domingo, 31 de maio de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

O último evento público em que Luís Sepúlveda participou foi o Festival Literário Correntes d'Escritas de 2020, realizado em Fevereiro deste ano.
No regresso a Espanha, o escritor foi hospitalizado e viria a morrer em 16 de Abril passado, vítima do malfadado Covid-19.
Depositei hoje no saco dos lidos, porque me foi emprestado pelo meu amigo ADS, um pequeno livro de crónicas, editado em Portugal em 2010, onde uma delas é dedicada ao Correntes.

O verdadeiro autor de Tarzan
Há algo que toda a vida agradecerei às Correntes D'Escritas, um esplêndido festival literário que se realiza todos os meses de Fevereiro na Póvoa do Varzim: ter-me dado a conhecer estupendas e estupendos escritores de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Antes de ter ido à Póvoa pela primeira vez, perdera essa grande literatura, os livros de Germano Almeida, Manuel Rui, Ondjaki e Nelson Saúte.
Deste último posso dizer que, em certa ocasião, visitámos juntos uma escola da Póvoa de Varzim e não sabíamos de que falar aos alunos. Para encontrar um tema comecei por dizer que estava muito contente porque a camisa que usava naquele momento tinha sido um presente de Nelson e viera directamente de Angola. Era uma linda camisa que ressumava africanidade, e isto deu uma oportunidade a Nelson, que começou a contar uma aventura na savana africana com ataques de ferozes pigmeus, missionários enlouquecidos por febres apocalípticas, lutas com leões famintos e indignados com a Metro Goldwyn Mayer, combates com elefantes de moral duvidosa, pelejas a murro com gorilas de hábitos sexuais confusos, até que chegou ao sítio onde vendiam as camisas, comprou uma, e regressou no meio de aventuras ainda piores.
Ouvi-o tão hipnotizado e perplexo como os alunos daquela escola, e concluí que o autor de Tarzan não se chama Edgar Rice Burroughs, mas Nelson Saúte, esse grande escritor que me compra camisas em Angola.

Numa outra crónica do mesmo livro - Quem é você - Sepúlveda, que se considerava também jornalista, discorre sobre esta profissão tão antiga e tão necessária mas que, nos últimos anos, tem perdido muita da sua objectividade e clareza, mais parecendo um "guisado" sem qualquer condimento, desenxabido e intragável.

(...) coube-me acompanhar Ryszard Kapuscinski, o Mestre dos mestres, quando recebeu o prémio Príncipe das Astúrias de Comunicação. Enquanto passeávamos por Oviedo, Kapuscinski confessou-me o pânico que sentia sempre que era entrevistado.(...) 
E aí estávamos, numa esplanada, quando se aproximou de nós uma rapariga muito jovem, bastante bonita, e se apresentou como jornalista de um canal de televisão. Pediu uma breve entrevista, dois minutos, disse, em suma, é para a televisão, acrescentou, e em seguida sacou de um pequeno espelho e compôs a maquilhagem, enquanto um colega dela assestava a câmara e outro ainda preparava o microfone para o entrevistado.
- Quem é o importante? - consultou o técnico.
A pergunta interrompeu a tarefa embelezadora da jornalista. Era, sem dúvida, uma boa pergunta,(...)
- Quem é o premiado? - perguntou, e, então, Ryszard Kapuscinski apontou para mim com um dedo acusador.
Deixei que me pusessem o microfone, o homem da câmara mostrou os dedos, quatro, três, dois, um, e a jornalista começou a entrevista, breve, em suma, é para a televisão.
- Quem é você e porque o premiaram?
Uma pergunta dupla merece uma resposta meditada, de modo que me apresentei como um escritor lituano, autor de um romance cujo argumento resumi: um homem sofre muitas traições, vai parar à cadeia, passa vários anos nas piores condições, foge, e como não esquece nem perdoa a quem o ofendeu, consagra a vida à vingança.
A jovem jornalista despediu-se, nem por um só momento se preocupou com o olhar atónito de Kapuscinski e o mais certo é que essa entrevista tenha sido vista por muita gente que tem o direito de ser responsavelmente informada, mas esse direito está em perigo, pois a precariedade em que caiu o jornalismo faz com que ninguém seja responsável pelo que se escreve, diz ou emite, salvo raras excepções, e com que sejam poucos os jornais feitos por jornalistas que, com absoluto rigor, assistem ao funeral de uma profissão tão bela quanto necessária.(...)

Histórias daqui e dali
Luís Sepúlveda
Porto Editora (2010)

sábado, 30 de maio de 2020

Quotidiano Corona

Muitas vezes me vêm à cabeça os versos de Sophia, gravados pelo então Padre Fanhais, num LP editado em 1970 e que está algures por aí, juntamente com outras preciosidades desse tempo - "Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar (...) e hoje foi um dia desses.
Foi determinado o encerramento dos dois cafés existentes no Bairro da Jamaica, no Seixal, para tentar diminuir os riscos de contaminação resultantes dos ajuntamentos e da falta do distanciamento social.
Pelo que se vê nas televisões, um dos cafés não cumpriu e foi enviado um forte contingente policial para garantir que a ordem das autoridades de saúde era acatada.
Até aqui tudo normal mas (há sempre um mas) a ironia está no apelidar de "café" àquele tugúrio miserável que surgiu nas imagens o qual, tudo o indica, existirá assim há quarenta anos ou perto disso. Por certo que muitas pessoas estarão a corar de vergonha por ainda se manter uma situação daquelas, bem perto de grandes urbanizações e de uma zona ribeirinha do Tejo bem arranjada e muito bonita. Alguns dos primeiros a habitarem por ali já cá não estarão para contar as promessas, e partiram antes de o Covid chegar.
Pergunta indiscreta e estúpida: os cafés têm licença?



