quinta-feira, 30 de junho de 2022

Aeroporto

Por mais que o vento fustigue e trame as boas manhãs de praia, há sempre algo que acontece e anima o dia.

Foi ontem anunciado, pelo Ministro Pedro Nuno Santos, com pompa e circunstância, que, afinal, quase meio século depois, havia sido decidido que não íamos ter apenas um novo aeroporto mas sim dois, um no Montijo e outro em Alcochete, ambos com vista para o estuário do Tejo, que é lindo em qualquer época do ano e, por si só, atrai muitos milhares de turistas. 

Hoje, o Ministro teve de voltar à ribalta para se penitenciar, por ordem de António Costa, que um erro de comunicação o fez divulgar a decisão, sem a comunicar previamente ao Primeiro-Ministro e ao Presidente da República e, pasme-se, sem ter obtido o beneplácito do líder do principal partido da oposição, que ainda não o é mas vai ser no próximo fim de semana, acrescente-se com o rigor que estes assuntos requerem.

São "malhas que o império tece" mas o sapo não deve ter sido nada fácil de engolir e muito menos de digerir, lá isso não.

Acalmada a ventania, surgirá a decisão e será aplaudida por vir muito atrasada, tal como muitos aviões, e ser indispensável para o progresso do país.

E, c'os diabos, mais uma semana, um mês, ou anos, não tem relevância nem importância. Quem esperou 50 anos ...

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Tropeção (?)

O Presidente da República, do alto da sua função e inegável sabedoria, verbalizou a sua opinião sobre a igualdade entre homens e mulheres assim: 

"(...) Só haverá igualdade entre homens e mulheres quando chegar aos mais altos postos uma mulher tão incompetente como chega, em vários casos, em inúmeros casos, aos mais altos postos, um homem.(...)"

Fiquei surpreendido com um achado tão eloquente. Pensava eu, pelos vistos mal, que chegar à igualdade entre as pessoas não teria a ver com o sexo das mesmas e sim com a competência e a abertura nos acessos. Pelos vistos, torna-se imperioso nomear mulheres incompetentes para, com isso, atingir a igualdade de oportunidades.

Quero acreditar que foi o cansaço ou a pressa que determinaram, salvo melhor opinião, a ousadia da afirmação presidencial. 

A preocupação, julgo eu, deve ser conseguir as nomeações pela competência e, se assim for, não se colocará o problema do sexo. Mas eu sou lírico ...

terça-feira, 28 de junho de 2022

Ilegalidades

Era a época de Natal.

Naquele dia, o tableau de bord determinava que se fizesse a entrega da agenda do ano seguinte e também de uma umbrela com a indispensável publicidade, a alguns dos melhores clientes do banco. Era uma tarefa anual, desempenhada sempre com algum recato e outro tanto de pressa, o primeiro para que não houvesse ciumeira, a segunda por serem horas roubadas ao trabalho normal, que não era pouco e se ressentia, obrigando aos habituais prolongamentos, muito para além da hora legal de encerramento. Sem horas extraordinárias, acrescente-se. Eram contempladas no subsídio de isenção e nunca seriam para ali chamadas, embora o que era recebido estivesse longe de remunerar o trabalho a mais.

O dono do restaurante era um dos eleitos, não só pelos seus predicados na conta pessoal, como também pela rentabilidade que era oriunda da actividade da comezaina. Foi dos últimos a ser visitado naquela manhã, por não ser madrugador e ser difícil encontrá-lo antes das onze.

O estabelecimento, no centro da cidade, não tinha estacionamento reservado e situava-se numa rua onde não era fácil encontrar um lugar. A visita seria "de médico" e, por isso, o carro foi deixado frente ao portão do prédio contíguo, de onde nunca tinha calhado ver sair uma viatura. Ao voltar, um engravatado como eu mas mais velho e mais alto, estava encostado à viatura. Percebi a bronca de imediato.

- Desculpe. Foi só um instante. Nem demorei dois minutos ...

- Não viu a placa? Posso mandá-lo prender.

- ???

- Sou juiz, moro aqui e até nem preciso de sair, mas não admito que violem a lei na minha casa. 

Não mereceu resposta. Virei-lhe as costas, meti-me no carro, dei à chave e lá fui, de regresso ao trabalho que me esperava e não devia ser pouco. Já lá vão muitos anos e, até hoje, não recebi qualquer mandado de detenção pela violação da lei do senhor juiz, mas nunca se sabe. A justiça demora tanto ...

O resto das entregas ficaria para o dia seguinte, sem estacionamento indevido, para não correr o risco de ser mandado prender por um qualquer julgador cioso dos seus direitos.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Um livro que retrata a vida no Alentejo dos anos trinta do século passado, por alturas da guerra civil espanhola, com acentuação clara das diferenças entre quem manda e quem obedece, fundamentos válidos para todas as classes.
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"(...) Então ela tivera outra ideia melhor: sugerira-lhe que não casasse então dois corpos, mas duas almas. Que casasse as almas de Catarina e de seu companheiro durante trinta e quatro anos. Dessa vez, o padre hesitou em responder-lhe e foi estudar o assunto.

- Não o poderei fazer - afirmou depois de alguns dias em reflexão -, porque na verdade não sei se ambos estão de acordo.

 - A minha mãe diz-me que o meu pai também está a sofrer porque a considera a sua verdadeira mulher - rebateu Maria Barnabé. - Se isto não é uma prova ...

 - Nem no direito civil, minha filha, nem no canónico, uma confissão de um morto tem validade - explicou o padre, pausadamente, para que ela o entendesse.

