse sido hoje ou talvez melhor!

Um curso profissional prolongado obrigou-me a estar em Lisboa, semana sim, semana não, durante vários meses e isso permitia-me, à noite, usufruir de alguns espectáculos que iam tendo lugar na capital, da cultura e do país. Numa dessas noites - o trabalho era só de dia - fui até Santos ver Maria do Céu Guerra interpretar o Pranto de Maria Parda no antigo cinema Cinearte, convertido, em boa hora, em sala de espectáculos do Teatro A Barraca.

O cinema Cinearte estava presente na minha memória desde os anos sessenta do século passado. Conheci, nesse tempo, um homem bom, a quem chamávamos Ti Neca, que ali tinha sido projeccionista. Contava aventuras fabulosas que por lá tinha vivido e presenciado. Assisti à sua partida e arquivei o contado na gaveta, profunda, da memória.

A sala do Cinearte estava cheia e, quando as luzes iluminaram o palco, surgiu uma "velha", andrajosa, encolhida, com um cajado numa das mãos e na outra uma garrafa de vidro, verde-garrafa, que levava à boca com a regularidade que o texto permitia e exigia.

A bêbeda era interpretada de forma soberba e o texto dito na perfeição, não escapando nenhuma sílaba, apesar do entaramelado maravilhoso da voz de quem "bebeu" demasiado. Nunca mais esqueci a "bêbeda" de Maria do Céu Guerra e isso "obrigou-me" a segui-la em quase todos os espectáculos que levou à cena naquela sala e em algumas outras. Nunca me arrependi!

sábado, 26 de março de 2022

Noite curta

Não era suficiente a pandemia, veio a guerra. Agora, temos a actividade sísmica na Ilha de S. Jorge, onde parece que Velas é o sítio mais preocupante. Contraditório. Velas são sempre um elemento de ligação com o Altíssimo, ainda que as de cera tenham diminuído de forma drástica.

Se o cepticismo imperasse, diria que o fim do mundo caminha imparável, ainda a tempo de eu o ver. Não vale a pena ir por aí. Encare-se a desdita e tentemos arranjar soluções para que o amanhã seja melhor, mesmo sabendo que tudo é cada vez mais efémero. Passa à velocidade da luz ou talvez até mais rápido. Muita coisa acontece e nem sequer se dá por isso.

Nas parangonas, a pandemia já se eclipsou. Quando muito, tem direito a uma pequena nota, quase despercebida na página par de um qualquer jornal ou na notícia, breve, que antecede o intervalo para publicidade, nas televisões. A guerra também já está a perder foco, tornando-se repetitiva para quem está longe e para quem com ela sofre. Para estes, a repetição deve doer e muito. Nos Açores, a esperança é que, rapidamente, desapareça das primeiras páginas pelo que está a prever-se e volte a ser notícia pela sua beleza, que é muita, digo eu, por experiência própria naquelas ilhas tão lindas.

A próxima noite tem menos uma hora. Desaparecerá sem deixar rasto e amanhã, os relógios actuais nem precisarão que se pegue na rodinha para acertar. Quando os olhos se abrirem, tudo estará conforme, e a vida continuará como até aqui, sem ninguém se preocupar para onde foi a hora suprimida.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Circo

Conseguirá o "trapezista" chegar ao "baloiço"?

A dúvida no Expresso de hoje, pela mão, sempre brilhante, de António.

quinta-feira, 24 de março de 2022

25 Abril

Começaram ontem as comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril, com uma cerimónia no Pátio da Galé, que contou com as entidades oficiais e a presença da Chaimite "Bula", que foi a "Uber" de Marcelo Caetano para a saída do Quartel do Carmo. As músicas foram interpretadas pela Orquestra Geração, projecto extraordinariamente interessante e importante.

No final, foi guardada uma caixa de cortiça, a que chamaram cápsula do tempo, que irá ser aberta quando se comemorar o Centenário da Revolução dos Cravos. Nela se guardaram alguns objectos relacionados com a operação militar, que foram colocados pelo "capitão" Vasco Lourenço. Foi ainda colocado um exemplar do jornal Público, cartas de dois jovens estudantes e um poema de Alice Neto de Sousa. O objectivo é que, em 25 de Abril de 2074, sejam estes documentos consultados e lidos, talvez por alguns daqueles que os escreveram e que, nessa altura, serão já "pessoas de uma certa idade". 