sexta-feira, 29 de maio de 2020

Festa

Tudo tinha sido tratado e organizado até ao mais pequeno pormenor.
Primeiro seriam os aperitivos, na adega, com os convidados a circularem por entre os barris, subindo até aos lagares e visitando a zona do engarrafamento. O almoço seria servido no jardim, com as mesas, bem espaçadas, e com oito lugares cada. Os elementos de cada mesa tinham sido cuidadosamente seleccionados, separando os casais oficiais e juntando os "arranjinhos" que se sabia existirem.
Os convidados começaram a chegar por volta das 11 horas.
Na adega encontravam, enquanto a visitavam, pequenos bancos cobertos de linho branco, onde estavam pratos da Vista Alegre com pevides e pinhões, previamente descascados, tremoços e passas de uva.
Três empregados garantiam o abastecimento do "champagne" bruto, fresquinho, que iam buscar à barrica cheia de gelo em cubos, estrategicamente colocada entre dois barris dos maiores.
Os aperitivos faziam sucesso, por fugirem ao trivial croquete, rissol ou pastelinho de bacalhau. Ouviam-se comentários sobre a excelência do local e da sua aptidão para o evento. Os que já conheciam o jardim, diziam que a surpresa seria ainda maior quando chegasse a hora do almoço.
Estava representada a mais alta burguesia existente no país nos finais da década de sessenta do século passado, que se fez transportar em Rolls Royce, Jaguar, Aston Martin, Pontiac e outros da mesma craveira.
Por certo que os convidados ainda não tinham tido tempo para se cumprimentarem entre si e eis que um pedido de ajuda surge. Era necessário socorrer uma senhora que se estava a sentir mal e levá-la até à quinta, para descansar um pouco. Tinha sido, por certo, a mistura dos tremoços, pevides e pinhões, por o estômago não estar habituado a essas iguarias. 
Pálida, trôpega, foi amparada até ao carro e nele entrou com muita dificuldade. A viagem foi breve, a saída do automóvel muito difícil e o percurso até um quarto disponível ainda mais, mesmo amparada por quatro braços. 
Ficou vago um lugar na mesa do almoço que lhe estava destinada e nem sequer conheceu o jardim. Ao final do dia regressou a Lisboa no mesmo lugar que tinha ocupado na viagem da adega, mas desta vez no seu carro, conduzida pelo motorista e acompanhada pelo marido.
Coisas de tremoços.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Mar - O bom e o péssimo

A época de praia está à porta e esta, de acordo com as informações disponíveis, abrirá no próximo dia 6 de Junho, com o número de pessoas fixado de acordo com o tamanho da praia (?). No caso da Foz do Arelho, a Agência Portuguesa do Ambiente prevê que possam estar 6.000 pessoas na praia da lagoa e 3.800 na do mar. Não imagino como vai ser feita a contagem mas, como sou cliente só da manhã, não devo ter dificuldade em conseguir ser um dos 3.800 ...
Ainda sem as portas abertas e sem qualquer vigilância, a praia da Foz - Mar tem dado uns dias espectaculares, com sol, sem vento e um mar apetecível, com as devidas cautelas, não vá o diabo tecê-las e surgir algum "agueiro" que crie complicações.
Apesar disso e quando menos se esperava, eis uma surpresa que a praia da lagoa hoje "ofereceu" ao meu neto Vasco: uma "queimadela" de uma caravela portuguesa, das muitas que surgiram por ali nos últimos dias, sem qualquer autorização. E fez um enorme estrago. Obrigou a uma ida ao hospital e a um tratamento que se irá prolongar por vários dias. E a perna tem um "estrago" considerável.
Não há dúvida que o mar é sempre uma caixinha de surpresas!

 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Futebol Clube do Porto em Viena - 1987

Há 33 anos, sete "marmelos" assistiram à vitória do Futebol Clube do Porto na então Taça dos Clubes Campeões Europeus, num jogo memorável realizado em Viena de Áustria, num estádio que já não existe. A final foi ganha por 2-1 frente ao Bayern de Munique, com um golo de Madjer (de calcanhar) e outro de Juary, com Artur Jorge como treinador da equipa. Jorge Nuno Pinto da Costa já era presidente do clube.
Uma viagem inesquecível, com mais de seis mil quilómetros percorridos, durante uma semana, numa Toyota Hiace acabadinha de adquirir por um dos viajantes.
Hoje, ao ouvir as notícias sobre a efeméride, lembrei-me que, há 33 anos eu era um cidadão acabado de cumprir a idade necessária para ser candidato à Presidência da República, tinha dois filhos com 9 e 5 anos e hoje, dos quatro netos, apenas um ainda não tem cinco anos ... mas está quase lá.
A viagem foi fantástica, com o pretexto do futebol mas, dos sete, apenas um (que já cá não está) era adepto do FCP. 
Foi a primeira das quatro viagens que aquela equipa, com pequenas alterações, haveria de realizar por essa Europa fora, numa altura em que as fronteiras existiam e eram exigentes (vêm visitar a família, lembro-me de nos questionarem à entrada de França), não havia GPS, o muro de Berlim ainda existia e o Euro estava bem longe, havendo necessidade de nos abastecermos da moeda de cada um dos países que visitávamos. Recordo que, na antiga Jugoslávia, nos disseram ser o Dinar bem aceite em todos os países à sua volta e ainda hoje existem algumas dessas moedas que sobraram e não foi possível trocar.
Os velhos lembram-se de cada coisa! Recordar uma viagenzita a Viena, como se fosse difícil lá chegar. Chegam quaisquer três horitas de avião ... quando começarem a voar.


terça-feira, 26 de maio de 2020

A sala de aula (na primária)

Ainda não tínhamos chegado à era das turmas mistas nem tão pouco à das aulas virtuais. 
O edifício era igual a tantos outros que o tempo reaproveitou e hoje têm as mais variadas utilizações, de restaurantes a bibliotecas, centros de dia ou de interpretação, postos de turismo ou repartições públicas.
Naquela sala, só rapazes, alguns descalços e a grande maioria mal calçada. As vestimentas eram "made in home", calças de cotim, ganga ou sarja, com peitilho, camisolas de lã, feitas por quem sabia "dedilhar" as agulhas. E quase todas as mães o sabiam. A lã era comprada em meadas, que era preciso dobar com o auxílio de dois braços, esticados, para evitar que se enrolasse quando estivesse a ser utilizada. A mãe fazia o novelo e eu esticava os braços, dando o jeito aos pulsos para permitir que a lã seguisse o seu caminho. Depois, era um delírio ver aquele fio, comandado por duas agulhas frenéticas, dar lugar a cada uma das partes que, juntas, haveriam de fabricar a camisola nova. A parte da frente, o peito, era colocada para a verificação do tamanho, antes de ter lugar o remate final.
- Põe-te direito e está quieto, para ver quantas carreiras faltam.
Havia os decotes em bico, redondos ou de barco, riscas de cores variadas, entrançados ao alto e paralelos à cintura. As malhas também surgiam diferentes, consoante a "operária" era mais ou menos prendada. Que me lembre, nunca tive duas camisolas iguais, e recordo bem que, ao contrário das da grande maioria, as minhas sempre tiveram punhos e golas em malhas diferentes e havia pelo menos um pormenorzinho que distinguia a nova das anteriores. 
Bolas, da sala de aula abalei para a indumentária e não era nada disso que queria. Malhas que a escrita tece ...
Voltemos, então, ao princípio. A madeira imperava: carteiras individuais, com tinteiro branco, de porcelana, incrustado num buraco na parte de cima da carteira, ao lado de uma reentrância para colocar o lápis e a caneta, esta com o cuidado recomendado de limpar bem o aparo; secretária da professora, enorme, colocada num plano mais alto para que a panorâmica fosse integral; caixote do lixo, de tamanho considerável para a função que lhe estava destinada. Apenas com madeira a fazer o caixilho, o quadro preto, de ardósia, enorme, quase cobria a parede e era encimado por Jesus crucificado. Não lhe bastava o sacrifício de que nem Pilatos o salvou e ainda lhe pespegaram com as fotos dos dois venerandos, Botas e Corta-Fitas. Há gente que nasceu para sofrer sempre! 
Para completar a mobília, um armário do lado direito, com alguns, poucos, livros, e onde a professora guardava a bata, branca, antes de sair, e dois utensílios cujo local habitual era o tampo da secretária: uma régua, de madeira castanha, utilizada para punir os erros do ditado ou o resultado das contas e a cana-da-índia, que a professora pegava logo que vestia a bata e ainda antes do livro. Servia de muleta para andar, para indicar o que estava escrito no quadro, para apontar a cortina que o menino lá de trás devia puxar para tapar o sol, para bater no soalho a acentuar a exasperação e, de vez em quando, para acertar na moleirinha de algum distraído ou falador. 
A professora não comprava nenhuma nem cuidava de a ir cortar a algum sítio recôndito onde as houvesse. Todos os anos, algum pai, prestimoso, lhe oferecia uma nova, não fosse a antiga ter sido contagiada pelo piolhinho.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Quotidiano

