“podia ser só uma Avó... mas ela era (é) o cheiro do sabão
azul e branco, a água que escorria dos tanques públicos para a calha, os
carreiros de formigas, os lagartos saídos da seringa de madeira para a mesa, o
cheiro das couves cozidas misturadas com as sêmeas, as flores violeta
rebentadas se lhes tapássemos os topos, o andar em bicos de pés para chegar aos
ovos, o som do motor do poço, as molas encaixadas como comboios no terraço, a
cafeteira deformada usada como regador, os pegamassos, o açafate com uma bola
de madeira e mil botões, o pente molhado no lavatório antes de alisar o cabelo,
os bifes fritos em lume lento, as mãos calejadas, o cheiro das cascas das
sementes dos pássaros sopradas para fora dos comedouros, as urtigas arrancadas
à mão... podia ser só uma Avó e já era muito, mas foi (é) grande parte das
memórias impregnadas na matriz quase por estrear que era o meu cérebro infantil
e, por isso, mais marcantes e intensas... e a prova de que não é o dinheiro,
nem a instrução, nem a quantidade de brinquedos, que garantem uma infância
feliz. os afectos (ou a falta deles) é que condicionam tudo o resto daí para a
frente...”
A minha filha vai perdoar-me a apropriação e divulgação do texto que escreveu e publicou no seu blogue, partindo do filme que André Raposo realizou, tendo por base uma crónica de José Saramago.
O retrato é perfeito, as palavras certas, a descrição genial.
Nos arquivos da minha memória está cada vez mais presente, com mais pormenor, a personalidade, a calma, o carinho, os ensinamentos que cada vez valorizo mais.
O tempo é outro e mais urgente.
Os meus netos nunca dirão de mim nada parecido com o que a minha filha hoje me ofereceu sobre a minha mãe.
E as lágrimas não param ...