- Não percebo nada do que diz, senhor padre - admitiu ela.

- O que quero dizer é que seríamos os dois presos se levasse essa loucura por diante - finalizou ele.

Não houve, depois disso, uma única vez que Maria Barnabé tenha ido à aldeia vender os seus produtos da horta que não fosse sensibilizar o padre para a necessidade daquele casamento. Numa delas, propôs-lhe que os casasse como dois namorados de um namoro contrariado pelas famílias: o padre negou-lho, porque era um homem de valores morais conservadores. De outra, foi dizer-lhe que os casasse sem ninguém por perto, mantendo-se o segredo do enlace, mas nem assim o convenceu, pois aquele alegou que precisaria de testemunhas para essa realização e aí se perderia todo o sigilo que os protegeria daquele sacrilégio. (...)"

Velhos Lobos
Carlos Campaniço
Casa das Letras (2022)

domingo, 26 de junho de 2022

Evolução

O frigorífico está a ficar cansado e a clamar pela reforma. Deixar de existir na actividade diária é uma situação não compatível com a vida tal qual ela é hoje. Por isso, a decisão de o descartar não é difícil de tomar nem exige grande ponderação, apenas precisa de disponibilidade. O destino estava marcado desde o dia em que o técnico que veio para a máquina de lavar louça o espreitou, a pedido, e determinou:

- Já deu o que tinha a dar. Na próxima apitadela, tem de abrir os cordões à bolsa.

Enganou-se. Já não é preciso abrir os cordões à bolsa, já não se usa bolsa e cordões, muito menos. 

A loja está aberta aos domingos, tem meia dúzia de electrodomésticos a ocupar lugar e disponíveis para mirar, e uma quantidade enorme no grande armazém virtual da actualidade. A menina que atendeu foi simpática, conhecedora e despachada. Escolhido o modelo, identificado o cliente, o cartão executou a tarefa que lhe compete, e a mercadoria será entregue na próxima terça-feira.

- Ligamos 30 minutos antes da hora de entrega. Muito obrigada e boa tarde.

Tudo fácil. Podia, até, ter sido feito sem sair de casa. 

Tal qual como há cinquenta anos ... 

sábado, 25 de junho de 2022

Palavras bonitas

REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos ...
Nada está mudado - ou, pelo menos, não dou por isso -
Nesta localidade da cidade ...

Há vinte anos! ...
O que era eu então? Ora, era outro ...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada ...
Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?) ...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos ...
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava então
Se existisse hoje, talvez se lembrasse ...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, tudo isso ou outra forma de o dizer...
Daquela janela do segundo-andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha do que eu, mais lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada ...
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.

Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso ...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora.
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse ...
Verdadeiramente se desse ...
Sim, carnalmente se desse ...
Sim, talvez ...

Obras completas de Fernando Pessoa
Poesias, de Álvaro de Campos
Edições Ática (1980)

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Dia especial

Hoje é um dia muito importante.

Não por ser feriado no Porto, em Braga e noutras cidades, nem por se festejar o S. João, já sem alhos-porros mas ainda com marteladas a esmo. Nada do que possa ter acontecido, estar a acontecer ou vir a surgir tem a menor relevância.

A importância do dia está intimamente ligada a um facto único que merece toda a minha atenção e apreço: o meu neto III completa hoje a sua primeira dezena de anos da vida que lhe há-de trazer muitas mais e, seguramente, felizes e profícuas.

Parabéns, meu neto DUDU.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Estonar

Em tempos idos, as ervas que enxameavam as terras eram raspadas superficialmente para, de seguida, serem enterradas, enriquecendo a base das culturas que aí iriam ser lançadas. A tarefa de raspar as ervas, normalmente executada por mulheres, por não ser tão exigente do ponto de vista físico quanto a cava, era chamada de estona. Estonar precedia a cava e a sementeira e considerada essencial para que a cultura, qualquer que fosse, tivesse êxito.

O mesmo princípio - rapar, não as ervas mas os pêlos - se aplica ao cabrito, na zona de Oleiros. O cabrito estonado é depois assado no forno e, logo de seguida, colocado nos pratos para que cada um dos comensais o saboreie e se delicie. 

Vale a pena, foge-se à vulgaridade, aproveita-se para satisfazer a vista com paisagens lindas e para conviver com gente amiga, vencendo o hiato que a pandemia decretou.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Parvoíces

Apetecia-me escrever sobre o debate que a RTP 3 está a transmitir em directo e que poderia/deveria ser para discutir, esclarecer e tentar resolver os problemas que o país tem e aqueles que o futuro, inevitavelmente, lhe trará. O debate tem como objectivo a colocação de questões ao Governo, por parte dos deputados eleitos por todos nós, os que votámos, e que, dessa forma, determinámos que fossem os nossos representantes.

A segunda intervenção, de um cretino que até foi eleito e, por isso, por lá se senta com todo o direito e representa umas centenas de milhares de portugueses, tira a vontade, ou melhor, espevita a vontade de desligar, não fora a gravidade que a parvoíce das palavras que saem daquela boca sem freio, encerra. A preocupação de criar espectáculo, a forma e a ausência de conteúdo, a acentuação e a elevação do seu ego, os aplausos e os àpartes dos seus súbditos, tudo sem um mínimo de dignidade e de respeito por si próprio e por aqueles que lhe ofereceram o voto, enoja, chega.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Degradação

Nasceu num berço de prata, pelo menos. Os pais pertenciam à média burguesia, sempre viveram bem e, aparentemente, também lhe proporcionaram as melhores condições. O aspecto visual da altura assim o indicava e não havia quaisquer razões para pensar diferente.

