terça-feira, 31 de agosto de 2021

Guerra

Saiu ontem o último avião de Cabul e a descolagem foi saudada, pelos actuais detentores do poder, com tiros para o ar e declarações referindo o início da independência do Afeganistão e um futuro risonho para todos, até para as mulheres.

Para quem está longe, desconhece a cultura e a história do povo, tem acesso apenas às notícias difundidas no ocidente, parece que toda aquela gente estará à beira de um precipício, onde abundará a fome, a injustiça, a exploração, a desigualdade. E tudo isto arrepia e faz pensar.

Ouvem-se rumores de interesses "opiáceos", de tráfico de drogas, de conselhos russos e opiniões chinesas, de aproveitamentos turcos e divergências entre os países da União Europeia. E os americanos referem as influências diplomáticas que estarão a mover para garantir que, todos os que queiram, possam sair do país.

Mesmo admitindo que os esforços diplomáticos dão frutos, sairão todos os que querem ou apenas os que podem?

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Setembro e as obras

As obras que, há meses, acontecem nesta zona, quase fizeram desaparecer o sossego. O trânsito tornou-se complicado, com alterações de sentidos, umas sinalizadas, outras por livre arbítrio, e a rua passou a ser utilizada como estacionamento por residentes noutros locais.

Como era previsível, os trabalhos estão a chegar ao fim e tudo indica que deverão ser dados como concluídos aí por meados de Setembro (porque será). Deverão ter a inauguração com a pompa que merecem e relatos, vibrantes, na comunicação social do burgo.

Ontem, o acesso ao portão da Casa não foi fácil. Um carro desconhecido, atravessado, ocupava metade da rua, apenas possibilitando a entrada por o veículo utilizado ser o "micro-ondas". Se fosse o outro, teria ficado na rua, ou melhor, noutra rua, que nesta não havia qualquer espaço.

Meia dúzia de imprecações contra o desconhecido que não tinha consciência nem respeito pelos outros e, decisão tomada, um papel com a mensagem reclamativa, a dar conta dos inconvenientes causados,  pendurada na escova do limpa-brisas.

Hoje, bem cedo, a rega do jardim, que o Oeste tem tido um tempo que quase parece algarvio. De repente, a voz, desconhecida, fez-se ouvir da janela do primeiro andar fronteiro:

- Desculpe. O carro é meu, mas só o deixei assim porque avariou. Não trabalha. O senhor do reboque prometeu vir retirá-lo hoje, de manhã. Estou à espera. Deve estar a chegar.

Coitada. Veio de visita à amiga, o carro avariou e ainda teve de pedir desculpa a um "maduro" que lhe escreveu uma missiva não muito agradável. Há horas de sorte ...

No regresso da praia, o acesso estava desimpedido e o carro tinha ido embora.

Venha Setembro, depressa! 

domingo, 29 de agosto de 2021

Pró-memória

Ontem, deixei aqui uma breve referência à exposição de Ai Weiwei, ilustrada com duas fotos de um fotógrafo incipiente e inapto.

A grandeza, a beleza e a eloquência da exposição permanecem ainda na retina e na mente, como há bastante tempo não acontecia. O meu amigo ADS, que foi uma das pessoas que fizeram o favor de me acompanhar na visita, brindou-me com uma série de fotografias "à séria", tiradas por quem sabe e tem dedo. Com a devida vénia e sem pagamento de direitos de autor, aqui fica uma colecção de "retratos", encerrados com duas fotografias do Tejo visto do "telhado" do MAAT

Lisboa é uma cidade linda e estava, como de costume, com uma luz "do outro mundo".
























sábado, 28 de agosto de 2021

Lisboa

Um opíparo almoço, na companhia e na comida, ali para os lados de Carnide, com o estádio do "glorioso", imponente, a servir de fundo protector.

Dia em cheio, com uns pingos de chuva a suavizar o calor, e uma brisa ligeira, que corria de vez em quando para refrescar os corpos, mal habituados ao traje de circunstância que as circunstâncias determinaram usar.

Com a conversa em dia, estórias e histórias, picantes e saudáveis, tão diferentes quanto interessantes, os participantes rumaram à beira Tejo, com destino à Cordoaria Nacional. Aqui, o objectivo era ver a Rapture, exposição imensa de obras do artista chinês Ai Weiwei. 

Foram mais de duas horas de êxtase perante uma infinidade de obras, dos mais diversos materiais e tamanhos, todas com o propósito de salientar o que vai pelo mundo e a importância da fome, da guerra, da liberdade, nos dias de hoje. O tempo não deu para ver os inúmeros documentários exibidos nos muitos ecrans que enchem as paredes.

