quinta-feira, 30 de abril de 2020

Palavras bonitas

PERFILADOS DE MEDO

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido ...

Alexandre O'Neill
Poemas com endereço (1962)



quarta-feira, 29 de abril de 2020

Cabelo grande

A quarentena não impede o cabelo de crescer, parece, até, que o crescimento ainda acontece mais depressa. Ou talvez não e seja apenas impressão.
Há seguramente dois meses que não vou ao barbeiro, a minha trunfa está enorme e, estranho, cada vez mais branca. Juro que a não lavo com Omo, Tide, Extra ou qualquer outro detergente. Todavia, aquele companheiro das manhãs, que habita o espelho enquanto me barbeio, lá me vai dizendo que já não são só as rugas, as manchas brancas da barba e as cãs, que me dão o estatuto de velho, agora designado de idoso, para ficar mais bonito. (Na tropa, quando por lá andei, dizia-se que os novos eram "maçaricos" e que os velhos, felizardos, tinham a "peluda" à porta.)
O comprimento do cabelo, ainda por cima com o aspecto de quem apanhou um nevão na Suíça,  reforça o estatuto e dá o charme gostoso, como dizem os brasileiros.
Mal seja dada luz verde para isso, ligarei para o meu barbeiro (não me habituo a cabeleireiro, mas reconheço que é muito mais chique) e marcarei a visita tão ansiada. Não haverá conversas com outros clientes, que não poderão estar, e, tenho quase a certeza, o barbeiro falará da situação, dos problemas que ela (lhe) trouxe e trará, da falta que sente do Benfica, apesar de ter visto vários jogos antigos - Não é a mesma coisa! - da política e de - Onde é que isto vai parar? - , tudo isto atrás de uma máscara, peça essencial no vestuário moderno.
Esta noite sonhei com a barbearia. Era eu jovem e ela um local de encontro para gente de todas as idades. O barbeiro esforçava-se por ter sempre gente na sala ou na pequena escadaria que lhe dava acesso. Havia dois jornais do dia - O Século e A Bola - e alguns dos dias anteriores. Por vezes e por estranho que possa parecer, até se podia ler (quem sabia, claro) a Plateia, a Crónica Feminina e o Século Ilustrado. 
A cavaqueira era um regalo, com comentários internos e externos de encher o olho a quem dava os primeiros passos nas "interpretações maldosas". 
- Álcool ou sublimado?
- Álcool, claro. Ainda hoje não matei o bicho.
E o barbeiro lá desinfectava a cara do freguês, enquanto ele saboreava o pouco que escorria para junto dos lábios.
Naquele dia não havia ninguém sentado na cadeira e a bata branca do barbeiro sobressaía dos quatro ou cinco que se sentavam na escadaria a apanhar um sol envergonhado.
A mulher conduzia o burro, carregado de batatas e repolhos, que iriam ser vendidos no mercado. O burro, apesar do esforço a que ia sujeito, levava pendurado um enorme membro preto, que quase roçava o chão e se tornou logo motivo para a chacota do costume.
- Ó senhora, olhe que o burro leva a cilha desapertada, gritou o barbeiro com o seu jeito gozão, à procura da gargalhada dos convivas.
A resposta não se fez esperar.
- Eu bem disse ao meu homem para trazer antes a burra. S....a do bicho, assim que vê p........s, fica assim ...
Silêncio absoluto e o sol, agora sem vergonha, tornou ainda mais belo o belo dia!