Segunda é dia de feira ... mas não foi.
Fui lá acima, enganado, iludido pelas informações que me tinham chegado de que o mercado semanal iria reabrir hoje. 
Não reabriu e, afinal, as notícias que me tinham chegado eram, como tantas outras que por aí circulam, falsas.
Dos feirantes nem rasto e o que eu precisava de adquirir fica para outras núpcias. Talvez para a semana, se as redes sociais não se enganarem de novo.
Nem tudo foi mau! Fui de carro e ainda bem, porque a ladeira é a pique e a idade não perdoa.
Mau estará para toda aquela gente que há mais de dois meses não vende nada ali nem nos outros locais onde exerce a sua actividade. 

domingo, 24 de maio de 2020

Maria Velho da Costa

Faleceu ontem mais uma das "Três Marias" - Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. As três ficarão na história da literatura portuguesa  e na da luta pela libertação das mulheres.
Resta Maria Teresa Horta e toda a obra de alta qualidade que as três produziram.

(...) Diz-me o advogado que evite reflexões políticas ou comentários à minha circunstância.
Mas quando começa a minha circunstância? 
Era assim que deviam escrever no antigamente, sob a Inquisição, as polícias políticas, sob espia, um censor empoleirado no ombro, como um corvo. Mas talvez seja sempre assim, este acto contra o tédio e a insignificância, um acto a três: o autor, a surpreendente voz do escrito e o censor que é aquele que vai ler. Vertiginoso.
Sara dizia que era a minha profunda segurança que me permitia clamar no deserto, correr riscos. Até a segurança do meu nome, que suscita a deferência.
Faz vento. Oxalá estivesse na Torre do Bugio à escuta do clemente rimance do mar, que tudo sara.
Sara. Não mais musa. E muito menos linda. Haverá gusanos desafiando a cal? Queria ser enterrada debaixo de um cedro, a variedade Cedrus altlantica, que ascende em cone e tem flores machas, dizia. Aleixo nem sequer tentou, porque é muito desprendido com o corpo dos mortos; tê-la-ia incinerado, se fosse prática que a igreja aprovasse. (...)

Maria Velho da Costa
Missa in Albis
Dom Quixote (1988)

sábado, 23 de maio de 2020

Quotidiano

Logo pela manhã o jardim ofereceu-me este par de rosas, nascidas do mesmo pé ... e tão diferentes.


Depois, a Foz revelou-me que o sinal é verde e que o mar quer que o visite sempre.


Para terminar em beleza, o meu neto Duarte, que fará 8 anos no próximo mês, presenteou-me com esta maravilha de trabalho, feito no âmbito da sua actividade escolar:

Num dia de muito calor,
os irmãos foram passear
a uma floresta cheia de cor
e a um rio se refrescar.

A primavera começou:
- Eu sou a melhor estação do ano, 
porque tenho mais cor e amor,
os meninos podem flores apanhar
e às suas mães levar.

O verão brincou:
- Pois é, pois é,
mas é na praia que se molha o pé,
e perlim, pim, pim
vai mais uma bola de berlim.

O outono rabujou:
- Eu é que sou o melhor,
basta olhar ao meu redor,
nas folhas secas podem correr
e as castanhas assadas vou comer.

O inverno terminou:
- Ai, sim?
Para os bonecos de neve fazer,
neve tem de haver,
à lareira um chocolate quente
e assim ninguém bate o dente.

Vamos agora mais além,
gritaram os irmãos em bom som,
ninguém é melhor que ninguém
porque cada um tem o seu dom.

Já ganhei o dia!!!

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Quotidiano

Custa a acreditar que o país de Caetano, Chico, Bethânia, Elis, Machado de Assis, Rubem Fonseca, Jorge Amado e tantos outros, que apresenta um duo tão carinhoso como o que aqui fica hoje, tenha um coiso na presidência, que só diz asneiras por uma boca cheia de favas, que enoja e arrepia, ao mesmo tempo.
E se o vírus chega cá? Aquilo transmite-se muito a quem tem memória curta ou não a tem, de todo.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Matraquilhos