E, no final, a conclusão do costume: "quanto mais sei, maior é a minha ignorância".


sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Nos últimos dias de Outubro, ainda fazia calor: o ar sabia a algas e a flores; e as senhoras que passavam sob o balcão de Anania vestiam de musseline e de tecidos leves. Afigurava-se-lhe encontrar-se num país encantado, e o ar balsâmico e enervante, e as comodidades novas do seu quarto, e as doçuras da nova vida, davam-lhe uma sensação de moleza e languidez. Foi invadido por uma espécie de sonolência voluptuosa: tudo lhe parecia belo e grande, e, ao recordar o lagar e as sujas figuras que nele se juntavam, perguntava a si próprio como pudera viver lá durante tanto tempo. A vida humilde dos seus próprios vizinhos continuava decerto o seu curso melancólico, enquanto aqui, nos cafés, resplandecente e, nas ruas luminosas, nas altas casas batidas pelo sol, pelo vento e pelo reflexo do mar, tudo era luz, alegria, poesia.

A chegada da primeira carta de Margherita aumentou a sua alegria de viver: era uma cartinha simples e terna, escrita numa grande folha de papel branco, numa letra redonda, quase masculina. Na verdade, Anania esperava uma carta azul, com uma flor metida num envelope; no primeiro instante, pareceu-lhe que Margherita quisera fazer-lhe sentir a sua superioridade e mostrar o desejo de o dominar; mas depois, pelas expressões simples e afectuosas da rapariga, que parecia continuar com aquela carta uma longa e ininterrupta correspondência, apercebeu-se de que ela o amava sinceramente, com ingenuidade e com força, e experimentou uma doçura inexprimível.

Ela escrevia:

Todas as noites fico longas horas à janela, e parece-me que tu vais passar de um momento para o outro, como costumavas fazer antes da tua partida. Entristece-me muito esta separação, mas consolo-me pensando que tu estudas e preparas o nosso futuro.

Depois indicava-lhe para onde deveria dirigir a resposta, e pedia-lhe o maior segredo, porque era natural que a família dela, se viesse a ter conhecimento do seu amor, o contrariasse.(...)" 

Cinzas
Grazia Deledda
Sibila Publicações (2018)

Nota: Excerto de um romance escrito em 1904, pela primeira escritora italiana galardoada com o Prémio Nobel da Literatura, em 1926.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Peixe-aranha

Há três dias seguidos que a Foz nos brinda com mar calmo, ausência de vento e água quentinha, a rondar os dezasseis graus, de acordo com as entidades que disso sabem. Parece o Algarve ... para quem está habituado a senti-la "cortar" os artelhos.

Começa-se a estranhar e a comentar que deve haver lapso do S. Pedro e que, "amanhã", já deveremos saudar o regresso ao velho normal do vento, nevoeiro, pouco sol e mar bruto. A ver vamos ...

Com esta situação meteorológica, até o peixe-aranha resolveu dar um ar da sua graça e passar por aqui, para que nos lembremos dele. Cobarde como é, estava escondido na areia, sem ninguém dar por ele, nem sequer a dona da Casa, que costuma estar atenta a tudo e ter um sexto sentido para os perigos.

- Ai que já fui mordida por um peixe-aranha.

Havia médico e enfermeira no grupo, o que garantia a eficácia do socorro, se tal fosse necessário.

- Tens de ir ao banheiro. Eles têm um spray e, depois, mergulhas o pé em água quente durante quinze minutos e passa.

Até o médico tem o vocabulário desactualizado. Agora banheiro só no português do Brasil, para designar o local onde se escrevem as "cartas ao António". Os técnicos que garantem a vigilância nas praias são nadadores-salvadores.

O Posto de Socorros fica longe das rochas e o caminho foi feito, com a pressa possível e o esgar próprio de quem tem dores agudas. Simpático, o nadador-salvador pôs em prática tudo o que tinha sido antecipado por quem "sabe da poda". O pé ficou novo ...

O peixe-aranha, entretanto, já deve ter tomado o caminho do Algarve, prevenindo o esperado arrefecimento da água na Foz.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Evidências

O creme de barbear é verde, perguntou o meu interlocutor de todas as manhãs, olhando-me de frente, bem nos olhos e com um ar de dúvida sobre o que estava a ver. Verbalizou o pensamento e o espanto que me assaltavam, eu que tinha ido à prateleira do supermercado e trazido aquela embalagem sem me preocupar sequer em ler o que ela tinha escrito. As letras não eram muito grandes e os óculos estavam em casa, onde são absolutamente necessários para ler as pequeninas. 