terça-feira, 28 de abril de 2020

Teimosia

Era uma vez um lápis rombo, que não se deixava afiar. Por isso, escrevia grosso tal como se fosse um carvão enorme, daqueles usados pelos grandes pintores nos seus retratos.
Por mais que lhe dissessem não ser essa a forma correcta de estar, que a sociedade tinha regras, que a aparência contava (e muito), o lápis mantinha-se no seu cantinho, obedecendo a qualquer um que o quisesse utilizar mas, afiadeira, jamais.
O tempo foi passando. A pouco e pouco, o lápis teimoso foi sendo preterido, usado apenas para pequenos apontamentos urgentes, ficando o trabalho mais importante para os outros que se deixavam afiar e se mantinham bonitos, com o bico bem arranjado e a cobertura bem redondinha.
E mais tempo passou. A inutilidade do lápis teimoso acentuou-se e até para as pequenas garatujas deixou de ser usado.
A gaveta da secretária era agora o seu poiso natural, sem que alguém o incomodasse ou utilizasse.
Os seus companheiros, adquiridos na mesma altura, estavam agora reduzidos a pequenos pauzinhos e já só eram utilizados por mãos pequenas. Pouco a pouco, foram sendo substituídos por novos lápis, de cores variadas e de dimensões normais, que iniciavam a sua vida de trabalho e iam sendo afiados ( e diminuídos) à medida das necessidades.
O teimoso permanecia, quase novo, no recanto da gaveta, sem qualquer utilidade, mas sempre mantendo a irredutível teimosia.
Um dia, alguém mais observador, reparou que na gaveta todos os lápis estavam bem afiados e reduzidos no tamanho, excepto um - o teimoso. Indagou o que se passava e recebeu a informação, já descrita, de que se tratava de teimosia do lápis, que não admitia ser afiado. O informador acrescentou que, apenas por mero acaso, o lápis não tinha sido mandado para o lixo.
- Pois, pensou o lápis, antes o lixo que a lixa!

Actualização: O meu amigo ADS fez o favor de me enviar várias fotos de lápis, entre as quais esta que, em meu entender, ilustra muito bem o que é um lápis, teimoso ou cordato.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Quotidiano


A gaivota ainda deverá estar por lá, a mirar terra que do mar está ela farta. Ao contrário, eu já não o vejo há 47 dias! Pelo andar da carruagem, talvez em Maio. Deste ano, espero eu!

domingo, 26 de abril de 2020

Aniversários

Ontem foi um dia de emoções fortes.
Para além das emoções e recordações que o 25 de Abril sempre (me) traz, o aniversário de ontem foi bem diferente e especial.
Há 46 anos as pessoas foram para a rua, sem temor dos tanques ou das G-3 e deram largas à sua alegria, cantando efusivamente a queda de um regime caduco e opressivo. A satisfação de não ter sido utilizada a força que, a acontecer, poria portugueses contra portugueses, fez com que os cravos da vendedeira do Rossio ficassem para sempre ligados ao dia inesquecível "inicial inteiro e limpo", como o descreveu Sophia.
Ontem comemorou-se mais um aniversário da revolução e também o meu. 
Em ambos, a comemoração foi muito diferente do habitual: o da revolução não teve gente nas ruas, foi discreto, sem exuberância, com os sentimentos a exprimirem-se nas varandas, nas janelas e nas redes sociais. Na Assembleia da República, a imagem mais parecia uma sala de espectáculos tristemente sem público, com actores a sério e alguns, poucos, a não perceberem ou a não quererem entender o sentido da "peça"; ao meu valeram as novas tecnologias, permitindo ouvir e ver os parabéns cantados pelos meus, à distância, mas com o entusiasmo do costume. 
A mesa do almoço era enorme e estava tão vazia ...
"Arquivei" algumas recordações que já juntei ao "livro da memória". O poema da minha irmã e as placas dos meus netos mais velhos estão já resguardados do caruncho e da humidade, no cantinho mais importante que, espero, o meu cérebro mantenha sempre bem cuidado.
Agora, fazendo as contas, verifico que o 25 de Abril ainda é muito novo: eu, já fiz 68 anos, e ele, ainda só tem 46. Está na "flor da idade". Porém, e embora na linguagem oficial ainda não esteja no grupo de risco, parece andar por aí também um vírus à solta que o pode atacar e, se não o levar à morte, trazer-lhe alguns dissabores.

sábado, 25 de abril de 2020

Liberdade e Poesia

E alegre se fez triste

Aquela clara madrugada que
viu lágrimas correrem no teu rosto
e alegre se fez triste como se 
chovesse de repente em pleno agosto.