Era uma loja de ferragens no topo da Praça da Fruta, onde se vendia de tudo, da complicada ferramenta (para a época) ao simples parafuso, com e sem porca, de cabeça chata ou de tremoço.
O Sr. Galinha era um homem já bem entrado (hoje seria um idoso) e muito gago. A sua gaguez pode um dia destes também ter por aqui lugar, mas hoje não é disso que se trata.
A tasca do António Henriques, junto à Praça de Touros, tinha vários jogos de matraquilhos , num espaço situado ao fundo e aonde se chegava depois de atravessar a taberna e um pequeno quintal. Por isso, os três ou quatro "estádios" raramente tinham controlo arbitral do dono ou da dona, que tinha o nariz bem empinadinho. Marido e mulher ocupavam-se a servir os copos "de três" e a aviar as sandes de queijo ou de presunto, os pastelinhos de bacalhau e uns croquetes de carne, cujo cheiro se sentia à distância. Havia também carapaus fritos e secos, berbigões da Foz e ovos cozidos. Como facilmente se compreende, estes comes e bebes passavam-nos completamente ao lado.
O Sr. Galinha vendia 10 anilhas por 25 tostões e, coincidência, as anilhas eram exactamente do tamanho das moedas de 10 tostões, necessárias para abrir cada jogo de matraquilhos e obter as bolas que o permitiam concretizar.
Não será preciso grande esforço para se perceber o que acontecia: com 25 tostões obtinham-se "moedas" para efectuar 10 encontros e, por isso, antes de se entrar no António Henriques era obrigatório ir ao Galinha adquirir os "ingressos".
Para que tudo corresse pelo melhor e não houvesse suspeitas, colocava-se uma moeda, verdadeira, bem visível num dos topos da mesa, para que o "fiscal", se descesse ao campo, visse e não desconfiasse. A dona, tinha a certeza de ser enganada, dadas as surpresas que ia encontrando no "mealheiro",  e aparecia por lá mal se conseguia libertar dos avios da tasca. Consequência imediata: a moeda verdadeira era utilizada para o último jogo do dia, ficando as anilhas sobrantes, se existissem, para o dia seguinte.
Nunca fomos apanhados em flagrante delito mas que os donos muito desconfiaram de nós, não tenho qualquer dúvida.


P.S. - No dia de hoje, Quinta-Feira da Espiga, não se jogavam matraquilhos.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Mirones no Parque


                                     

Ninguém na cidade ignora onde é, toda a gente o conhece e não tem qualquer dificuldade em indicar o caminho que a ele leva. Pode haver, e há, outros parques na cidade: das merendas, de jogos, jardins, a Mata Rainha D. Leonor, mas o Parque nem de nome precisa, embora o tenha (Parque D. Carlos I).

O Parque é um paraíso. 
A sua beleza é de tal modo ofuscante que muitos de nós nem reparam nisso. É tão natural olhar o lago, ver os pavilhões que em breve serão hotel, passear pelas áleas e visitar o Museu de José Malhoa, espreitar o ténis, tropeçar com os pombos e (agora) com os pavões, sentir os pássaros a chilrear nas árvores enormes, dar pão aos peixes, ser afectado pelos poléns, usufruir de tudo que achamos tão natural e tão nosso.
Tempos houve em que uma ida ao parque significava brincar com os amigos, andar de bicicleta alugada, ir à ilha, fazer corridas até ao busto do Bordalo, jogar ao ring com as colegas, roubar um beijo fugaz e conseguir, de vez em quando, uma companhia para sentar num daqueles bancos de madeira, vermelhos, bem enquadrados entre dois plátanos "gordos", que garantiam a privacidade e a detecção de qualquer intruso inoportuno. O entusiasmo e a pressa faziam com que se descurasse a parte de trás, protegida pela sebe de buxo e que, por isso, parecia não permitir que alguém importunasse.
Não era verdade. Por vezes, apareciam por ali uns mirones que se regalavam a espreitar o que os jovens sentados e distraídos estavam a fazer. Quando eram detectados, usavam a argumentação bacoca sobre a moral e os bons costumes, a falta de educação, as parvoíces que se imaginam para quem só podia ser ... parvo.
Nunca os esqueci. A maior parte já por cá não está mas, de vez em quando, ainda me cruzo com um, já trôpego, mas a quem não consigo olhar sem sentir asco por coisas passadas há mais de meio século. 

terça-feira, 19 de maio de 2020

Mundo

Com o confinamento a chegar ao fim, espera-se, talvez valha a pena repararmos no que se passa à nossa volta, sem lamechas e apenas com a certeza de que, aqui ou na China, no sertão ou no deserto, nos trópicos ou no gelo, não passamos de uns apêndices de um mundo que pertence a todos e onde todos temos lugar. 
É bom lembrar, sendo embora lugar comum, que há por aí muita gente que se esquece disto e do respeito que a todos é devido.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Mercearia e Fanqueiro

O balcão ia de uma ponta à outra da primeira sala, aquela onde estava a faca do bacalhau, a balança Avery, a medidora do azeite, os frascos com os rebuçados, quatro, uns em cima dos outros, com as bocas viradas para o interior, não fosse alguém distrair-se e, inadvertidamente, sacar um ou dois. Todo ele era de madeira e o descrito ficava à esquerda, até à balança. Depois, a zona de atendimento e os papéis, pardo e vegetal, os cartuchos, o rolo da guita e o espaço para cortar as roupas, com uma tesoura enorme e um metro de madeira, quadrado, com as marcações "centimetrais" bem escavadas na madeira e que estava sempre à mão, para medir ou assustar.
O merceeiro entrava para o balcão através de uma pequena porta, com um tampo que, mal acontecia a passagem, era de imediato fechado. Tinha sempre o mesmo passo, o mesmo tom de voz, o mesmo sorriso. Os anos já eram bastantes, o coração dava-lhe sustos amiúde e o volume da barriguita era escondido sob o casaco de cotim, que mantinha sempre fechado.
As tulhas do feijão, encarnado ou branco apatalado e, de vez em quando, o frade, mais raro e mais caro, estavam nas costas do homem e tinham um corredor, de lata, que servia para encher o cartucho com 250, 500 gramas ou, mais raramente, um quilo daqueles vegetais. O cartucho, do tamanho adequado ao peso, era dobrado em cima e a guita que o atava ficava presa na dobra do papel e permitia o transporte sem risco de cair.
Por debaixo das prateleiras que continham as mais variadas coisas - colheres de pau e das normais, garfos, facas, copos, tigelas, pratos - estavam a manteiga, a banha de porco, o café, o colorau, a pimenta, o sal e muitos outros produtos que, na "fotografia" já não se conseguem vislumbrar direito.

- Cem gramas de café, meia quarta de banha, dois decilitros de azeite, e a minha mãe manda dizer que é "pra assentar".
- Está bem, desta vez. Diz-lhe que o livro já não tem folha ...