A leitura do poema "Março", efectuada de forma brilhante pela sua autora, deixou-me fascinado. Já tinha acontecido aqui e ontem encheu-me de novo. Fica o registo do seu magnífico poema, "roubado" ao Expresso, com a esperança de, daqui por cinquenta anos, já não haver necessidade de a poeta escrever assim e poder dizer que valeu a pena escrever e gritar Liberdade.

Expresso

quarta-feira, 23 de março de 2022

Liberdade, sempre!

Para além das mortes e das destruições que implica, a guerra transporta consigo ódios irracionais entre pessoas, algumas que, por vezes, até eram amigas. A raiva é fomentada, a culpa atribuída, a razão está sempre do "nosso" lado.

Não é de agora. Sempre foi assim, durassem as disputas muito ou pouco tempo. Quase um mês depois de ter começado, a barbárie está a trazer ao de cima esses ódios, indiscriminados, com alguns a pretenderem tomar a parte pelo todo e a considerarem que, pelo facto de o ditador e déspota ser russo, mais ninguém daquele país se aproveita, mesmo aqueles que já nem sequer cá estão.

Das artes às letras, da música à dança, parece haver gente hipócrita que pretende passar lixívia para que tudo fique branco. O homem há-de desaparecer e os russos continuarão a deixar-nos grandes obras, para serem registadas nas páginas mais sublimes da História. O ditador, esse, juntar-se-á, em letras minúsculas, a todos aqueles a quem fará companhia, na história de letra pequena.

A liberdade não tem preço e a opção do gosto não precisa de qualquer controlo. 

Só conhecendo se escolhe bem!

terça-feira, 22 de março de 2022

Água aberta

Raro é o dia em que não se comemora um qualquer acontecimento, uma efeméride, um aniversário, um nascimento, uma morte, qualquer coisa importante que está, ou deve estar, na memória das pessoas e fazer parte da cultura que têm de exibir, para que conste ...

Hoje é o Dia Mundial da Água e a "Aberta" foi aberta!

Não há fotografias que o comprovem, porque o S. Pedro, sempre do contra, não colaborou e mandou para o Oeste um dia sem sol, com vento desagradável e muito chuvoso. Claro que apesar das condições climatéricas não serem favoráveis, um fotógrafo de qualidade teria conseguido uma boa "chapa", talvez até ilustrada por um criativo céu azul obtido num qualquer fotoshop.

Assim e porque o fotógrafo é rasca, fica apenas a palavra, mais do que suficiente para garantir a todo o mundo que a ligação ao mar está restabelecida, ainda que as máquinas por lá continuem a torná-la mais larga e mais profunda, para que o seu desempenho seja melhorado e se evite que o "malandro" do mar não seja como o S. Pedro, e volte tudo à estaca zero.

Está quase a chegar o tempo de usufruir daquela maravilha, desde que o S. Pedro se porte bem e não baralhe tudo, como tem feito até aqui.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Actualidade

A poesia tem a virtude de poder ser lida mil e uma vezes e trazer sempre novidade, mantendo-se actual.

COM CINCO LETRAS DE SANGUE

De súbito três tiros na memória.
Apagaram-se as luzes. Noite. Noite.
De súbito três tiros nas palavras
uma poeta calou-se e acabou-se a canção.

De súbito um poema foi bombardeado
um poeta fechou-se nas vogais
cercado por consoantes que talvez
caminhassem cantando para um verso.

Eram granadas? Eram sílabas de fogo?
E de súbito a guerra. Noite. Noite. E um poeta
com cinco letras escreveu no chão: porquê?
Com cinco letras do seu próprio sangue.

30 Anos de Poesia
Manuel Alegre
Dom Quixote (1995)

domingo, 20 de março de 2022

Distância

Vieram visitas, lá de longe, do outro lado do Atlântico. 

Há mais de dois anos que não estávamos juntos e havia muito que contar sobre o período "sabático" que o vírus nos obrigou a cumprir. Foi um dia bom, curto para tanto que havia para dizer e desfrutar. 

Para evitar experiências idênticas, espera-se e deseja-se o regresso à normalidade, com saúde e em paz.