Ela só viu dedos nos teus dedos
meu nome no teu nome. E demorados
viu nossos olhos juntos nos segredos
que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti.
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
por onde um automóvel se afastava.
                                                                          
E viu que a pátria estava toda em ti.
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
que fez tão triste a clara madrugada.

Manuel Alegre

"(...) cerrou os punhos: Ah, liberdade, és uma conquista permanente, uma perpétua vigilância! e não um leito de rosas ...(...)
José Rodrigues Miguéis - Uma aventura inquietante

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Liberdade e Poesia

Por entre o crepitar dos automóveis

Por entre o crepitar dos automóveis
o bulício inquebrável da cidade
o relincho das nuvens quando imóveis
me oferecem na garupa a liberdade,

por entre o que hoje sei e nunca sei
deste abrupto silêncio que me invade
sem que uma nesga azul do que inventei
deixe de ser mentira ou ser verdade,

pudera um dia alguém ter leve imagem
de mim que fico e parto sem vontade
ao sabor de um destino de viagem,

pudera eu querer parar em minha idade,
aperceber-me enfim da percentagem
que sobrando me está de eternidade.

Maria Alberta Menéres

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Dia Mundial do Livro

Não sou muito dado às comemorações do Dia Mundial "disto e daquilo", muito embora reconheça quão importante é existir uma data que seja apelativa, obrigue a notícia e, sobretudo, seja um alerta para que determinado problema ou acontecimento não seja esquecido.
Hoje é o Dia Mundial do Livro, promovido pela Unesco.
Celebra-se numa altura em que as editoras passam por dificuldades enormes e as livrarias não lhes ficam atrás, ou vice-versa, para o caso pouco importa.
A crise levou ao adiamento da publicação do novo livro de Mário de Carvalho - Epítome de pecados e tentações -, e a Margarida espantada, de Rodrigo Guedes de Carvalho teve o mesmo destino. Este último já está disponível nos formatos E-book e Audio-livro, mas não é a mesma coisa.
O malfadado Coronavírus trouxe problemas a todos os sectores, se bem que nenhum seja comparável à saúde. Contudo, talvez este isolamento tenha trazido mais gente para a leitura e levado alguns a ler os livros que permaneciam "encostados" há muito tempo, a aguardar "tempo". E pode ser que fiquem leitores fidelizados. Por mim, embora por vezes com alguma incapacidade de concentração, cá vou mantendo a rotina diária de ler, muito ou pouco, mas sempre.

Liberdade e Poesia

Daqui, desta Lisboa

Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por suíços habitada,
onde a tristeza vil e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

daqui deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira de vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristolho que se apaga;

daqui, só paciência, amigos meus!
Peguem lá o soneto e vão com Deus ...

Alexandre O'Neill

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Liberdade e Poesia

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o mundo fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a sua dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira 

terça-feira, 21 de abril de 2020

Liberdade e Poesia

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim)! porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua autora?

De santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia:
Oh! Venha ... Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo:

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso numen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!

Manuel Maria Barbosa Du Bocage

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Liberdade e Poesia

No final desta semana comemoram-se os 46 anos da revolução do 25 de Abril, que trouxe a todos, entre muitas outras coisas, a liberdade de expressão sem censuras e sem peias, mesmo para dizer asneiras e aldrabices. 
E porque, como dizia Sophia, "a poesia está na rua", esta semana será por aqui dedicada a uma colectânea de sonetos organizada por José Fanha e José Jorge Letria, e publicada pela já desaparecida editora Terramar, em 2002.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam mágoas na lembrança,
e do bem - se algum houve - as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia, 
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões

sábado, 18 de abril de 2020

Quotidiano

A quarentena tem sido um manancial de aquisição de conhecimentos e espero que assim continue. No final disto tudo, tenho de decidir a quem devo submeter a tese de "doutoramento virtual" abrangente.
No Facebook sabe-se e discute-se tudo; o Instagram segue o mesmo caminho e os vídeos, textos, discursos, enviados pelo Messenger, são carregados de sapiência e de certezas.
Discute-se e opina-se sobre tudo (sim, separado, se não era casacão) desde a queda do PIB aos "coronabonds", a permanência de Centeno e as moratórias, a burocracia do crédito e as garantias, o dinheiro que não chega, as comemorações, o "pico" e o "planalto", os ventiladores e as máscaras, a vacina que há-de chegar e o medicamento que já aí está, sempre com eloquência e certezas que não  se vislumbram quando se ouvem as pessoas que estudam o problema. Enfim ...
Hoje o tema ainda é mais arrasador: vamos ou não à praia no Verão? Podemos marcar as férias? As praias terão senha a determinar a vez de ir ao banho? E quantos poderão estar na água? E no chapéu? Haverá filas e distância profilática para o areal? Não seria conveniente haver legislação que determinasse o tamanho da toalha?
Rendo-me e vou "dar a coxa à Caparica".

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Quotidiano

Na (minha) instrução primária faziam-se ditados. 
A professora ou, na primeira classe, algum colega da quarta, ditava textos com palavras cada vez mais complicadas, à medida que a aprendizagem ia evoluindo e as classes também. 
A professora corrigia e, no próprio dia ou no dia seguinte, obrigava a repetir as palavras erradas, dez, vinte, cinquenta vezes, conforme achava que o erro era recorrente ou resultava de distracção pura.
Não fui muito penalizado com estes castigos - presunção e água benta, cada um toma a que quer ou, de outro modo, gaba-te cesto que amanhã vais à vindima - mas lembrei-me disto hoje, quando assistia à conferência habitual da Direcção Geral de Saúde.
Coitada da pobre senhora: todos os dias tem de repetir frases inteiras já ditas e reditas anteriormente.
É mesmo castigo "à antiga".

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Quotidiano

Hoje, o dia fica marcado pela notícia da morte de dois grandes da literatura. 
Rubem Fonseca, um excelente escritor brasileiro, foi vítima de um enfarte do miocárdio, que o levou poucos dias antes de completar a bonita idade de 95 anos.
Luís Sepúlveda foi, aos 70 anos, mais uma vítima do coronavírus. O escritor chileno, que residia em Espanha há muito - a ditadura de Pinochet obrigou-o a abandonar o país -, era grande amigo de Portugal e esteve no Correntes d'Escritas em Fevereiro deste ano, onde participou numa mesa intitulada, curiosamente ou talvez não, "Era uma vez a liberdade".
Fica por aqui o registo do desaparecimento de dois grandes escritores, cujos livros nos continuarão a fazer companhia.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Quotidiano

Ainda não foi hoje que fui à Foz!
As recomendações das autoridades para os grupos de risco, as chamadas de atenção familiares para a minha normal rebeldia, obrigam-me a ser cordato, obediente e educado ou, como se dizia em tempos longínquos de má memória, atento, venerando e obrigado.
Cumpro, respeitosamente, as ordens da senhora Directora Geral de Saúde (não consigo escrever DGS), por entender que é o melhor para todos, incluindo para mim, que pertenço ao grupo de risco, e por entender que a senhora merece ter esta  modesta compensação, pelo enorme esforço que tem feito.
Este mês deve ter sido o mais comprido de toda a sua vida e isso está bem expresso na sua cara, quando, diariamente, nos entra pela casa. É visível o cansaço, que deixa marcas, mas também a paciência de JO que evidencia perante algumas perguntas (im)pertinentes.
Não quero ser ave de mau agoiro, mas estou convencido que, no final, será ela o "guarda-redes". Se não houver golos, não fez mais do que a sua obrigação; se correr mal, via-se logo que ia haver "frango".
Continue a mandar, Doutora Graça Freitas, que quem decide será sempre criticado.
"Os cães ladram e a caravana passa", diz o velho adágio.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Quotidiano