Peguei na embalagem e lá estava a explicação: gel de barbear e não creme nem espuma. Experimentei espalhar pela cara o bocadinho de massa verde que permanecia no dedo e, milagre, passou de imediato a espuma branca, explodindo por todo o lado e deixando a mão com uma quantidade enorme. Amanhã vou ter mais cuidado a carregar, para não haver desperdício. É feio.

O interlocutor do espelho ainda não tinha recuperado da surpresa. Ele, que se lembrava bem dos primórdios, do pincel sobre o sabão, da lâmina larga que exigia muito cuidado ao ser colocada na gillette, do salto para a bisnaga de creme mantendo a actividade do pincel, via agora este gel verdinho e fresco a espalhar-se pela cara toda com grande facilidade.

Matreiro e com o segundo sentido sempre na ponta da língua, não resistiu:

- Não percebo para que guardas aí o pincel. Podes deitá-lo fora. Já não serve para nada ...

Claro que ele tem razão, mas prefiro manter aquilo que me foi útil durante tantos anos. E o tubo do creme Palmolive ainda tem algum. Nunca se sabe se o gel não acaba de repente. 

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

domingo, 22 de agosto de 2021

Repetição

O esplêndido dia de praia de ontem terminou com uma combinação de grupo, para executar na manhã de hoje.

- O primeiro banho de amanhã vai ser nas rochas. É maré vazia por volta das nove e meia e vai dar.

Cada um foi à sua vida, ainda a digerir a beleza do mar, a doçura das ondas, a ausência do vento, o calor abençoado do sol. Ninguém se lembrou de ligar ao S. Pedro, participando-lhe a decisão, obtendo a sua anuência e a necessária e fundamental colaboração. Resultado desta má programação: não houve passeio na praia, muito menos banho (o mar não se via) e nem sequer a areia foi pisada.

O Sol não apareceu, o vento regressou, o nevoeiro "poisou" e tapou o mar, houve pinguinhos para molhar o cabelo. Como sempre na Foz, não há planos que resistam vinte e quatro horas. Dois dias seguidos bons é quase tão raro como ganhar o Euromilhões.

Mas não se perdeu tudo. Abrigados da nortada pela parede da antiga discoteca, que foi depois restaurante e agora só tem no interior as mesas e as cadeiras, permanecendo fechada há anos, discorreu-se sobre o antigamente, as figuras e os figurões da cidade, o como e o porquê de quando éramos novos, com apelos à memória a cada momento.

- Lembras-te? Como é que ele se chamava? Era jeitoso ...

A conclusão, brilhante, foi de que tudo desse tempo teve muita piada e agora já não há nada disso!

Porque será que os velhos não conseguem manter uma conversa que não descambe, inevitavelmente, no "nosso tempo"? 

Valeram as anedotas, algumas bem picantes, sempre antecedidas das desculpas devidas às senhoras presentes, porque nenhum dos participantes é malcriado e há "estórias" que têm mesmo de ser contadas com pormenor ... 

sábado, 21 de agosto de 2021

Raridade

Espectacular.

Céu azul, vento de férias, mar chão, calor quanto baste, água aí pelos quinze graus, para não escaldar.

Não acontece muitas vezes mas, nestes dias, a Foz é única. Até a "aberta" estava diferente. O "empreiteiro" da areia trabalhou a noite toda e deu nova aparência à paisagem, para surpreender quem visita.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Loja

Decidida, vestida de forma fresca, como convém estar para o calor que ainda faz quase no final da tarde, não deverá ser quarentona, mas andará perto. Ao seu lado, com algumas dificuldades em acompanhar o ritmo da passada, um marido, namorado, amigo colorido ou similar, seguramente sexagenário. Leva os medicamentos que foram adquirir na farmácia de onde saíram.

Ela determina, alto e sem admissão de réplica, naquele sotaque açucarado que só há no português do Brasil:

- Agora vou na loja. "'cê" espera no carro. Não devo "demorá".

- Não pode ficar para amanhã?

O comando abriu o carro. Ela sentou-se ao volante e ele "pendurou-se". O motor ouviu-se e o Renault seguiu viagem.

Não soube onde era a loja, mas fiquei curioso ...

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Há ...