Ainda jovem, o vício das drogas tomou conta do seu quotidiano e também do irmão, um pouco mais novo. A degradação foi-se acentuando. Os pais morreram e já não assistiram à derrocada. Está um farrapo, embora ainda conserve algumas regras de higiene. O irmão desapareceu daqui. Não se sabe - eu, pelo menos, não sei - se ainda está vivo.

Hoje, a meio da manhã, estava sentada na esplanada e a cerveja ia quase no fim. Talvez fosse a primeira do dia, mas outras se iriam seguir, entremeadas com o "charro" que não dispensa à vista de todos. A manhã acabará com meia dúzia de cervejas e uns quantos "charritos". Por vezes tem companhia: um "namorado" com quem discute acaloradamente e um cãozito, sossegado, aos pés dos dois. Hoje estava sozinha. Terá tido companhia nestes últimos anos?

Dentro do café, um companheiro de juventude, um pouco mais velho. Antigo craque de futebol, jogou na Luz e acabou no Caldas, onde tinha começado miúdo. Tem a doença da moda. Fui cumprimentá-lo, com a dificuldade de quem não sabe o que dizer. Riu-se muito mas claro que não me reconheceu. A mulher fez o sorriso de circunstância, revelador da necessidade de compreensão do que deve ser uma luta diária e terrível.

Pensei para comigo: vai escrevinhando, lendo e passeando. É bom sinal!

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Diferenças

De acordo com essa enciclopédia fundamental que agora quase dispensa a aprendizagem e a memorização, o hibisco é uma planta da família das Malváceas e tem centenas de espécies. Além de ser utilizada na produção de chás, é, segundo a sapiência do Google, originária de parte incerta, embora haja registo das primeiras aparições não em Fátima mas na África Oriental e na Ásia. Algumas das espécies são comestíveis, mas só para quem tem boa boca, acrescento eu, que não confio na sabedoria do Google.

Cá em casa vive um hibisco há muitos anos. Já esteve por duas vezes em perigo de vida, mas conseguiu recuperar e por aqui se mantém, fresquinho que nem uma alface. Neste momento só tem folhas, aguardando-se que as flores cheguem em breve. Se S. Pedro ajudar, talvez no início de Julho elas estejam por aí, a tornar (ainda) mais belo o jardim. 

Para me causar inveja, esse defeito terrível que ninguém deve ter, o meu amigo ADS fotografou uma flor da capital, fazendo-a chegar aqui por estes "envelopes" virtuais, que de tudo se encarregam. Confirma-se, uma vez mais, que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.

Até no florescimento do hibisco a província perde.




domingo, 19 de junho de 2022

Incompreensível

Quase todos os dias se ouvem, vêem ou lêem notícias sobre atrasos intermináveis na resolução de processos na justiça, de anos e anos sem solução ou à espera de análises de recursos intermináveis, baseados em mil e uma argumentações, produzidas por advogados habilidosos ou de inteligência superior, que conseguem ver para além do que "alcança a própria vista".

Talvez a grande maioria dos processos que dão entrada nos tribunais seja resolvida com celeridade ou dentro de prazos razoáveis. Esses, naturalmente, não são notícia.

Talvez ... mas a justiça, que não deveria ser notícia, tem como missão julgar e julgar é resolver de forma justa e atempada, sem "pés atrás", preconceitos ou habilidades, e com tratamento idêntico sejam quem forem os prevaricadores.

Ler que dois processos levaram dez anos a condenar seis pessoas por escravidão é incompreensível e ofensivo para quem é cidadão deste país e nele paga os seus impostos.

Fica a certeza que o Ministério Público, a Procuradoria Geral da República, o Conselho Superior da Magistratura, o Presidente da República ou a Assembleia da República, uma destas entidades tão responsáveis e habitualmente prolixas em declarações, mande instaurar um costumado rigoroso inquérito, para apuramento das responsabilidades de todos os intervenientes, apurando-se quem é pedregulho na engrenagem ou quem recebe ordenado sem o merecer.

A liberdade, a presunção de inocência e o direito à defesa nada têm a ver com isto.

sábado, 18 de junho de 2022

Dúvida

Foi a girafa que furou a buganvília ou foi esta que se lhe colou ao pescoço?

Quem quiser ser esclarecido, dê um saltinho ao Parque D. Carlos I. Vale sempre a pena!

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Integridade

Correndo o risco de ceder à demagogia e a alguns lugares comuns, mesmo assim ganha a teimosia de sempre, que espero se mantenha lúcida até ao fim.

Quem, mesmo sossegadinho, viveu sob a ditadura, não consegue compreender que exista gente, no auge da sua força e com acesso a quase tudo, a defender tempos idos e águas passadas. Muita dessa gente estaria condenada às portas fechadas, ao pescoço dobrado, à ausência de esperança, a morrer na valeta. Os pais de alguns deles, e os avós muito mais, nunca sonharam ser possível ver os filhos ou os netos ascenderem na sociedade, subindo alguns degraus na escada, mesmo que só até ao primeiro patamar. A esses, deixa-se claro que a escada da sua vida começou a fazer-se em 25.04.1974.

E aquilo que parecia impossível voltar a acontecer, alguns querem que regresse. Arreda, arreda, vá de retro, Satanás. 