O livro era mais alto do que largo, um rectângulo onde havia uma folha para cada um dos "caloteiros". As dificuldades eram muitas e nem sempre a jorna chegava no final da semana. A mercearia esperava...
Do lado da porta de entrada era a montra do fanqueiro: ganga, cotim, chita, algodão, lenços de assoar e de cabeça, bonés, barretes, linhas, botões, meias, soquetes, ganchos e um infindável  sortido de bugigangas impossível de descrever e descortinar, mas que o merceeiro sabia onde estavam quase sem olhar.
Havia ainda uma outra secção, provida com uma balança decimal, onde estavam os produtos mais pesados e os que não podiam "conviver" directamente com os da alimentação. A medidora do petróleo, enfiada no bidon e o álcool desnaturado faziam companhia ao foskamónio, que começava a dar os primeiros passos na agricultura, ao adubo tradicional e ao enxofre, este também numa tulha e com um corredor próprio. Pairava também por aí a batata de semente, Arran-Banner, Arran-Consul ou Impéria, ensacada em sacos de serapilheira, com 50 Kg cada, nada que assustasse qualquer homem da época, bem habituado a fazer força sem ir ao ginásio.
Era uma imensidão de coisas e uma infinidade de conversas sobre tudo e sobre nada, das quais sobressaíam as anedotas do viajante do Café Sertão, contadas nas visitas semanais e reproduzidas em todas as tertúlias da noite até que, na semana seguinte, surgissem novas.
 

sábado, 16 de maio de 2020

Ilusão

E quando tudo indicava que as notícias continuariam a ser sobre o coronavírus, o planalto e o confinamento, a taxa de letalidade e a abertura das praias, eis que a visita à fábrica dos automóveis altera tudo, cai não cai, fica não fica, vai não vai, tem razão não tem, toda a gente sabia, ninguém sabia, aprovaram e não leram, votaram sim e queriam votar não, estava no papel, qual papel, o papel ... mas ninguém leu!
E Centeno foi treinador de futebol, de bestial a besta num minuto: os treinadores de bancada opinaram, o pequeno mundo agitou-se, as mesas redondas tentaram a quadratura, os prognósticos sucederam-se, era tudo evidente e já se esperava, claro como a água, só não via quem não queria ou era cego, o vírus eclipsou-se num instante.
A noite é boa conselheira, mesmo antes de dormir.
Foi um equívoco, um pequeno lapso, falta de informação atempada, tinha de ser, o prazo acabava no dia seguinte, toda a gente sabia, estava escrito no Orçamento, aprovado e promulgado, uma falha de informação, a auditoria é outra coisa, não invalida o compromisso, está tudo resolvido!
E eu sou parvo, ou quê?, como dizia Zé Mário Branco.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Dia da Cidade

Dia da Cidade, sem concerto na Avenida da Independência, sem fogo de artifício no edifício da Câmara, sem cerimónias de condecoração de personalidades, sem abertura, simbólica, do Hospital Termal e sem inaugurações oficiais. 
E ainda por cima com chuva!
A Rainha teve direito a umas florzinhas e houve música online, mas não é a mesma coisa.
Talvez para o ano, se o Corona não se adaptar à humidade caldense e se for embora, deixando-nos em paz.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

Vou escrevinhando umas historietas que deixam por aqui relatos de situações acontecidas, inventam factos ou deturpam-nos, exagerando ou minimizando, ou ainda porque sim, porque me apetece ou me dá gozo.

Escrever é outra coisa, completamente diferente e deliciosa, só acessível a alguns, privilegiados, que dominam as palavras e as situações, e as tornam tão belas que dá vontade de não parar de ler.

Aqui fica um exemplo:

(...) Molhou a pena e escreveu na capa: Tratado da Semeação das Hortaliças.

Curioso, pensou olhando as letras: Tratado da Semeação das Hortaliças. Mas logo, mordiscando distraidamente a ponta da caneta, riscou Hortaliças e escreveu Legumes. E depois de algum tempo riscou Legumes e reescreveu: Hortaliças. E, pensando melhor, riscou Semeação e escreveu: Plantação. Para também riscar Plantação e voltar a escrever: Semeação.

O título, mesmo só provisório, não o satisfazia, reflectiu segurando a folha em posição vertical para poder olhar de mais longe. Hesitava antes de mais entre Semeação e Plantação, porque nenhum dos termos lhe parecia suficientemente abrangente. Grão e feijão, por exemplo, semeavam-se, batata e couve plantavam-se. Duvidava, assim, se seria legítimo usar para todos a palavra Semeação, e hesitava também entre Hortaliças e Legumes. Não eram evidentemente sinónimos, mas, para além do facto de o título ter de se adaptar perfeitamente ao assunto, a sua escolha dependia também de razões fónicas. Deste modo, preferia por um lado hortaliças, porque o i lhe parecia mais sonoro do que o u, mas por outro lado legumes era um termo que lhe parecia mais culto e adequado, hortaliças soava-lhe coloquial e quotidiano, qualquer camponesa sabia o que eram hortaliças porque todos os dias as deitava na panela, mas não tinha a menor noção do que seriam legumes. A escolha era assim entre um termo sonoro e eufónico, mas de sentido comezinho, e um termo mais elevado mas triste, legumes parecia-lhe uma palavra em tom menor, vizinha da negrura, e acabando em escuridão completa.

Além disso, embora Semeação fosse um termo em uso, registado como tal em todos os dicionários (como acabara de se dar ao trabalho de verificar), parecia-lhe ter um belo sabor refinado e arcaico, o que lhe agradava plenamente, pois uma palavra com sabor adequava-se bem a um título onde logo a seguir se mencionava algo comestível.(...)

(...) Melhor seria, nesse caso: Manual, até porque sugeria o manusear, o uso das mãos, o que se ajustava na perfeição a uma obra que versava o trabalho manual, campestre. Mas, por outro lado, Manual lembrava um livro escolar, e tinha uma conotação dogmática e algo simplista que profundamente lhe desagradava.

Poderia ainda adoptar Registo, mas logo rejeitou o termo por demasiado sucinto. Registo era um assentamento, a notificação de um facto, como um nascimento ou um óbito. O que o levava de novo ao ponto de partida, e o fazia reconsiderar Tratado. Que talvez se pudesse entender no sentido literal e modesto de coisa tratada - era um aspecto que teria de investigar com mais cuidado.

Mas no fundo - verificou de repente com um arrepio de angústia - tudo isso não eram outra vez as armadilhas das palavras? (...)

A casa da cabeça de cavalo

quarta-feira, 13 de maio de 2020

O velho e a nova

Quando procurava um livro na estante do meu escritório, daqueles que não estão catalogados em ficheiro mas que eu sei que se encontram algures, "tropecei" com "Eu faço parte desta história", livro editado pela Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro, por ocasião dos 50 anos da inauguração do edifício, que aconteceu em Outubro de 1964 e na qual participei. Lembrei-me que tinha escrito um texto para esse livro e fui relê-lo. Resolvi respigá-lo para aqui porque, não sei bem porquê, me lembrei hoje dos meus tempos de escola.