... mas são verdes!

fruta no Parque, ou melhor, à saída, logo a seguir ao roseiral, no espaço arbóreo que por ali .

Para cumprimento das regras sanitárias, que levar máscara e manter o distanciamento à volta das pessoas, evitando a propagação do vírus que tanto tempo connosco permanece e incomoda a todos, até à Polícia, a quem cabe, muito, a inestimável tarefa de cuidar dos cidadãos.

À entrada para os espectáculos, necessidade de exibir o bilhete electrónico. Quem os tem, chama-lhes seus. Já estão esgotados muito tempo e não sítio nenhum onde ainda estejam à venda. Ah! Olha a admiração, tem gente que não assiste a um espectáculo, de borla, quase dois anos.

Também cinema na Praça da Universidade, da qual só sobrou a Sénior. Um dia, quem sabe, a Universidade voltará à Praça e todos lembrarão que, muitos anos, houve por ali um estabelecimento universitário do ensino privado que lhe deu o nome, houve muitos alunos que lá obtiveram o canudo e de alguns já não se ouve falar muito.

, seguramente, muitas mais notícias da terrinha, que cada vez mais se preocupa com o progresso e a cultura, seguindo de perto os concelhos vizinhos de Óbidos e Alcobaça, nos quais tradição para as coisas que giram à volta do saber.

Em Óbidos, ou mais concretamente na Amoreira, mais um espaço cultural dedicado aos livros e o seu nome faz jus à finalidade de divulgar a Língua Portuguesa. A preocupação deve ter sido tornar o espaço apelativo para a multidão de turistas que, todos os anos, visitam a Amoreira, e também a todos os que por lá residem e não estão familiarizados com as expressões actualmente na moda. À biblioteca, que foi hoje inaugurada, foi dado o nome de Little Free Library, nome que tresanda à inspiração em Aquilino, Eça, Camões, Pessoa, para só citar alguns. 

por aí tanta gente a fazer, a dizer e a escrever asneiras, que mais um não deve fazer diferença às pessoas, poucas, que isto leram até ao fim.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Palavras perdidas

- No rés-do-chão era o consultório de uma parteira que fazia abortos.

- Desmanchos. Nesse tempo eram desmanchos. Abortar era completamente proibido ...

Hoje ninguém utiliza o termo desmancho e o mais provável é haver uma quantidade enorme de pessoas que nem sabe o que significa. A língua é viva, transforma-se, cria, muda, elimina.

O aparo desapareceu, não se usa o apara-lápis e a caneta de tinta permanente pertence a alguns nostálgicos que ainda compram, procurando muito, um frasco de Parker Super Quink. Já ninguém trabalha de sol a sol e, por isso, não cresta, felizmente. A jorna foi promovida a ordenado, mesmo que o trabalho se mantenha em duas ou três jeiras de terra que, agora, produz morangos, beringelas ou courgettes durante todo o ano. Ainda há repolhos, couves-de-cortar, alfaces e feijão-verde, mas a rúcula e os brócolos estão a conquistar espaço.

Acabaram os contínuos e telefonistas também não existem mais. O taberneiro desapareceu e levou consigo o copo-de-três. Só alguns velhos ainda jogam à malha, ao dominó, à sueca e à bisca lambida. O sete-e-meio e a lerpa deram de frosques e nunca mais alguém os viu. Agora toma-se um drink e joga-se na consola e no ipad.

O barbeiro está em vias de extinção, substituído pela barber shop e a brilhantina eclipsou-se. Já ninguém manda pôr meias-solas ou sabe o que é uma galiqueira ou esquentamento. Todos levaram o caminho de nenhures, fazendo companhia ao garrotilho. A nora e os alcatruzes partiram em busca da cegonha, ou picota, deixando os poços à mercê das silvas, por já ninguém regar de pé-posto. Também já não há quem vá ao latoeiro comprar um cabaço para regar a horta e serão excepções os que sabem que o fogareiro tanto podia assar as sardinhas como cozer as batatas. Houvesse petróleo para o manter e álcool desnaturado para o acender ...

Tudo isto acontece porque estas palavras (e muitas outras) deixaram de ser impactantes para a sociedade e não tiveram a resiliência suficiente para se manterem à tona. Quem diria!

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Consulta

O Carlinhos teve, desde criança, o Manelinho como o seu melhor e dedicado amigo. Cresceram na mesma rua, brincaram juntos às escondidas, jogaram à bola e ao berlinde, subiram as mesmas árvores, espreitaram os mesmos ninhos, frequentaram a mesma turma na primária e tiveram igual sorte no liceu.