Quando, de manhã, tudo indicava que iria ser mais um dia sensaborão, sem nada para registar ou apelar aos sentidos, eis que, afinal, Abril uma vez mais surpreende.
Ainda não são seis da tarde e o Sol já aqueceu, o vento já soprou, a chuva já molhou (e bem), já relampejou, muito, e trovejou, ainda mais.
Se mais não houvera, já seria suficiente para que o dia não fosse mais um normal da ... quarentena.
Houve mais: o melhor foi ver duas fotografias, lindas, do meu neto mais novo, atentíssimo no regresso às aulas.
Depois disto, tudo o resto é pouco importante mas, ainda assim, li a indignação de Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, contra uma pseudo-análise da TVI sobre o número de infectados no Norte do país,  que tem, na douta opinião do autor, a "população menos educada, mais pobre, envelhecida e concentrada em lares"; o director da estação já veio pedir desculpas pela "enormidade" mas, tenho para mim que o autor deve ser um daqueles iluminados que acham que, após Vila Franca, tudo é provinciano e vive atrás da moita.
Como tinha tempo livre, ainda fui à Culturgest espreitar uma exposição, assisti a um concerto de Chico Buarque, li uma quantas páginas do Adeus às armas, de Ernest Hemingway, e recebi, pelo correio, um livro enviado pelo meu amigo ADS - Uma aventura inquietante, de José Rodrigues Miguéis - numa edição de 1963, que conto ler assim que terminar o referido antes.
E, para que o dia ficasse completo e não fugisse à rotina, tomei o pequeno almoço, conferi a conta do banco, lavei as mãos muitas vezes, vi notícias na TV, li jornais online, almocei, não dormi a sesta, lanchei, resolvi palavras cruzadas e Sudoku do Público e ainda conto jantar.
Bolas!!! Esta vida é muito cansativa e desgastante!

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Auto de São Martinho

O Teatro da Rainha disponibilizou a gravação do Auto de São Martinho, de Gil Vicente, que levou à cena em Maio de 2017 no Largo do Hospital Termal, num espectáculo a que tive a oportunidade e o gosto de assistir.
Numa altura em que os espectáculos são apenas miragens, é bom recordar, ainda que não haja nada que substitua o calor da vivência do momento.
Mas, em tempos de "fome", valha-nos "sopa requentada" de tão boa qualidade!

Quotidiano

Palavras pertinentes e sempre actuais ... há um mês que não vou à Foz do Arelho, ver o mar!

domingo, 12 de abril de 2020

Quotidiano

O momento que vivemos é único nas nossas vidas e deixará marcas para sempre. É um lugar comum mas, dificilmente, mesmo os mais novos deixarão cair no esquecimento um tempo tão marcante e tão inesperado. 
Hoje, Domingo de Páscoa, houve almoço virtual que juntou a família à mesa, cada um em seu recanto, com tudo e sem nada em comum. Daqui por muitos anos, os netos recordarão a escola, o "exílio", o almoço, os chocolates partilhados em rede, as dificuldades com a posição das câmaras para se conseguirem as melhores imagens - não vejo os teus olhos - tudo o que os mais velhos não esperavam que acontecesse e muito menos contavam viver.
Depois de tudo isto bem mastigado e digerido e de ver, uma vez mais, o Papa sozinho na igreja que costuma estar cheia, sento-me na secretária e ligo o computador. 
Vou assistir, em directo, a um espectáculo de Andrea Bocelli, a partir da Catedral de Duomo, em Milão, na vergastada Itália.
Bocelli canta Música pela Esperança e aquilo que, em circunstâncias normais, seria um concerto com igreja cheia, foi, afinal, um cenário onde duas pessoas - cantor e organista -, enormes, se mantiveram a um nível impressionante e a deixarem claro que o homem tem e terá sempre força para resistir às adversidades e seguir em frente, rumo a um futuro que se espera melhor e será sempre diferente.
As pálpebras cerradas de Andrea Bocelli transmitem-nos a confiança de que a luz, um dia destes, vai surgir.