Faz muita falta reflectir sobre o que já por aqui passou, como éramos e como somos, ou melhor, como se vivia e como se vive, apesar de ainda haver muita gente a vegetar. Com todos os defeitos que tem, a democracia abriu portas à discussão, à diferença, às possibilidades, à exibição do querer e da vontade, ao direito ao trabalho e à opinião, à revolta, à contestação, à paz. Haja paz e façamos um mundo melhor para todos. E aqueles que já moram no "primeiro andar" pede-se-lhes que não olhem com desprezo para a "cave" e não exibam as benesses de forma ostentatória e ofensiva para quem nada tem. 

Há muitos que nada seriam se a sociedade constituída por todos e para todos não lhes tivesse dado essa oportunidade, muitas vezes com o recurso a expedientes e malabarismos que deixam muito a desejar no campo da honestidade que se ouve apregoada. Talvez seja a altura de darem algo em troca, tendo presente que o dinheirinho traz alguma felicidade e ajuda muito, mas não compra tudo e todos.

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Trabalho

Por ser dia de descanso, hoje não parecia haver capacidade para assegurar o regular funcionamento deste "diário", apesar da justíssima ansiedade dos que a ele recorrem para resolver os grandes problemas de fundo. Na verdade, poucos (ou nenhuns) são os que disso necessitam ou usufruem de qualquer vantagem das eventuais visitas que por aqui efectuam. Talvez só por vício ou masoquismo, se justifique a trabalheira que dá uma consulta diária de textos "para encher chouriços".

Foram feitos todos os esforços para manter a "porta aberta", com outros trabalhadores e melhor qualidade. Não houve uma única pessoa que se dispusesse, disponibilizasse ou aparecesse para garantir a produção do dia, o que se compreende muito bem, dada a excentricidade da tarefa.

A capacidade de trabalho de quem se mantém sempre ao serviço também se esvai. Paciência, é a vida. Não é grave nem por aí vem qualquer mal ao mundo. É apenas uma incapacidade séria de planeamento e de antecipação, coisa que grassa por aí com fartura e que, por isso, se não deve estranhar. Tudo isto foi agravado pelo estrago que uns pingos de chuva, bem grossos, por sinal, fizeram numa manhã de praia que se antecipava como óptima, considerando as previsões divulgadas para o país. 

A água estava boa e o mar disponível para facilitar os acessos ao pessoal, antecipando até uma possível enchente. Nada disso aconteceu. Três teimosos, cumprindo o ritual na "prainha", aproveitando a maré vazia e o caminho com sinal verde. O mar, como óptimo trabalhador que é, tem cumprido a sua tarefa e transportado muita areia de um lado para o outro, mostrando rochas novas e soterrando muitas antigas. Tudo isto sem qualquer concurso nem comissões de verificação.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Tarefas

Este ano, a ginjeira está bem carregada. E as ginjas vão amadurecendo com calma, primeiro as lá de cima - apanham mais sol - a que se seguirão as outras se, entretanto, nada ocorrer de especial.

Já foi concretizada a primeira colheita e, de acordo com a informação veiculada por quem sabe, está assegurada a produção de doce para as encomendas precoces.

Os melros, sempre atentos, aproximam-se cada vez mais e, sem vergonha, vão fazendo a colheita por sua conta. Não fazem parte do quadro nem têm qualquer vínculo que os ligue à ginjeira. São uns meros tarefeiros sem escrúpulos, que nem aproveitam estes dias feriados para fazer pontes e irem "laurear a pevide", como tanta gente fez. Acresce que, como não têm satisfações a dar a ninguém nem respondem disciplinarmente ou legalmente a qualquer entidade, comem as ginjas quando muito bem querem ou lhes apetece, sem qualquer preceito ou respeito. 

Por mais temido que seja o ramo, aparecerá sempre um qualquer melro a deliciar-se com as ginjas, maduras, claro, e comidas apenas e só quando lhe aprouver. Se estiverem verdes, não prestam, só os cães as podem tragar, como dizia a raposa, das uvas.

Se os melros tivessem um contrato de prestação de serviços biunívoco, a ginjeira determinava o seu cancelamento imediato. Não se pode "tarefar" apenas quando convém.

terça-feira, 14 de junho de 2022

Menosprezo

Naquele final de tarde da terça-feira só tinham aparecido seis "futebolistas para o habitual jogo semanal de futebol de salão, praticado ao ar livre e em piso de cimento, para enrijar o osso. Eram os tempos da Parada, que hoje serve de parque de estacionamento. Os pavilhões, com piso de madeira, ainda estavam para chegar!

- Somos tão poucos. Nem dá para um joguinho. 

Uns pontapés à baliza, antecedidos de umas corriditas para aquecer os músculos, e não aparecia mais ninguém. Seis não dava para nada e o lamento dos "quarentões" pela ausência dos colegas, que nem sequer avisaram, era perfeitamente audível.

Meio envergonhados, foram-se aproximando. Eram quatro jovens, treze, catorze anos, com ar de quem não se importava de fazer companhia aos "velhos" e colaborar na jogatana.

- De certeza que os "putos" são fraquitos, mas é melhor que nada. Jogamos com calma, para não os assustar ...

 - Querem jogar?

- Se nos deixarem ...

Um dos "velhos" foi para a baliza dos miúdos, para que ficassem duas equipas com igual número de jogadores.

- Vejam lá o que fazem. Não vamos massacrar os "putos". 

Ainda mal a bola começara a rolar e o primeiro já lá estava. Foi um massacre. Os miúdos chegavam sempre primeiro e os "velhos" nem a cheiravam. Alguns de nós achavam que eram tecnicamente muito dotados e que isso era suficiente.

- Com calma. Troquem bem a bola que chegamos lá.

Não chegámos. Foi uma abada. E os miúdos até pareciam toscos ...