No final do sétimo ano, fizeram as suas escolhas e, enquanto o Carlinhos optou pela Medicina, no Porto, o Manelinho preferiu a Veterinária, em Lisboa. A amizade permaneceu intocável, ainda que os encontros fossem rareando e se limitassem a alguns fins de semana e às férias. À medida que os estudos evoluíam, as discussões aumentavam e nunca havia acordo.

- Eu estudo para salvar vidas humanas, tarefa dificílima mas de uma nobreza enorme, argumentava o Carlinhos.

- Sem comparação com a minha. Os animais não se queixam. É preciso entender, estudar, analisar, perceber o que se passa, sem ouvir sequer uma palavra, devolvia o Manelinho.

As diferenças e a valia de um ou do outro curso mantiveram-se durante os anos de formatura e prosseguiram quando ambos iniciaram as respectivas actividades profissionais. Discutiam a utilidade e a dificuldade sem nunca chegarem a acordo, preservando sempre a amizade como bem acima de qualquer discordância.

Um dia (há sempre um dia), Manelinho sentiu-se mal, com dores no corpo, náuseas, cansaço, suores frios, dificuldades na respiração. Resolveu telefonar ao amigo.

- Preciso de uma consulta, com urgência.

- Dentro de 10 minutos, no meu consultório. 

Ainda não tinham passado os 10 minutos e o Carlinhos já tinha a bata vestida, o estetoscópio ao pescoço,  o medidor da tensão arterial a postos e o Manelinho sentado à sua frente.

- Conta lá o que se passa.

- Não, isso não. Não te vou dizer nada. Examina, analisa, faz o que quiseres, mas vais descobrir por ti, sem uma palavra minha. É assim que eu faço com os meus doentes, que não sabem falar.

Carlinhos não se fez rogado. Auscultou, examinou, apalpou, mediu, espreitou, numa consulta longa, dedicada e atenta. No fim, pesaroso, decidiu:

- Nada a fazer. Abate-se! 

domingo, 15 de agosto de 2021

Melhores dias

Cumprida que está a primeira quinzena de Agosto, resta esperar que o calor diminua no interior, de forma a que possamos sentir melhorias no tempo oestino.

É forçoso que assim aconteça, para que não haja (ou haja poucos) fogos - ignições, como referem sempre os responsáveis - e para que se possa usufruir da praia, com pouco vento e algum sol. A água fria não preocupa nada, tão habitual se tornou.

Entretanto, nos últimos dias temos tido notícias do avanço dos "talibãs" no Afeganistão (ao que parece já estarão a entrar em Cabul), de (mais) um violento sismo no Haiti e, cá por este cantinho, ontem à noite, meia dúzia de malcriados quiseram enxovalhar o homem responsável pela vacinação, Almirante Gouveia e Melo, pessoa que eu não conheço nem me passou procuração para o defender.  Valeu-lhes, na minha opinião, que o homem, para além da competência, tem muita paciência. Se assim não fosse, aquela gentinha teria experimentado uma boa palmada, apesar de nem cara terem para a saborear.

sábado, 14 de agosto de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Como sou um "garfo" de eleição e um chef de cuisine de primeira água, fiquei fascinado com a descrição de um banquete no qual participou a protagonista do livro. Julgo que seria da mais elementar justiça uma dedicatória especial para a minha pessoa, pelas características referidas no início e por conhecer a maior parte das iguarias sem sequer ir ao dicionário (para quê?).