O VELHO E A NOVA

Um velho edifício, tábuas dos degraus da escada já muito gastas, janelas a rangerem quando abriam, ou a deixarem gretas onde cabia pelo menos um lápis, quando fechavam.
No barracão que servia de ginásio, chovia tal como acontecia na sala 4 do primeiro andar, onde duas turmas tinham aulas de Desenho, num espaço dividido por (vários) biombos. Das janelas do meu lado - o esquerdo - tinha-se uma panorâmica excelente do parque de jogos e, não raro, o afiar do lápis permitia apreciar os "grandes" a jogarem voleibol e andebol, únicos desportos que as aulas de Ginástica contemplavam. Os campos eram marcados com um sarrafo de madeira, de cerca de meio metro, que abria um sulco no saibro. Em dia de jogos importantes - Comércio versus Indústria, por exemplo - o sulco era avivado com cal branca, permitindo que as marcações fossem visíveis para atletas e espectadores.
De Outubro de 1962 a Julho de 1964, a velha Escola do Chafariz das Cinco Bicas marcou o miúdo pouco vivido que ali entrou aos 10 anos, após três anos de Primária e um exame de admissão, que aferiu e atestou a "qualidade" e a "competência" para prosseguir os estudos.

O ano lectivo de 1964/1965 trouxe as alterações que se ansiavam, da mudança de voz ao início do Curso que daria a "ferramenta" para a vida, dos primeiros amores à admissão nas conversas e nos jogos com os "maiores" e, sublime, uma Escola nova!
Os exíguos campos de saibro deram lugar a amplos recintos alcatroados, com equipamentos fixos e marcações a tinta. O ginásio, esse, era um luxo: cordas, muitas, que saíam das paredes laterais ("cobertas" de espaldares) e permitiam subir "até lá acima"; plintos, trampolins, rede de voleibol, "chão" de madeira envernizada e, luxo dos luxos, chuveiros individuais para o banho retemperador e higiénico. 
"Dez minutos para despir, tomar banho e vestir", gritava o Professor, "coscuvilhando" cada espaço para verificar se o sabão, azul e branco ou clarim, era devidamente aplicado.
Laboratórios, Salas com moderno mobiliário, Bar, Papelaria, uma Cantina espaçosa, com mesas para quatro alunos, onde, por vezes, se sentavam alguns professores e ... espaço, espaço, espaço, muito espaço.
O corredor enorme, coberto, junto às casas de banho (também elas extraordinariamente espaçosas quando comparadas com o que tínhamos antes), e que ligava a "casa da mocidade" à porta da entrada masculina, tinha (tem) uns bancos de pedra que serviam de balizas para grandes futeboladas, muitas vezes com uma pedrinha redonda a servir de bola!
Ainda se jogará assim?

terça-feira, 12 de maio de 2020

Fanfarrão

Chegava sempre a grande velocidade e arrumava o carro com uma espécie de pião, fazendo chiar os pneus. A porta do automóvel era fechada com estrondo, para que toda a gente olhasse a "bomba". Não havia meia dúzia na cidade e, daquela cor, era único.
Falava pelos cotovelos e antes de obter resposta já engatilhava outra pergunta.
- O patrão ainda não desceu?
- E a senhora também não?
- Quem me tira o café?
- E os bolos já chegaram?
- Vou eu tirar, que ainda sai melhor. A Máquina conhece-me.
Entretanto, já estava atrás do balcão, de volta da máquina, italiana, para lhe sacar o café da manhã. O bolo de arroz no prato, de papel tirado e pronto a ser comido.
Sentava-se à mesa, deliciado, a aguardar a chegada de um dos patrões, para pôr a conversa em dia. Se tardavam, ei-lo a fazer o percurso inverso e, no caminho, a fazer a pergunta ao abastecedor, sem esperar a resposta.
- Já cá esteve alguns dos meus carros hoje? Atende-os bem, olha que eu sou um grande cliente e pago-te o ordenado.
Abria a porta do bólide, amarelo claro, fechava com estrondo e voltava, fanfarrão, de peito aberto e olhar penetrante, como se quisesse despir todos e adivinhar-lhe os pensamentos.
Tinha, pelo menos, um ódio de estimação. Dizia-se que tinham sido grandes amigos, mas agora nem se podiam ver. Coisas de saias ...

O outro tinha um carro da mesma marca, preto. Era discreto, entrava e saía sem qualquer exuberância. Se o vislumbrava, dava meia volta e voltava passado um bom bocado.
O carro preto estava estacionado, a aguardar a vez de entrar na estação de serviço para lubrificar, mudar o óleo e lavar, lavagem completa, interna e externa. Seria um serviço demorado, mas o dono só o viria buscar no final do dia e trouxera-o bem cedo. Podia-se ir fazendo, nos intervalos em que não houvesse outros clientes.
Pouco passava das nove, o bólide amarelo entrou na rodovia, rodopiou chiando e ... com estrondo, bateu na traseira do preto.
Alarme geral. E agora?
Branco, nervoso, dirigiu-se ao patrão que, alertado pelo barulho, tinha assomado à janela do primeiro andar.
- E agora? Distraí-me e tinha logo de ser neste ...
Bem perto havia um bate-chapa e o pintor também não era longe. O patrão conhecia-os bem e, daí a pouco, estavam os "médicos" de volta da "doença".
- Eu pago tudo. Não lhe digam nada!
Durante algum tempo não houve velocidades nem chiadelas de pneus e a altivez desvaneceu-se bastante. 
Depois, as fanfarronices voltaram. O tempo lava tudo ... 

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Quotidiano

Hoje foi um dia em que a imaginação andou arredia e o tempo foi pouco para as tarefas tidas. 
Apenas para que a quarentena não fique com pena de não ter qualquer registo, aqui fica a Primavera em música, com a esperança de que o Corona nos deixe ir à praia assim que o Verão chegar e que os   constrangimentos sejam mínimos.

domingo, 10 de maio de 2020

Nogueira

As primeiras laranjas, enormes, sumarentas, surgiam nas suas mãos. E exibi-as com um orgulho e uma ironia de fazer inveja a qualquer "santo".
- Querias? São da minha nogueira ...

Ainda as nêsperas não tinham chegado ao lugar de venda, já ele as trazia, amarelinhas, sem qualquer marca de míldio, e mostrava os seus dotes de atirador, arremessando os respectivos caroços a uma distância considerável.
- Querias? São da minha nogueira ...

Os pêros encarnados eram comidos primeiro à dentada e depois descascados com a pequena navalha que trazia sempre no bolso. Aquele sumo, pela certa meio acre, fazia crescer água na boca ao mais insensível.
- Querias? São da minha nogueira ...

As maçãs reinetas, pardas, redondas e achatadas, apareciam nas suas mãos muito antes de se imaginar  já estarem maduras. E ele, guloso, deliciava-se a saboreá-las devagar, com requinte e exibição.
- Querias? São da minha nogueira ...

Até os figos, que estavam por ali à mão de todos, chegavam suculentos e muito antes de os vermos a abrir.
- Querias? São da minha nogueira ...