Assim o queiram, por um lado, o coronavírus, que não se vê mas sente-se, e, por outro, o micróbio Putin, para o qual a ciência ainda não encontrou um antibiótico que lhe trate da saúde.

sábado, 19 de março de 2022

Dia do Pai

Neste dia do pai, o meu faria 100 anos - um século -, se não tivesse partido.

TREVAS

Bato à porta da minha solidão,
E ninguém abre!
Na grande noite que me rodeou,
Quem vinha ao meu encontro, desviou
A direcção fraterna da ternura ...

Trevas - é o que ficou
Na concha de que fiz a sepultura.

Cântico do Homem
Miguel Torga
Coimbra (1974)

sexta-feira, 18 de março de 2022

"Aberta"

As máquinas já se instalaram e a areia começou a ser removida, ainda que de forma lenta.

A abertura da "aberta" está marcada para o próximo dia 22, quando estiverem concluídos os trabalhos preliminares que estão a ser efectuados, e faltar apenas romper a ligação. O peso da água da lagoa fará o resto, levando uma boa corrente para o mar que, em maré vaza, a receberá, espera-se, de braços abertos. Será o reatar das relações de duas entidades que se toleram, convivendo juntas para sempre, ainda que, por vezes, pausem a ligação para recarregar baterias.

Depois, bem, depois, ver-se-á. Todos anseiam que o mar concorde e se disponibilize para a situação criada pela mão humana, contrariando a pausa decidida por quem detém o poder naqueles domínios.

Nem sempre assim acontece e o mar, já se sabe, é rei e senhor daquelas bandas e, por norma, gosta de contrariar quem o provoca.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Finalmente?

A avaliar pelos ecos que nos chegam, parece que estará em vias de se concretizar a "vacina" que acabará com a mortandade e com a destruição que a Rússia e o seu "dono" instalaram na Ucrânia, desde o passado dia 24 de Fevereiro. Já lá vão 24 dias! Tenho a sensação de que são ecos distorcidos e continuo bastante céptico em relação ao fim que se deseja, embora não tenha nenhum conhecimento que me permita fundamentar. Apenas me limito a ansiar que o meu cepticismo não vingue e que aquela selvajaria acabe "ontem".

Pelo que sei, habitarão na Ucrânia cerca de 44 milhões de pessoas, havendo mais alguns milhões de ucranianos espalhados por vários países, entre os quais Portugal. De acordo com as informações veiculadas pela ONU, mais de três milhões já abandonaram o país e haverá à volta de seis milhões que se encontram deslocados internamente. 

É muita gente, não haja dúvida! Mas é tão pouca quando comparada com a que se mantém nas suas terras, sabe-se lá em que condições e com que sofrimento. 

A História há-de encarregar-se de adjectivar os autores desta vergonha, mas isso não trará nada de importante para quem o sofreu nem lhes servirá de consolo.

quarta-feira, 16 de março de 2022

Coragem

A "idade" que o blogue leva faz com que muitos assuntos, acontecimentos, peripécias, já por aqui tenham feito escala, numa viagem qualquer, e por isso exige atenção para que se não perca muito tempo com os tratados anteriormente, evitando-se repetições sempre algo maçadoras.

O 16 de Março de 1974 foi um dia importante para o (meu) Regimento de Infantaria 5 (actualmente Escola de Sargentos do Exército), para a cidade, para o país e para todos aqueles que nele se envolveram. Não teve o sucesso que se desejava, talvez por uma deficiente planificação e uma apressada corrida, mas serviu para alertar os mais distraídos de que alguma coisa andava no ar, fazendo transparecer a  disponibilidade militar para pôr fim à ditadura.

Como sempre, a pressa é inimiga da perfeição e a saída das Caldas rumo a Lisboa não surtiu o efeito desejado. Apesar disso, é importante que a data não seja esquecida, muito menos omitida, para que a memória permaneça e seja possível trazer ao conhecimento das gerações mais novas o que se passou e quão difícil era, naquela época, dar um passo tão importante.

Era preciso muita coragem para correr os riscos implícitos e que todos bem conheciam.

terça-feira, 15 de março de 2022

Racionar / Racionalizar

- Sabes que é muito difícil mandar dinheiro para Moçambique e demora muito tempo ...