sábado, 11 de abril de 2020

Quotidiano

O confinamento "obriga" a uma maior atenção ao que se passa em casa e no jardim. 
Os olhos estão mais abertos e qualquer alteração salta de imediato.
Os limoeiros estão carregados e a laranjeira cheia de flor. A glicínia já mostra os seus grandes cachos violeta e o seu aroma peculiar começa a sentir-se. As strelitzias mantêm a sua beleza durante todo o ano mas, nesta altura, ainda se apresentam mais bonitas, para não perderem a corrida primaveril. 
O hibisco mantém disputa acesa com a cameleira e as roseiras, embora rindo-se ainda pouco, já vão dando um ar da sua graça, que é muita. 
Mais prosaicos, os tomateiros, a salsa, os coentros, as alfaces, os pimentos e os morangueiros, uns mais do que outros, aprestam-se ou já vão indo para a mesa, para serem saboreados sem companhia, que o tempo não vai para refeições com mais de duas presenças.
O bonsai está entusiasmado e o jasmim já trepa, verdinho, pelo algeroz. Há mais flores, arbustos, árvores de pequeno porte, e a excepção jacarandá, enorme, mas ainda sem flores.
Apesar disto tudo, há surpresas agradáveis, que agora chegam sempre que o Sol aparece. 
As abelhas invadem o escovilhão, limpa-garrafas ou, mais cientificamente, o(a) Callistemon Rigidus. Está lindo, de um vermelho único. As abelhas trabalham nele que nem desalmadas, sugando o pólen das suas flores. Pacíficas, não nos ligam nada, mesmo quando nos encostamos à árvore. Aparecem de repente, assim  que o Sol descobre e abalam tão depressa como chegaram. 
Não faço ideia se estão "domesticadas" por algum apicultor ou se são livres de tutela. Mas que são bem-vindas, são!

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Matar o bicho

Antes de chegarem ao trabalho já tinham passado pela tasca e bebido, de um trago, um copinho de aguardente, ou melhor, de bagaço, como toda a gente dizia.
- Bom dia, já mataste o bicho?
Era o cumprimento para os que aguardavam a chegada do caseiro, a quem cabia determinar o trabalho do dia. Enxada às costas, botas gastas, camisa de cor indefinida pela sujidade, boné enfiado na cabeça, atilho de cordão a segurar as calças, aguardavam a escolha, sempre com a esperança de não serem rejeitados.
Esperava-os um dia a cavar vinha, a semear trigo ou a ceifá-lo, a plantar bacelo, a sachar milho, e tantas outras tarefas agrícolas que caíram em desuso e foram (ainda bem) substituídas pela maquinaria.
A jorna, parca, era paga no final do dia de sábado e correspondia, apenas, aos dias de trabalho ou a parte deles, se o tempo obrigasse o rancho a levantar. Podiam ganhar um, dois ou três quartéis. Se a chuva só obrigasse a acabar na última parte do dia, o pagamento era integral. Daí que, muitas vezes, sob a chuva inclemente, ainda se ouvia:
- Quem aguentou meio dia, aguenta o resto! 
E o caseiro lá condescendia.
Podar e empar eram trabalhos especializados, feitos por aqueles que tinham aprendido e podiam exigir uma melhor paga, por serem poucos e os trabalhos terem um tempo próprio e urgente para serem realizados. A poda exigia conhecer bem as características da cepa ou da árvore, e saber quais os ramos a cortar, de modo a não comprometer a produção futura. A empa, nas vinhas, exigia ainda mais habilidade e aquela voltinha redonda obrigava a cuidado extremo, para não se partir. Tinha de ser regada com bom vinho e não com a a água-pé do rancho, e o dia, para estes especialistas, terminava antes do Sol se pôr, ainda a tempo de chegarem à tasca e, com o mesmo "comprimido" da manhã, confirmarem que o bicho estava morto e bem morto.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Quotidiano