E a uva, Moscatel, também aparecia ainda antes de a Fernão Pires "vergar", exibida em cachos enormes e de bagos verde acastanhado, doces pela certa e a cada trincadela mais deliciosos.
- Querias? São da minha nogueira ...

Como é possível a nogueira dar todas as frutas, de tão boa qualidade e sempre antes do tempo?
Conversa que não se entendia, dúvida que permanecia, até um dia ...
Afinal era simples: conhecia todos os pomares e árvores da região e iniciava a colheita antes mesmo de os donos perceberem que já havia fruta madura ... 

sábado, 9 de maio de 2020

Quotidiano

Num sábado esquisito, com sol, vento, chuva e gatos aos gritos no quintal, lê-se e ouve-se música boa, como esta, e deseja-se que amanhã, domingo, o S. Pedro nos dispense a chuva, mesmo não  dando o tempo que convida a ida à praia.
Os resultados diários do corona parecem animadores mas, a ver vamos, como diz o cego.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Culinária

Era uma tia-avó, velha, que vivia na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa, há muitos anos. Tinha perdido o marido muito nova e permanecia viúva, sem filhos.
Vinha ao Oeste visitar os sobrinhos uma, duas vezes por ano, sempre com alguma altivez da capital para com os "coitados" que permaneciam na província.
Nesse ano veio passar a Páscoa e foi convidada para o almoço no Domingo da dita.
- Vê lá o que arranjas. Olha que ela não gosta de borrego.
- Não te preocupes. Alguma coisa se há-de arranjar.
Chegou o dia e, como era de bom tom, fomos todos festejar a sua entrada na nossa casa, dar-lhe as boas-vindas e receber o pacotinho de amêndoas, pequenino, com que nos brindou.
- Então que fizeste para o almoço? Espero que não te tenhas esquecido que não gosto de borrego.
- Claro que não, tia. Fiz um cabritinho, que espero esteja ao seu gosto.
O almoço correu bem, a tia comeu e bebeu e ninguém se desmanchou.
- O teu cabrito estava divinal. Gostei muitíssimo, obrigado.
Vieram as despedidas e, de novo, as referências elogiosas ao cabrito, com a indicação de, para a próxima vez
- Hás-de fazer de novo, gostei muito e quero repetir.

A minha mãe, que faz(fazia) hoje 97 anos, foi a cozinheira desta refeição e ensinou-nos que, afinal, o cabrito pode ser borrego e que, mesmo os mais convencidos, nunca sabem tudo.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Quotidiano

Tenho máscara, tenho viseira, tenho as obras prontas, o automático do portão de novo a funcionar, a relva, cortada, as rosas, lindas, os morangos, maduros, os gatos a continuarem a usar o wc verde sem qualquer autorização e sem um pingo de vergonha, os melros a espreitarem a ginjeira, ainda tão longe de avermelhar, as framboesas a darem mostras de quererem oferecer uma boa produção, as alfaces, viçosas, o limoeiro, carregado, os espinafres esperando que os colham para a "sopa dos meninos", o chuchu, a trepar, a glicínia a ostentar cachos roxos, os bordões de S. José verdíssimos e ainda longe da "hibernação" que irá ocorrer quando o calor apertar, os cactos, suspensos, a mirarem o ambiente, as strelitzias, maravilhosas, a rua, um sossego, e a casa ... vazia.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Língua Portuguesa

Ontem, a propósito do Dia Mundial da Língua Portuguesa, deixei por aqui alguns excertos de meia dúzia de escritores, dos quais gosto bastante. À noite, quando tentava fazer o resumo do dia de "trabalho" na quarentena, dei por mim a pensar como tinha sido extremamente injusto para com tantos autores que conheço bem, convivem comigo há muitos anos e fazem parte da minha "mobília". Devia ter-me limitado a congratular-me com a distinção e não fazer o que fiz.
Porque nas citações não estava Torga, Agustina, O'Neill, Natália Correia, Pessoa, Eça, Jorge Amado, Lobo Antunes, Sophia, Maria Teresa Horta, Teolinda Gersão, Almeida Faria, Camilo, Bocage, Manuel Alegre, Miguel Sousa Tavares, Carlos de Oliveira, Alves Redol, Chico Buarque, Clarice Lispector, Nemésio, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Namora, Ferreira de Castro, Fiama, Hélia Correia, Filomena Beja, Graciliano Ramos, Herberto Helder, Vergílio Ferreira, Urbano, Teresa Veiga, Sebastião da Gama, Ruy Belo, Gedeão, Rodrigo Guedes de Carvalho, Pepetela, Mário de Carvalho, Onésimo, Ondjaki, Paulina Chiziane, Natália Nunes, Milton Hatoum, Mário Cláudio, Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena e tantos, tantos outros, que me apetece tirar uma listagem do registo informático e pespegá-la aqui. 
A língua portuguesa é maravilhosa e há tanta gente a escrever bem!

terça-feira, 5 de maio de 2020

Dia Mundial da Língua Portuguesa

Meia dúzia de exemplos, curtos, dos muitos que se podiam dar, para ilustrar a beleza desta língua que é a nossa e falada por muitos milhões, em várias partes do globo, com características diferentes em cada sítio mas sem necessidade de acordo ortográfico para que nos entendamos todos.

(...) Andam por ali uns homens desgarrados, e embora a praça seja mais para a tarde, há quem se chegue ao feitor e pergunte, Que é que o patrão resolveu, e ele responde, Nem mais um tostão, que as boas e pertinentes fórmulas não se devem perder e dispensam variações, e os homens dizem, Mas há seareiros que já pagam trinta e três, e diz Pompeu, Isso é lá com eles, se quiserem ir à ruína, bom proveito lhes faça.(...)
José Saramago
Levantado do chão
Editorial Caminho

(...) - António, foi por minha causa, eu pago-te o cavalo ...
 - Não digas mais, Bernardo, não digas mais, que já nem te vejo todo. O cavalinho pateou ao meu serviço, a perca é minha. Deixa, se se arrastar até casa, bem sei o que lhe hei-de fazer.
Descansámos ali a noite e, com sopas de vinho e boa pitança, reanimámos o animal, a pontos de se aguentar em pé. E, embora moêssemos um dia até Trancoso, o cavalinho lá foi andando.
- Cão de mim - maluquei - se trago o macho não sofria o dano de vinte libras, que era quanto o Orlando dava pela bestinha no mercado dos quinze. O mulo engolia o estirão sem tocar com um casco no outro. Mas adiante, vamos a ver, talvez o Orlando lhe pegue ... (...)
Aquilino Ribeiro
O Malhadinhas
Bertrand Editora