A conversa foi ouvida sem querer, numa ida, rápida, a um supermercado, que já tem racionamento de óleo alimentar. Não vende mais de quatro embalagens a cada cliente e refere isso mesmo no aviso, grande, afixado na prateleira, bem à altura dos olhos para que todos o vejam e ninguém o ignore: "informa-mos os nossos clientes...". Tendo em conta que, por aqui, habitam muitos estrangeiros, fiquei com pena que o aviso não estivesse também em língua inglesa. Abrangia mais gente e talvez não tivesse erro tão clamoroso. Embirrações de velho ...

Voltando à conversa telefónica: a senhora justificava-se perante alguém que, estando em Moçambique, deveria estar bem precisado e ainda não tinha recebido o enviado, apesar do tempo decorrido. 

- Tu não fazes ideia. Não é fácil e, disseram-me logo, demora muito tempo.

Moçambique não tem, que se saiba, a rede Swift bloqueada, mas o "carcanhol" ainda deve estar a percorrer o Atlântico, dobrará o Cabo das Tormentas e só depois iniciará a subida do Índico. 

Para quem vive com as transferências imediatas à mão de semear, custa a entender. Mas é assim. O mundo está longe de ser perfeito e ainda mais de ser idêntico em todas as latitudes.

"Tenha-mos" a consciência disso e não "entre-mos" em modo do salve-se quem puder. 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Utopia

Tanto que há para fazer e, mal se olha para o lado, o tempo já passou, é quase noite e a luz esmorece tal como acontecia às candeias antigas, quando o azeite se gastava.

Apesar desta velocidade, não há pressa em acabar com o flagelo que estalou no dia 24 do mês passado e não parece ter fim à vista, a não ser para aqueles que já descansam na vala. Será que aquela gentalha conseguiria articular meia dúzia de palavras se fosse colocada frente a frente com todos aqueles que, com filhos ao colo, são forçados a fugir em busca de um pouco de paz e sossego? Certamente que não, até porque, na maioria dos casos, a coragem só existe bem sentada na poltrona e com as costas guardadas, porque quem manda aqui sou eu e eu sei muito bem o que é melhor para todos.

domingo, 13 de março de 2022

Contrariar

O encerramento da ligação do mar à Lagoa já vai na segunda semana. Não aconteceu por decreto governamental, intervenção do Presidente da República, da Câmara ou do Ambiente, e sim por determinação do "Rei Atlântico", cujo reinado acontece, por aquelas bandas, de forma absoluta e autocrática, como alguns humanos ainda persistem em fazer.

O trabalho de desassoreamento, que vem acontecendo desde Setembro do ano passado, era tido como a salvação da Lagoa, que iria garantir não só a vida de todas as espécies que nela habitam ou que a visitam, como também a permanência da ligação ao mar, que garante a renovação das águas e a sua oxigenação permanente.

Tudo isto não sofre qualquer contestação e tinha/tem o apoio de todos os que gostam da zona, única no país, que garante a subsistência de muita gente e satisfaz gastronomicamente muita outra. Foi tudo estudado ao pormenor, das máquinas a usar à época dos trabalhos mas ... não conversaram atempada e cerimoniosamente com o mar. Toda a gente sabe que ele é dos que gostam de contrariar e determina a sua acção sem passar cartão a ninguém. Resultado: a "aberta" está fechada e aguarda-se a chegada das máquinas que a hão-de reabrir.

Era engraçado que o "Rei", do contra, fizesse, ele próprio, esse trabalho antes de as máquinas chegarem!

sábado, 12 de março de 2022

Qualidade

Aprendi cedo que não se pode confundir a beira da estrada com a Estrada da Beira ou o bife à milanesa com o bife em cima da mesa.

O que está a passar-se na Ucrânia e os reflexos que tem sobre pessoas que por lá nasceram, ucranianos ou russos, demonstra como as frases são verdadeiros axiomas: não podemos confundir aquela gentalha que detém o poder na Rússia com a grande maioria dos russos, vivam eles lá ou aqui. Também nem todos os ucranianos serão heróis e alguns haverá que até serão vilões. 