Lição de vida: "quem primeiro alça, primeiro calça" e "mais vale quem quer que quem pode".

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Ilusões

Os olhos perscrutam o horizonte e apenas vêem uma mancha acinzentada, azulada, indefinida, sem nada que indicie haver por ali alguma coisa de palpável, muito menos umas ilhotas bem robustas e antigas.

Nem sinal das Berlengas, dos Farilhões, muito menos das Estelas ou das Desertas. Mas estão lá, disso não haja qualquer dúvida. Não é fácil de explicar a quem, pela primeira vez, se sente no areal da Foz e deite os olhos ao mar, cumprindo a sugestão de as descobrir.

- Não vejo nada. Estás a brincar ...

Não se movem, nunca, esteja o mar revolto ou mansinho. Escondem-se, de quando em vez, criando nova paisagem, ou aparecem mesmo ali à frente, quase à "mão de semear".

- As Berlengas, hoje, estão mesmo aqui. Se calhar, amanhã chove.

E no dia seguinte estão mais ao fundo, mal se distinguem no meio do oceano, confundem-se entre o céu e o mar, com vergonha de se exibirem. Logo no outro se distinguem perfeitamente, mas lá tão longe. 

A natureza tem destas coisas, incompreensíveis, alterando-se e forçando realidades que, não deixando de o ser, "vestem" hoje paletó e lacinho e amanhã uma bata suja, da cor do horizonte e nele bem embrenhada. Tal qual as pessoas, que tão depressa se fazem ouvidas e notadas, como a seguir se escondem em silêncios ensurdecedores, procurando transmitir que, afinal, não passam de uma ilusão, que não são o que foram e nem sequer por lá andaram. Todavia, olhando bem, está lá tudo, por mais que escondam.

E a culpa só pode ser da natureza!

domingo, 12 de junho de 2022

Pontes

Por me parecer pertinente e para ajudar ao destaque dado à situação que se está a viver nos hospitais, um pouco por todo o país, incluindo este cantinho oestino onde, tudo o indicia, morreu um bébé por falta de assistência adequada, e quando a hipocrisia de muita gente que devia ser responsável e não corporativista vem ao de cima, "roubo" o comentário do Embaixador Francisco Seixas da Costa, no seu blogue "Duas ou três coisas":

"É minha impressão ou a maioria das pessoas que, numa reação demagógica, culpou a ministra da Saúde pelas carências de pessoal especializado, em certas unidades hospitalares, se "esqueceu" de perguntar o que a "ponte" teve a ver com as falhas?"

E acrescento eu: os mapas de férias, elaborados no início do ano, já contemplariam estas ausências e foram, pela certa, bem analisados antes da devida aprovação. Quem os aprovou estava ciente que as parturientes não iriam escolher esta altura para terem os seus filhos, preferindo, por ser muito mais interessante, fazerem uma deslocação ao sul para se bronzearem. Daí à aprovação foi apenas o "salto" de uma assinatura com o "Concordo", que é sempre bem mais fácil do que fazer escolhas, conducentes a inimizades perfeitamente dispensáveis. "Eu sou o chefe, mas não quero problemas. Nem vou cá estar nessa altura."

sábado, 11 de junho de 2022

Sábado à tarde

A tarde serviu para espreitar a exposição World Press Cartoon, que permanecerá no CCC até 28 de Agosto. Vê-se com muito agrado e tem muitos cartoons carregados de humor e acutilância, de autores de todas as partes do mundo e com temas actuais, da pandemia à guerra, de Biden a Merkel, Johnson  e Macron, Putin e Trump. As burkas do Afeganistão também têm lugar de destaque. 

Depois, uma tentativa, gorada, de ver a exposição patente no Posto de Turismo. A secção expositiva encerra aos sábados, domingos e feriados, dias em que, naturalmente, quase ninguém anda na rua e menos ainda escolhe para visitar a cidade. 

No átrio, um aluno da ESAD terminava uma instalação, com madeiras reaproveitadas, bem interessante. Está a decorrer o 25º. Caldas Late Night, organizado por aquela escola de artes e a cidade está pejada de juventude, irreverente, como convém a qualquer artista. As vestimentas, a cor dos cabelos, a forma como se deslocam e privam, alertam os menos atentos de que o futuro é da inovação, da tentativa e erro, da actualidade, da ousadia. A música (também) faz parte da festa. O tipo da dita e o som que sai das colunas, seja ele emitido por um grupo ou pelo computador de um qualquer DJ (no caso, era o NV), comunica que há uma selecção de espectadores e que é melhor ficar em casa, à noite, nem que, para isso, surja a velha desculpa.

- É capaz de estar vento, e frio. Desagradável.

Uma nota final: às cinco e meia da tarde, a praça ainda não estava completamente desmontada. Temos de a manter por ali. Faz parte da história e as pessoas adoram o mercado ...

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Organização

O restaurante reabriu há poucos dias, muito tempo depois de ter encerrado e após uma reformulação profunda, feita com bom gosto, por sinal. 

A manhã tinha proporcionado um passeio à beira-mar e algum tempo de leitura, abrigados da nortada que se fazia sentir, ainda que não de forma a assustar quem a ela está habituado. O sol ia rompendo, o mar estava a encher e as vagas eram bem altas. A Lagoa ria-se dos milhões de litros com que era presenteada e os pescadores também pareciam satisfeitos com o peixe que, assim o diziam, haveria de chegar dentro de alguns instantes.

- Vamos experimentar o novo ...

Ainda não estava cheio, mas não tardaria muito. Os clientes que já estavam sentados, aguardavam. Aqueles que iam chegando, esperavam, sentados.