(...) Estou apaixonada.
Que coisa boa, até que enfim; disse a amiga, que se chamava Paula.
Mas ele não está interessado em mim.
Isso é duro, querida, é a pior coisa do mundo. Eu sei por experiência própria. Lembra aquele rapaz que estava comigo na festa do sábado passado?
Loreta não lembrava, ela não via nenhum outro homem a não ser Luís.(...)
Rubem Fonseca
Secreções, excreções e desatinos
Campo das Letras

(...) Mas certo dia vi-a a entrar num beco e em vez de a chamar, como fazia habitualmente, fui andando atrás dela. E de madrugada fui bater-lhe à porta. Ela perguntou quem eu era, dei-lhe o primeiro nome que me veio à cabeça. Como me explicou depois, o nome coincidia com o de um fulano que costumava visitá-la a meio da noite e por isso abriu a porta sem temor. Ao ver quem era logo tentou de novo fechá-la, mas era tarde, eu já tinha meio pé metido dentro de casa.(...)
Germano Almeida
As memórias de um espírito
Editorial Caminho

(...) Nga Sessá e as amigas mudaram a doente e os lençóis muitas vezes, a infeliz parecia ia se derreter em suor e gemia, adormecia, acordava:
- Aiuê! Minha barriga, minhas costas! Morro!
Só sossegou mais meia-noite já, começou respirar mais calma, a gemer com voz baixa, calando aquelas conversas do homem que lhe amigou para adiantar roubar os bois, dos ladrões de bois, dos ladrões do dinheiro dela, um advogado de Malange e os filhos mulatos e tudo o resto que don'Ana, sá Domingas e o capitão gostam falar.(...)
José Luandino Vieira
Nosso musseque
Editorial Caminho

(...) Lhe conto uma história. Me contaram, é coisa antiga dos tempos de Vasco da Gama. Dizem que havia, nesse tempo, um velho preto que andava pelas praias a apanhar destroços de navios. Recolhia restos de naufrágios e os enterrava. Acontece que uma dessas tábuas que ele espetou no chão ganhou raízes e reviveu em árvore.
Pois, senhor inspector, eu sou essa árvore. Venho de uma tábua de outro mundo mas o meu chão é este, minhas raízes renasceram aqui. São estes pretos que todos os dias me semeiam.(...)
Mia Couto
A varanda do frangipani
Editorial Caminho


segunda-feira, 4 de maio de 2020

(Des) Confinamento

Já não estou confinado, mas ainda estou muito limitado.
Sem infringir as regras e comportando-me com o civismo que o momento exige, fui ver o mar, marquei o corte de cabelo e já só consegui vaga para amanhã, às seis da tarde, dei uma volta a pé e ajudei a arrancar umas ervas daninhas no jardim. Há muitas outras por aí, mas a essas, por muito que eu queira ajudar, não há monda que as extinga. Ainda bem! Qualquer seara, para dar bom grão, tem de ter algumas daninhas para que a diferença se acentue e seja visível.
No passeio, detive-me um pouco a apreciar as obras de arte espalhadas pelos jardins do CENCAL. Ao autor da obra que hoje fotografei, de forma amadora e despretensiosa, nunca lhe passaria pela cabeça que, um dia, um passeante em passeio higiénico haveria de relacionar os coloridos e bonitos pulmões da sua obra com a sujidade que o coronavírus trouxe a muitos milhares em todo o mundo. 
E os pulmões ficam tão bem naquele corpo cerâmico tão bonito.


domingo, 3 de maio de 2020

Palavras bonitas

Telegrama

estou bem e continuo
resisto
de noite custa mas de manhã
quando me visto
meto-te ao bolso
esperança
e assisto
a mais um dia

o calendário anda
para trás o sol é longe
o silêncio corrói
os fios da vontade

mas no meu bolso estás
e lá te afago

tranquila como um lago
que enche de seiva
as veias do meu corpo

Manuel Alberto Valente
Poesia reunida
Quetzal (2015)

sábado, 2 de maio de 2020

Amor

A azinhaga dividia-se, mais ou menos a meio do percurso, em dois carreiros estreitos e cheios de socalcos. A tradição determinava que o "trânsito" se fazia sempre pela direita, o que significava que uns vinham pelo lado nascente e outros regressavam pelo lado poente. E toda a gente cumpria a regra, não escrita, mas por todos aceite.
O pedregulho que ficava no meio e fazia a divisão era impenetrável. Enorme, muito liso e normalmente com verdete da humidade e do pouco sol que apanhava, não admitia veleidades mesmo a quem tivesse muita agilidade e vontade de descobrir.
Do lado poente, as vinhas perdiam-se de vista, enquanto que do nascente, o mato, os castanheiros, as silvas e, lá mais ao fundo, os pinheiros mansos, formavam a paisagem que, mesmo de dia, não deixava que a vista se lhe entranhasse.
Era já noite e o medo da escuridão obrigava à correria, mesmo com o risco de algum tropeção pôr o nariz a sangrar. Os barulhos que se ouviam eram os do costume: o piar de alguma coruja, assustada, o canto do melro que fugia do galho onde se preparava para dormir, o mio de algum gato por ali perdido, à procura de achamento ou de chamamento.
De repente, um guincho estridente ...
- Não faças barulho, sussurrou uma voz grave.
Todos os sentidos ficaram alerta. O som tinha vindo do outro lado. O que será? E se me vêem?
A curiosidade era forte e o medo não era menor. Já sem correr, caminhou o resto do carreiro e, no final, fez o inverso.
De novo o som do guincho ou do grito, não conseguia identificar ou o medo toldava-lhe a vista e a audição. O mato era denso e o carreiro estreito. Pé ante pé, encosta à árvore, cuidado com as silvas, olha a pedra, não tropeces, não há cobras nem sardões, tudo dorme. Abre os olhos.
Umas silvas pisadas, uns fetos no chão, alguém por ali tinha passado há pouco e o destino não era o carreiro. Sobe a árvore, é mais fácil. E foi. Lá ao fundo, na negrura da noite e sobre uma "cama" da natureza, o casal rebolava ...
Foram namorados e casaram, não um com o outro.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Maio

É o dia da Festa e o dia de cantar, ainda não de vitória, mas de esperança que melhores dias virão, não importando a fúria do mar.
Se tudo correr dentro da normalidade anormal, Maio será o mês de cortar o cabelo, de voltar a ver o mar e a beber café "a sério", e de estar próximo dos meus, mantendo a distância, claro, mas eliminando as conversas com paragens, as imagens distorcidas, o "longo" tempo de espera pelas respostas, as conversas em catadupa.
E para o ano talvez os festejos do Dia do Trabalhador voltem à rua, se possível com poucos desempregados.