Não se tome a parte pelo todo nem se confunda a árvore com a floresta. Haverá russos que não prestam, mas isso não é determinado por terem nascido russos e sim por serem pessoas, como todos nós, cheias de defeitos e, talvez, algumas qualidades. O mesmo acontece com os ucranianos, os portugueses, os franceses, os americanos, os ganeses, os angolanos, os alemães, os chineses, os coreanos, os vietnamitas e, pasmem, até com os esquimós e, ainda por provar, até com os marcianos.

A cor da pele, a origem, o sexo, o sítio onde se mora, não determinam nada. A qualidade do animal, essa sim, sem qualquer dúvida!

sexta-feira, 11 de março de 2022

Privilégio

Ainda não havia chegado aos 23 anos e estava integrado numa equipa constituída por gente mais velha, cheia de conhecimentos, experiência e vontade de fazer muito, e bem. A ânsia de aprender era igual à de ensinar e as duas juntavam-se sem olhar a horas de saída ou refeição. A busca sistemática da mudança, do melhor para todos, dos novos horizontes abertos no ano anterior, era constante.

Naquela terça-feira, o trabalho desenrolava-se com a normalidade possível, sentindo-se no ar que poderia estar para acontecer alguma coisa a qualquer momento. Os boatos eram constantes e, como toda a gente que foi à tropa sabe, o boato fere como uma lâmina. 

O gabinete ministerial estava instalado no primeiro andar de uma das torres da Praça do Comércio e tinha uma vista linda para o Tejo, com Cacilhas e os estaleiros da Lisnave lá ao fundo. Da primeira vez, ninguém reagiu ao barulho do helicóptero. Daí a pouco, o mesmo ou outro sobrevoou a praça a baixa altitude e chamou definitivamente a atenção. Os olhos deixaram o Tejo e fixaram-se no ar. A concentração saiu da secretária e colocou-se toda no céu, num outro helicóptero que se aproximava e em dois caças que passaram a grande velocidade, rumo ao norte.

A calma era aparente. Havia gente com experiências fortes e bem vividas em situações de guerra que, apesar disso, não conseguia disfarçar a ansiedade.

De repente, a porta abriu-se.

- O Spínola 'tá maluco! Eu nem uma pistola tenho ...

A contenda não se concretizou e o diálogo impôs a paz, felizmente. Os tiros nunca resolveram e, ainda hoje, assim acontece. 

Há 47 anos, foi o diálogo corajoso entre os comandantes das duas forças, com ordens para a confrontação, que resolveu o problema e evitou a guerra. Assim fosse possível hoje, na Ucrânia.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) Velho como sou e mais precavido do que qualquer pardal ou abelharuco, não me entusiasmei com a breve trégua do mau tempo. Nem sequer fui ver as estrelas ontem à noite, desconfiado de que o vento que principiava s soprar da serra havia de trazer nuvens escuras e novas bátegas. Deixei-me ficar a dormir sonhos estranhos e a tossir uma bronquite que creio poder atribuir à chuva das semanas anteriores e ao facto de não ter tirado as botas molhadas quando, um destes dias, cheguei a casa para comer foie gras e requeijão de cabra, e sobretudo para beber vinho tinto, que é a melhor forma de esquecer que lá fora há um mundo de coisas inóspitas e com má cara: a chuva, o vento, os governos fascistas, as doenças novas, a ignorância e as raparigas que não sorriem.

Alba seria capaz de interromper este Inverno com uma simples gargalhada.

Diria decerto que lhe faço lembrar, nas minhas deambulações pela vila, o velho actor careca que, na capital, costumava passar sob a nossa varanda no decurso das suas caminhadas matinais. Rir-se-ia ao imaginar que também eu pudesse percorrer as ruas por prescrição médica, usando um fato-de-treino antiquado e sapatilhas de desporto, passeando sem pudor um nariz de abutre e os fiapos do cabelo que me tivesse sobrado na nuca. Eu sorriria também, sinceramente divertido com a possibilidade de me ver transformado num caminhante calvo como um ovo e capaz de procurar compensar a careca deixando crescer os sobejos do cabelo muito para além do razoável. Esqueces que sou professor de Estética, dir-lhe-ia, e que o ridículo é uma forma de arte que nunca me interessou. Também és escritor e não escreves, responderia Alba. (...)