- Ainda demora muito?

- Mais cinco ou dez minutos.

Os vários empregados corriam de um lado para o outro, desorganizados, sem ninguém que desse indicações e explicasse como fazer. Uma boa parte parecia, ou melhor, era completamente inexperiente. Um trazia as toalhas, outro vinha a seguir desinfectar a mesa e, claro, levantava-as. Agora vinha o cesto do pão, depois os talheres. Toda a gente corria mas ninguém parecia conhecer o destino.

Uma hora depois, chegou à mesa o que havia sido encomendado. Estava muito bom, sem dúvida.

Ao lado, três abandonaram, cansados de esperar. Lá ao fundo, outros quatro saíram também.

- Só esperamos até às duas e meia, ouviu o empregado, jovem, e, corado de vergonha, respondeu:

- A cozinha diz que são só mais cinco ou dez minutos ...

A conta não demorou tanto como a comida, mas foi necessário insistir duas vezes.

- Falta organização, não acha?

- Pois ...

Se não arrepiam caminho, não duram muito!

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Legalidade

Um novo capítulo da saga aqui iniciada e que deverá estar, tal como a guerra, bem longe do fim.

Sem o papel nada feito. 

A reforma provisória estabelecida e comunicada são cerca de 190,00 € mensais, ainda que qualquer pessoa com o mesmo número de anos de trabalho (mais de vinte) tenha direito a, pelo menos, cerca de 300,00 €. É o valor da reforma mínima para quem teve descontos durante esse período, e não leva em linha de conta o montante sobre o qual esses descontos foram efectuados. 

- É verdade, mas falta o papel da Ucrânia e sem ele, a lei diz que é assim. Reforma provisória do valor que aí está indicado, que só será alterado quando chegar o papel.

 - Com a guerra, sabe-se lá quando virá ou até se o pedido chegou ao sítio devido.

- Pois ... mas não há nada a fazer. Tem de esperar.

Ainda tem, felizmente, condições para trabalhar e é isso que continua a fazer, para não morrer à fome ou passar a viver debaixo da ponte, como está a acontecer a muitos dos seus compatriotas.

- Depois recebe os retroactivos todos.

Se o papel não for destruído por algum bombardeamento entretanto, penso.

- A lei é muito dura.

Questiono-me: falta lei ao senso ou falta senso à lei?

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Paula Rego

Faleceu hoje, em Londres, aos 87 anos, determinando o fim de uma vida cheia e marcante.

Nunca "quis" adquirir qualquer obra sua, "apenas" por receio de que as paredes não suportassem o seu peso de artista enorme, e irreverente, como irá ser recordada no futuro. 

Para além da grande qualidade que os meus olhos, pouco conhecedores, diga-se, tiveram o prazer de apreciar ao vivo, numa visita à Casa das Histórias efectuada logo após a sua inauguração (2009) e uma outra grande exposição em Serralves, fica para sempre a força dos seus quadros e das personagens retratadas.

Do "espólio" cá de casa faz parte uma pequena reprodução de um quadro, cujo peso a parede conseguiu suportar, e uma edição do livro As Meninas, de Agustina Bessa-Luís, ilustrada com imagens de muitas das suas obras.

(...) - Não sei como pintar o chão - diz ela. Parece gostar de pôr as pessoas dependentes das suas dúvidas, erros, experiências em movimento, instáveis. As pessoas correm a ajudá-la, dão-lhe conselhos. Isso diverte a menina.
Era no tempo radioso de Walt Disney, das suas travessuras, do coelho Tambor a fazer a corte à sua coelha duma maneira hilariante. Ela ria-se, no escuro da sala sentia-se sozinha como ela gostava.
- Como hei-de pintar o chão?
- Fazes assim, assim, e o chão fica pintado - disse Vic. Paula ouvia-o com amor. Mas não era dum conselho que ela estava à espera, era de atenção, a atenção um pouco gulosa que se tem pela criança que está a crescer. Ela estava a crescer, D. Violeta não dava por isso. Queixava-se à mãe, batia-lhe nos dedos com a régua. A dor sobressaltava a menina. Por isso perguntava sempre:
- Como hei-de pintar o chão? (...)
As Meninas
Agustina Bessa-Luís
Três Sinais Editores (2001)

terça-feira, 7 de junho de 2022

Conversas

Se não há nada para dizer, fale-se do tempo. 

- O dia hoje está bonito. Se calhar, amanhã chove.

- Não. Agora só chove lá para o final da semana. Foi o que ouvi. O vento é que parece ir soprar com alguma força. Vamos ver!

Está a conversa feita. Tudo tratado e nada resolvido, como sempre. Ainda bem ...

- Tens visto F. ? Já não a vejo há séculos. 

- Foi o que trouxe a pandemia. As pessoas isolam-se cada vez mais e passam-se semanas sem lhes pormos a vista em cima.

- Mas está viva (Ri-se muito), isso garanto. Ontem escreveu qualquer coisa no Face, já não sei bem o quê. Ou terá sido no Insta?

- Eu vi uma fotografia. Pareceu-me que andaria a passear.

- Pois ... e não era por aqui. Nós não temos aquele sol tão lindo nem árvores tão frondosas.

- Podia ter identificado o local ... deve querer deixar a dúvida e dar oportunidade a que lhe perguntem.

- Sabe-se lá se a foto é de agora.

- Tens toda a razão. E até pode ser uma montagem ... as máquinas fazem tudo!

 - Bem, adeus. Tenho de ir. O miúdo sai agora e vou pô-lo ao futebol. Esta semana calha-me a mim.