Não há nada para dizer, não se passa nada, a paisagem mantém-se, o tempo está melhor que ontem, ninguém passeia na rua, os cães não ladram, a caravana não passa, a cidade circunscreve-se ao quintal e a ida ao café ao móvel onde está a máquina caseira. Os contactos virtuais e as respectivas conversas resumem-se ao trivial, como estão, não há novidades, por aqui está tudo bem, felizmente, por enquanto, vá-se lá saber, mas espera-se que não nos/vos aconteça nada, tenham cuidado, distanciem-se, falem ao longe, fechem-se em casa, e os números, que horror, não param de subir, mas nos outros países é bem pior, vejam a Espanha, e a Itália?!, e os Estados Unidos, tanto que o Trump "gozou" com o vírus chinês e agora, olha, até o do Reino Unido, o Boris loirinho, está internado e, no Brasil, viste, a miséria nas favelas, e na Venezuela, a mesma coisa, já há muita gente a passar fome, de certeza, mas tenhamos esperança, tudo vai passar e ficar bem.
O carteiro vem cedo, diz bom dia ao longe e deposita o correio em cima do muro, que não vale a pena colocá-lo na respectiva caixa, se estou ali. Traz a correspondência, pouca, que já lá vai o tempo em que tudo era tratado por carta, até os namoros. Ao dar a volta à motinha, eléctrica, diz que volta amanhã, que é dia da Visão e a da Gazeta.
"O carteiro não tem culpa, é a sua profissão", cantava o Conjunto António Mafra lá pelos idos de sessenta, do século passado, numa canção que viria a ser "roubada" pelo Sérgio Godinho já quase no fim desse mesmo século.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Quotidiano

Uma mudança no visual do blogue, que fica agora carregado de verde, simbolizando a esperança de que isto acabará em breve e que a nossa vida, "escada sem corrimão", volta à normalidade.

Abril é, há 46 anos, o mês da Liberdade. Se, em 2020, não nos trouxer novidades a 25, ao menos que traga a 30. Mais cinco menos cinco pouco importa!

ESCADA SEM CORRIMÃO

É uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.

Os degraus, quanto mais altos, 
mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.

Quem tem medo não a sobe.
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
o lastro do coração.

Sobe-se numa corrida.
Correm-se perigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão.

David Mourão-Ferreira
Obra Poética
Editorial Presença (1988)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Quotidiano

Furei a quarentena e ninguém deu por isso!
Não comprei bilhete, não pus combustível no carro, não paguei portagens nem tive dificuldade em arranjar lugar para o carro.
Na A8 não havia trânsito algum. Ponte de Frielas e a Calçada de Carriche estavam escancaradas. O Eixo Norte-Sul estava limpo e arejado e a chegada à Praça de Espanha deu-se num instante.
Como em tantas outras vezes (a última foi em Fevereiro, para ver Luísa Cruz na Criada Zerlina), o Teatro Aberto estava à minha espera. 
Desci a escadaria, como sempre. Desta vez não sabia se a peça era na Sala Azul ou na Sala Vermelha, mas as indicações eram claras.
Liguei o botão, aguardei um pouco, abri a página, coloquei os auscultadores, ajeitei-me na cadeira e vi o teatro, aqui.
Não teve o mesmo sabor, mas vale sempre a pena ir ao Teatro.
P.S. - A peça chama-se Vermelho, foi escrita por John Logan e, aqui, teve encenação de João Lourenço e interpretação de António Fonseca e João Vicente.

domingo, 5 de abril de 2020

Quotidiano

Hoje era dia de ir à Foz, mas o homem ainda não está a alugar barracas, estava a chover e não me apeteceu. Tudo razões válidas para ficar em casa, sossegadinho, bem comportado e cumpridor!
A quarentena assim o determina, mas que gostava de lá ter ido, lá isso gostava. Só para tirar uma dúvida: a gaivota ainda por lá estará?