A última curva do caminho
Manuel Jorge Marmelo
Porto Editora (2022)

quarta-feira, 9 de março de 2022

Cegonha

Há quarenta e quatro anos, a chegada dos bébés era ainda, em muitos casos, feita através do bico da cegonha que os trazia de Paris, sem passaporte, carregados do bulício francês e ávidos da serenidade da paz e sossego do nosso país, seguro, belo, e sem grandes oscilações climáticas.

O transporte "cegonhal" estava em decadência e viria a desaparecer completamente daí a pouco tempo, acompanhando a abertura que se foi, finalmente, dando. A cegonha reciclou-se e passou a efectuar outras tarefas, como fazer ninhos no cimo dos postes de electricidade ou vaguear pelos campos, tarefas para as quais estava mais talhada e a faziam mais feliz.

A minha bébé foi produzida em casa e nasceu, com a mãe a dormir e com o auxílio do bisturi do cirurgião e de mais alguns intervenientes de bata branca e estetoscópio ao pescoço. Um deles, que por acaso foi uma ela, veio cá fora e deu a notícia:

- É uma menina, muito bonita, e está tudo bem.

Toda a gente sabe que os bebés são sempre bonitos e, por isso, essa não era a novidade. Notícia era ser uma menina, depois de nove meses a fazer o teste da agulha, a ouvir dizer que o formato da barriga indiciava ser um menino e "olha que eu raramente me engano". E a cara da mãe diz o mesmo. Eram as ecografias da época. À cautela, havia em carteira um nome para cada situação.

Como é diferente hoje. Sabe-se se é menino ou menina ainda a barriga mal evidencia a gestação e há tempo de sobra para escolher o nome e divulgar o nascimento, com o ser nascido já devidamente identificado e não um qualquer cidadão sem nome.

A minha menina aí está, feliz, cumprindo a quarta capicua da sua vida!

terça-feira, 8 de março de 2022

Dia Internacional da Mulher

CLAUSURA

Maria olha
a vida
trancada à sua frente

sem uma ranhura
ou fresta ou fenda
sem nenhuma abertura

- Eis a minha clausura ...
pensa

CRUELDADE

Mesmo na sombra
que toldou a sua vida
Maria nunca se turva

Frente à crueldade
- está ciente -
não se curva

Anunciações
Maria Teresa Horta
D. Quixote (2016)

segunda-feira, 7 de março de 2022

Marquesinhas

O casal não era longe, talvez dois ou três quilómetros que, na época, se faziam com pouco mais de três corridas, dois saltos e "uma perna às costas".

- Vão pela bordinha, por causa dos carros.

A recomendação era desnecessária, mas sempre feita. Ao tempo, naquela estrada, aparecia um carro quando "o rei fazia anos", a uma velocidade tão estonteante que se via "à légua". A missão era levar qualquer coisa aos avós, servia para as crianças se distraírem e "desampararem a loja" por um bocado.

A casa, térrea, tinha um grande quintal, uma eira, e ficava no topo de uma fazenda que se estendia até ao rio. Havia sempre, na pocilga, pelo menos dois porcos, por vezes acompanhados de bacorinhos nascidos recentemente e que se deleitavam nas tetas da mãe porca, deitada para facilitar a tarefa. À esquerda de quem entrava ficava a adega, com duas pipas enormes e meia dúzia de outras, mais pequenas, para além do pequeno lagar onde se pisavam as uvas e se fazia o vinho para garantir o consumo da casa e dos que lá iam trabalhar. A seguir, separado por uma "parede" de madeira e caniços, um estábulo amplo, limpo e arrumado. Era aí que "morava" a vaca leiteira, preta e branca, acompanhada, à noite, de dois bois de trabalho, de pele amarela e cornos bem grandes. A burra tinha um estábulo individual, longe dos outros animais. Pelo quintal, à vontade, passeavam galinhas, galos, coquichos, perus e patos, sem preocupação alguma com a presença humana, debicando tudo o que mexia e o que não o fazia.

Na fazenda havia muitas árvores de fruto, mas estava longe de ser um pomar. Duas figueiras, várias pereiras, cada uma de sua variedade, macieiras, ameixieiras e outras que a memória já não desenterra. E no meio destas árvores todas, semeava-se o milho, plantavam-se as couves, as favas e as ervilhas, algumas batatas. No cômoro que delimitava a propriedade, os loureiros, vários, garantiam a existência das folhas tão úteis na culinária. Existia, ainda, uma boa dúzia de cepas de uva de mesa, moscatel. Davam cachos enormes e de sabor delicioso. As vinhas que garantiam a produção vinícola eram em outras duas fazendas, afastadas e situadas a norte do casal.