- Adeus, "bjinhos". Gostei muito de conversar contigo!

Cada uma seguiu o seu caminho. O tempo urge, há muito para fazer e nada para dizer.

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Resiliência

" A cultura é tudo o que resta depois de se esquecer aquilo que se aprendeu"

Depois de tantos anos passados, de uma vida intensa, cheia de coisas boas ( e algumas péssimas), dou por mim a pensar que ainda tenho alguns traumas que não resolvi nem vou resolver, e que se acentuam à medida que o tempo vai prosseguindo a sua maratona, sem me passar cartão nem comigo contar sequer para os primeiros cem metros.

Um dos meus defeitos, enorme, é ser invejoso, muito, do saber enorme que cada vez mais pessoas evidenciam, e exteriorizam, pondo a minha ignorância completamente a nu e fazendo com que me interrogue sobre para que serviu um caminho já tão longo, o ter lido tanto, ter prestado atenção ao que se passou (e passa) à minha volta, ter ouvido atentamente explicações e dissertações de pessoas que sabiam dos assuntos e o explicavam sem pedantismo e com clarividência. Concluo: a minha capacidade de absorção de conhecimento é infinitamente baixa.

Da guerra à política, das finanças à economia, da produção ao consumo, do vírus ao futebol, não há uma única área em que os meus conhecimentos se comparem aos que todos os dias vejo, e ouço, e leio, expressos por tanta gente que, claramente, está a léguas de distância de mim e a quem me é completamente impossível acompanhar.

Não devo ter sido dotado da resiliência que, diariamente, ouço referir como qualidade fundamental para ser alguém na sociedade actual. Não resisti e fui cuscar esse livro fantasmagórico e completamente ultrapassado, que tem sete volumes e se chama "Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa".

Resiliência: s.f. 1. Fís. propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica. 2. Fig. capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças. Etim. ing. resilience (1824); elasticidade; capacidade rápida de recuperação.

Fiquei esclarecido. Tenho de adaptar-me à má sorte ou às mudanças, sob pena de ser submetido a uma deformação elástica e não retornar à forma original.

domingo, 5 de junho de 2022

Domingo

Cavaco tem toda a razão. Já nada é como no tempo em que ele governava, todos eram muito felizes e viviam em harmonia plena, seguindo as suas doutas instruções e sapiência. Nem já o tempo se comporta como devia e parece ignorar todas as louváveis indicações recebidas.

Para o primeiro domingo de Junho está determinado, se não na Constituição da República, pelo menos na regulação consuetudinária, que há lugar a uma ida à Foz, para regalar a vista, refrescar o pulmão, andar na areia e dar, ao menos, um mergulho. Fiz a parte que me competia e, logo pela manhã, fui até lá.

Porém, há sempre quem prevarique e não cumpra as suas obrigações, continuando, contudo, a reclamar o seu direito à existência e, quiçá até, à remuneração que lhe foi atribuída para executar a função de tudo deixar fluir, sem interferir nem mandar palpites. 

O mar estava chão, a temperatura da água devidamente aquecida pelo "esquentador" da Foz, que nunca prima por trabalhar com muita força, o norte apenas enviava uma ligeira brisa que mal se notava e o sol, faltou. Sem qualquer justificação e contrariando as determinações da senhora do IPMA que, coitada, agora se verá obrigada a fazer um relatório exaustivo e justificativo do seu falhanço de previsão.

Mas, há sempre um mas: a ausência do sol determinou a mudança da cor do mar, que passou de azul a verde, dando à imensa "planície" uma infinidade de tons, bem visíveis até à Berlenga.

Conclusão: há sempre algo de positivo em qualquer ida à Foz.

sábado, 4 de junho de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) O padre estava a fechar as portas da igreja quando me avistou. Olha quem ele é!, exclamou, e convidou-me a entrar, já jantaste? Não tenho fome, respondi. Romano cheirou o ar. Um jantar daqueles mais líquidos, hã?

Atravessámos a capela e subimos à sala de música. Um piano, duas velhas guitarras, um contrabaixo aconchegado no seu saco. Um Cristo na parede com a pintura esfarelada. O padre foi buscar uma garrafa de vinho e dois copos; serviu-me, serviu-se. Bebemos ao mesmo tempo. Que a paz esteja contigo, disse Romano. E contigo, respondi.

Sentados em duas velhas cadeiras, contei-lhe a história dos últimos dias. Ele sabia de algumas coisas. Da minha vida, aliás, conhecia praticamente tudo, ou, pelo menos, as partes importantes. Em 2008, no princípio do longo deserto da minha carreira literária - antes de descobrir que era mais feliz sem escrever -, procurara ajuda em toda a parte. Meditação, hipnose, yoga, psiquiatria, religião. Queria uma solução rápida para aquilo que só o tempo podia resolver; queria a panaceia imediata para uma dor antiquíssima. O padre Romano pareceu-me a melhor opção. Não se preocupe, dissera-me ele, numa das nossas primeiras conversas depois da missa de domingo - eu, um agnóstico confesso! -, Deus sabe melhor que nós aquilo que nos faz falta. Mas o senhor padre não compreende ..., começava eu, numa litania do desespero. E ele escutava-me, paciente, com um sorriso no rosto, aquele sorriso irritante de quem vai à frente, já conhece o caminho e sabe que ele conduz, não à fantasia de um apocalipse, mas a vales frondosos onde a nossa alma deambula pacificada.

Pratique a oração, pode ajudá-lo, recomendou-me, nessa altura. Não sei rezar, respondi. Não precisa de saber, sente-se na beira da cama e feche os olhos, não peça coisas materiais, nem prosperidade, muito menos Lhe peça para voltar a escrever. Então peço o quê? (...)