sábado, 4 de abril de 2020

Quotidiano

O sábado caminha para o fim, num início de fim de semana cinzento, como o dia a dia que vamos vivendo. Nuvens, alguns pingos de chuva e os números da nossa angústia, que chegaram pela hora do almoço, repetidos até à exaustão.
Amanhã teremos nova estatística oficial, agravada pela certa, e com mais um passo para o esgotamento de quem trabalha "de sol a sol" e de "noite a noite" para que os doentes sobrevivam e se curem.
Entretanto, ouviremos debates, divagações, certezas, dissertações, sobre a necessidade de conhecer o dia do fim com exactidão, talvez para ser possível programar o directo com antecedência, registando as opiniões sabedoras de "eu não vi, mas disseram-me".
Valha-nos a poesia, que lava o espírito e até serve de alimentação, como dizia a grande Natália Correia.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Humildade

"Eu falo porque sou um velho, tenho 85 anos... E se alguma coisa há é a obrigação de dizer aos outros que isto já aconteceu, que se ultrapassou, que vai ser ultrapassado. Nós, os velhos, vamos dar o exemplo. Não saímos de casa, recorremos sistematicamente aos cuidados que nos são indicados e quando chegarmos ao hospital, se for necessário, oferecemos o nosso ventilador ao homem que tem mulher e filhos".
General Ramalho Eanes
Entrevista à RTP 1 - 01.04.2020


E não foi mentira, apesar de ser o dia delas. Eu vi e os olhos quase que me "deram banho".
Bastava esta frase para valer a pena ouvir, mas ainda disse muitas mais coisas que arrepiaram, de entre elas uma  que me recordou tempos idos: "O militar está sempre de serviço. Se for preciso, dorme no seu posto."

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Quotidiano

(...)
Ai socorro
Ai que eu morro
Livra que nos fomos logo a pique
E subitamente ao fundo
Com um negro pela mão
Tão pasmado e caladinho
Mas lá por dentro a cantar o cantochão.

Por mais que se ouça e se veja, por mais que opinem e divirjam os "sabões", a esperança de que tudo vai passar mantém-se viva, tal como a confiança naqueles que, sem alardes, trabalham todos os dias para que nos mantenhamos à tona e o amanhã seja melhor que o ontem.

E havemos de cantar/contar "de um miserável naufrágio que passámos".

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Melros

Passa todos os dias pelo jardim.
Primeiro, pousa no telhado fronteiro, averigua os perigos e, de repente, ei-lo que pousa na relva, ciranda, debica, saltita, sempre de olhar atento não vá surgir algo ou alguém que o possa colocar em perigo, real ou imaginado.
Ao mínimo som ou aparição, ei-lo que parte, com o silvo habitual e o voar inconfundível, bem distinto de todas as outras aves.
É o melro que é um "melro". Esperto, frio, atento, desconfiado. Arrisca sem medo, com cuidados metódicos e quase sempre sozinho.
Ao contrário do que acontecia dantes, os melros tornaram-se habitantes da cidade e, tal como os pardais, já fazem parte da "mobília" citadina. Não se agrupam e os convívios sociais são reduzidos ao mínimo. Vivem quase em permanente quarentena, mas não consta que possam ser contagiados pelo coronavírus nem obrigados ao confinamento. Gozam de liberdade plena e sem receio que a autoridade os possa interpelar para saber se vão para o trabalho, para a mercearia ou para a farmácia.
Com toda esta liberdade de movimentos, espera-se que da sua habituação e integração na cidade, não resulte a transmissão dos seus defeitos e que os humanos não se tornem uns "melros" mais desconfiados, mais frios, mais individualistas, mais calculistas, e que sejam solidários, agora e no futuro, se e quando as coisas se complicarem ainda mais.
E que, tal como o melro, os "melros" deixem de cuspir para o chão ...