A única pereira marquesinha que existia dava pouco, mas as peras eram soberbas.

- No saquinho vão quatro peras marquesinhas, uma para cada um. Este ano deu muito pouco ...

Eram horas de regressar, que o sol já se encaminhava para o mar.

- Vou comer a minha!

Estava madurinha e, com meia dúzia de dentadas, desapareceu.

- O pai nunca quer. Vou comer a dele.

A mão mergulhou no saco e, apesar da resistência, a segunda saiu e os dentes deram-lhe o tratamento devido.

 - A mãe também nunca quer ...

E marchou a terceira. Restava uma.

- Nem penses. Esta é para mim e só a vou comer quando chegarmos a casa, depois de a mostrar à mãe e de lhe contar o que fizeste.

As peras marquesinhas estão em extinção. Na praça, na época, ainda aparece uma vendedora com algumas, não muitas. Tem sempre cliente garantido.

domingo, 6 de março de 2022

Ligações

E se o trigo não vem? Não há farinha e, sem farinha, não há pão: todos ralham e ninguém tem razão.

Trocadilhos, brincadeiras, palavras para ocupar espaço, mas pode acontecer. Estaremos preparados? Habituados, há quanto tempo, a ir às grandes superfícies e ter lá tudo à mão de semear. Haja dinheiro ou cartões, de preferência estes. Tornam as despesas mais fáceis, limpam a culpa e a noção do valor gasto. Já só usam notas os "botas de elástico". 

Quantos tipos de pão? Este, cozido em forno a lenha, aquele com sementes; o outro é de alfarroba, ali tem leitão dentro e lá em cima, bolinhas de aveia. Fartura, felizmente. Escolha e experimente. Vai ver que gosta e é uma experiência nova. Há para todos os gostos e pode levar a quantidade que quiser ou aquela que o "anão" do cartão permitir. 

E se o trigo ucraniano deixa de vir? Isso não vai acontecer ...

No Alentejo há oliveiras, vinhas, sobreiros, curgetes e pouco mais ... em Trás-os-Montes, há muito que o centeio se foi embora.

Come-se broa! Assim haja milho ....

sábado, 5 de março de 2022

Ecos

O azul e o amarelo são mostrados pelo mundo inteiro, sobre uma qualquer forma de expressar solidariedade para com um povo que vive uma hora tão difícil quanto inacreditável, nos dias de hoje. Parecia já não ser possível acontecer e afinal ...

A guerra foi, desde que me conheço, o perigo supremo, o navio que surgia e nos fazia embarcar, a mesa onde se era obrigado a almoçar ainda que a comida fosse intragável e não tivéssemos qualquer interesse nela, antes a fome. As notícias não eram como são hoje, em directo e ao vivo. Tudo se passava mais num imaginário, ainda que massacrante, do que numa realidade sentida, a não ser no regresso de alguém conhecido e que contava, pouco.

- No tempo da guerra, a grande, diziam os mais velhos, que lhe tinham sentido a miséria, o racionamento, a fome sem, tal como agora, se perceber que sentido faz. 

E isto, ou aquilo, será apenas por culpa de um ser, abjecto, sim, mas apenas um? Não! Há muitos outros que se escondem mas determinam, negam mas ganham, fingem e enriquecem, lamentam mas sentam-se à mesa. Como sempre, quem menos tem, mais sofre. E foge. Deixa tudo, da casa ao ar que respira. Crianças choram e não entendem. Ficarão marcas. Sonhos desfeitos, vidas perdidas. E feridas, muitas, que nenhum antisséptico limpará.

Quanto tempo irá durar? Ficará por ali ou irá estender-se? Será a terceira ou algum comprimido determinará o seu fim? O longe ficará perto? Tantas interrogações, tantas dúvidas.

Nada é como dantes. A grande maioria dos ucranianos já está a provar deste veneno.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Som

Quando os ouvidos já não têm a mesma capacidade e a coluna esquerda do rádio do "microondas" deixa de funcionar, temos problema a resolver. Que se passará? O mundo está em transformação profunda, mas isso não é suficiente para a esquerda deixar de ter voz de um momento para o outro.