Naufrágio
João Tordo
Companhia das Letras (2022) 

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Prego

Funcionava na esquina do Largo com a rua apertada, numa loja autónoma a cerca de cem metros da agência da Caixa Geral de Depósitos. A designação Casa de Crédito Popular encimava a porta e as letras eram idênticas às da CGD, embora mais pequenas. Ninguém se lhe referia pela designação oficial: era o "Prego" da Caixa. 

Os seus dois empregados só em finais da década de setenta do século passado foram integrados nos quadros. Até aí, tinham autonomia completa, só respondiam perante os serviços centrais da capital, auferiam vencimentos distintos, sem carreira definida nem evolução obrigatória. A dada altura, alguém achou que pagar a renda da loja era um desperdício e determinou a integração do "Prego" nos serviços da Agência, com a consequente subordinação hierárquica e a afectação de apenas um dos empregados à actividade autónoma que continuou a ser desenvolvida.

O "Prego" manteve-se em funcionamento até meados dos anos oitenta, quando o senhor JP, único funcionário que percebia alguma coisa daquilo, se reformou. Acabaram os serviços de crédito popular, como era previsível há muito. O senhor JP avaliava os "trainecos" que lhe traziam para garantir o empréstimo pretendido. Do ouro aos lençóis bordados, dos fatos de casamento às máquinas fotográficas, dos gira-discos às máquinas de escrever Messa ou Remington, aparecia de tudo. O senhor JP tinha indicações para só aceitar ouro e metais preciosos mas exorbitava, com a autoridade dos anos, e nada recusava, atento às necessidades de cada cliente, cigano ou pescador, agricultor ou comerciante.

Os empréstimos concedidos pagavam juros trimestrais, não havendo reembolso de capital, que só aconteceria quando o cliente conseguisse reunir a verba que lhe havia sido emprestada. A liquidação integral permitia reaver o bem que havia "dormido" no cofre ou na arrecadação do sótão durante, muitas vezes, tempos infindos. A não liquidação atempada dos juros implicava a venda do bem, dado de penhor, em leilão público, o que era raro acontecer. Os devedores cumpriam e, se de todo isso lhes era impossível, apareciam a justificar-se e, não raro, a trazer novo bem para reforçar a garantia e obter "mais algum". JP encarregava-se de os contactar, deslocando-se à respectiva residência, para entender as razões do atraso.

Os clientes do "Prego", habituais, usavam bens, muitas vezes de família, para financiarem as suas necessidades, os seus negócios, a sazonalidade das suas ocupações, sem burocracias e sem favores.

- Vale 100. Emprestamos 80.

Quando os serviços encerraram definitivamente, os bens e os contratos foram transferidos para a capital, que centralizou tudo na Rua Vale do Pereiro. Acabou o "Prego" público na cidade e alguns passaram grandes dificuldades para reaverem o que, de facto, era seu. Faltava o JP ...

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Monarquia

Começaram hoje as festas dos 70 anos do reinado de Isabel II, de Inglaterra, com a pompa que o tempo decorrido e a predilecção dos ingleses pela instituição monárquica, justificam, aliadas à curiosidade que os contos de fadas despertam em todos nós, mesmo nos mais cépticos.

A Rainha tem conseguido passar pelos intervalos da chuva que, com regularidade, desaba sobre o palácio londrino, seus moradores ou desertores. Talvez seja esse o seu grande mérito, conseguindo manter a sua pessoa acima da mesquinhez e da superficialidade de quem a rodeia. Com silêncios ensurdecedores ou discursos quase monossilábicos, vai segurando a chama acesa e a aura que a faz pairar num limbo com tanto de inacessível como de mitológico.

Aos olhos de quem está longe, é mau "tocador de ouvido" e um convicto defensor de que o berço apenas deve servir para o conforto do sono - mesmo assim, nem todos dormem nas mesmas condições - a monarquia não é, longe disso, o futuro.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Penitência

Começa Junho e S. Pedro presenteia-nos com uns aguaceiros, para que tenhamos consciência de que é ele quem determina e o faz a seu belo prazer, sem ouvir ou prestar contas a ninguém, nem mesmo a Belém.

Podia, ao menos, ter tido a consciência de não fazer isto no Dia Mundial da Criança. Aos petizes, coitaditos, devem ter restado as brincadeiras nas salas, leituras, jogos, histórias e desenhos, sem os saltos e as corridas que lhes são quase tão preciosas quanto "o pão para a boca" e tornando o dia tão normal como todos os outros.

Esta predisposição oestina para contrariar e ser sempre diferente devia ser objecto de estudo e análise detalhada, por parte de quem sabe, fosse de um Cavaco ou do Juiz que não conseguiu a cadeira do Constitucional. Ambos têm tempo e saber para se dedicarem a este tema e, de certeza certa, trariam resultados palpáveis aos olhos de todos. Veríamos tudo esclarecido de vez.

Porém, o sofrimento continua a arrastar-se e ninguém explica. Passamos o ano a sonhar com o Verão, que há-de trazer céu azul, temperatura amena, ausência de vento, mar chão. Chega Junho e acontece tudo ao contrário. Por mais efeitos de que a pandemia e a guerra sejam responsáveis, não parece justo que, por aqui, continuemos a ser húmidos, salvo seja, a pôr o casaquinho à noite, a esperar, sentados, que o vento sossegue. 

A minha análise, empírica, claro, diz-me que isto só pode ser castigo divino por pecados cometidos antanho.