- Ora, ora, deixa-te de parlapié. É apenas uma avaria qualquer, se calhar do muito uso. A direita já foi substituída há bastante tempo ...

A voz da razão sempre atenta ...

O electricista é perto e conhecido.

- Não tenho e não vai ser fácil encontrares. De origem, nem pensar. Custa-te quase tanto como vale o carro. Talvez ali em baixo. Só é preciso que caiba aqui. O resto eu resolvo.

Havia uma caixa com um par, de uma marca conceituada, embora a furação não fosse exactamente conforme, disse-me a menina que me ajudou. 

- Se não se conseguir adaptar, venho devolver.

- Está bem, mas olhe que só damos um vale de valor igual para outra compra. Dinheiro não ...

Agradeci e voltei ao electricista "artesão", com a certeza de que o problema seria resolvido. Alicate numa mão, navalha na outra, correcções feitas e, claro, já tudo toca, minha gente. Está como novo o rádio do "microondas".

Meio a sério, meio a brincar, o electricista comentou:

- Vai durar, à vontade, uns dez anos. O carro já não dura tanto.

Coitado do "microondas". A viagem mais longa que faz é para ir ver o mar à Foz do Arelho. E o electricista, má língua, acha que ele não se vai aguentar com as novas ... colunas.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Incerteza

Há quase dois anos (o blogue começou há quase 16) que, diariamente, deixo por aqui um testemunho, uma lembrança, um sonho, uma utopia, um acontecimento, um propósito, uma estória.

Muitos posts foram dedicadas à epidemia que nos assaltou e que, finalmente, parece estar a tender para zero. E quando se projectava uma dificuldade grande em arranjar temas, para quem já não trabalha, pouco sai e tem um convívio cada vez mais reduzido (talvez volte um dia destes), eis que a Rússia resolveu agitar as águas e dar mote a todas as conversas, notícias e comentários, abanando toda a gente e clarificando que, apesar de o vírus ter matado muita gente, não "limpou o sebo" ao egoísmo, à mania do poder, ao quero, posso e mando que (ainda) grassa por esse mundo fora e com bastantes apaniguados.

Razões houvesse, e não há, pelo menos a olho nu, ainda assim, entrar na casa de um vizinho para lhe destruir a habitação e obrigá-lo a dobrar-se à sua opinião e regras, seria sempre um atentado à liberdade, à convivência, ao sentido da vida. Inominável!

Ainda é cedo para perceber como irá acabar. Já terminou para muitos. Para os que ficam, marcará, de forma indelével, o seu futuro.

Que mais irá acontecer que ainda hei-de ver?

quarta-feira, 2 de março de 2022

Mãe

Passam hoje dezoito anos sobre o início da viagem sem retorno, que a minha mãe efectuou para o lugar onde está, seja ele palpável ou não, o que, no caso, é perfeitamente irrelevante.

A chama permanece viva, sem quaisquer sinais dos efeitos do tempo.

terça-feira, 1 de março de 2022

Palavras bonitas

RETRATO DE NATÁLIA

Hierática cromática socrática
passas branca de neve pela sala
nebulosa da pele via láctea
do único percurso que nos falta.

No teu andar há ventres há tecidos
de leve lã circuitos do brocado
duma seda tecida na manhã
dos raios dos teus olhos deslumbrados.

Nos teus quadris há cisnes há pescoços
de virgens degoladas há indícios
do alabastro quente dos teus ossos
iluminando claros precipícios.

É isso. Uma vestal iluminada
uma deusa rangendo uma secreta
porta barroca aberta para o nada
que é o docel da cama do poeta.

Ali deitas crianças animais
gemidos e maçãs vagidos e atletas
pois que amas as coisas naturais
com tua carne impúbere e erecta.

Porém tu acalentas tu alentas
nossa senhora lenta mãe do escândalo
ave de carne lírio de placenta
com aroma de nardos e de sândalo.

Desinfectante e amante eis que transformas
em teus olhos de cânfora as orgias
e o teu corpo ânfora é a forma
em que a lira da noite vasa o dia.

fotos-grafias
J.C. Ary dos Santos / Nuno Calvet
Quadrante - Colecção Poesia
(1970 - edição apreendida pela PIDE)