(...) "América limitou-se a amostrar ao acaso a panóplia exposta à sua frente. Havia peixinhos da horta com bechamel, rodelas de enchido catalão em pão de centeio, salada de endívias, croquetes de javali e cominhos, puré de lentilhas e pimentão, queijo de Serpa com broa, queijo de Azeitão, queijo Brie de Meaux, queijo Camembert da Normandia, queijo Cheddar, queijo Caerphilly, morcela com pêra Williams cozida com leite, boqueirões em vinagre, mexilhões com abacate, salada de cuscuz e cavala, ostras de Oléron, salada de tofu com brócolos, arenque fumado com sumo de lima e bagas de pimenta vermelha, papadums com chutney de tamarindo, bola de Sanfins, cascas de batata com manteiga salgada da Bretanha, um gazpacho branco com amêndoas e alho de Málaga, sopa de rabo de boi com vinho da Madeira, vichyssoise com batatas novas, polenta à moda da Lombardia, com cogumelos porcini, meloa com iogurte e vagem de baunilha, gambas fritas com chalotas, favas com torresmos, tâmaras com presunto fumado da Baviera, crepes de legumes e açafrão, rúcula selvagem com ricotta e gomos de toranja, folhados de trufas e alho francês, lascas de presunto de Chaves, húmus e ovas de carpa; havia bacalhau com natas, bacalhau à Brás, bacalhau à lagareiro, bacalhau com broa, bacalhau com molho aioli e feijão verde, aspic de camarão de Moçambique, truta salmonada no forno com cajus e vinho branco, empadas de caranguejo, postas de espadarte grelhadas, bifes de atum com funcho, arroz de tamboril, pataniscas com arroz de feijão, sashimi de lula e salmão com sopa de miso, enguias salteadas com mostarda e cherne estufado em vinagre balsâmico; havia vol-au-vent de perdiz com gratin de batata-doce perfumado com anis, feijoada à transmontana, leitão da Bairrada, arroz de capão, pernas de pato caramelizadas, coq au vin, muamba de galinha, porco assado com líchias, língua de vitela com esparregado de grelos, penne all'arrabiata, ganso com recheio de avelãs, lombo frio lardeado com pancetta, vindaloo de borrego, coelho à caçadora, fricassé de galinhola, espetada de moelas de galinha e manga, ovos de codorniz escalfados com farinheira, risoto de peru, chanfana de cabrito, medalhões de porco com rosmaninho, alheira de caça com batata-palha, salsichas de porco e alho francês, migas à alentejana, paella à valenciana, choucroute à alsaciana, sela de veado com molho de hortelã, bife à Marrare; havia bavaroise de alperce com pepitas de noz-pecã, bolo de mel de cana da Madeira, pastéis de Tentúgal, pastéis de Belém, barrigas de freira, farófias, leite-creme queimado, arroz-doce, aletria, sericaia, arrepiados de amêndoa, Sachertorte, tiramisu, melancia recheada com gelado de baunilha, sorvete de ginja e lima, panna cotta com coulis de medronhos, bolo de bolacha, semifrio com calda de rum, mousse de chocolate branco, mousse de caramelo,  mousse de banana, dom-rodrigos, fatias de Tomar, maçapão colorido e moldado em forma de coleópteros e lepidópteros, bolo-rei, tarte de abóbora-menina, tarte de figo pingo-de-mel, suspiros, tigeladas, turrón de Alicante, profiteroles, Paris-Brest, peras cozidas em leite de coco e bolo brigadeiro; havia maçãs bravo-esmolfe, maçãs Pink Lady, maçãs Golden, maçãs Granny Smith, peras Rocha, peras Williams, uvas moscatéis, cerejas Burlat, cerejas Griotte, morangos, framboesas, groselhas, arandos, amoras, tamarindos, tangerinas, toranjas rosas, kiwis, mangas, papaias, ananases, abacaxis, anonas, acerolas, damascos, romãs, maracujás, líchias, melões, meloas, figos e dióspiros. Havia, dispostos em mesas compridas encostadas às paredes, garrafas e jarros contendo água mineral com e sem gás, água tónica, chá gelado, guaraná, ginger ale, sumos de fruta, salsaparrilha, cerveja pilsner, cerveja preta, sangria, vinho do Alentejo, do Dão, do Douro, do Ribatejo, clarete, lambrusco, amontillado, vinho de Borgonha, vinho Tokaj, vinho Riesling, chianti, aguardente, licor de amora, licor de menta, licor Beirão, licor de café, vodka, whisky, gin e anis escarchado. Copos de margarita, com grossas camadas de sal esmagado coladas ao bordo, preenchiam os espaços vazios.

Com o seu prato cheio cuidadosamente equilibrado na mão esquerda, América retirou-se com intenção de encontrar um canto tranquilo onde pudesse comer sem ser chamada a qualquer interacção social."(...)

A prima do campo e a coisa pública
Alexandre Andrade

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Viagem solar

Nasceu lá no Este europeu e mandou avisar toda a gente de que traria calor para esturricar os corpos, mesmo aqueles que já são castanhos de natureza. Os serviços de meteorologia e os orgãos de comunicação social, sempre muito atentos, difundiram a boa nova e os avisos com cores, alertando todos os veraneantes para os inconvenientes da exposição solar e os trabalhadores agrícolas para as proibições que estão em vigor, nos trabalhos e nas queimadas.

O Sol veio no TGV até Vilar Formoso, tomou lugar no Intercidades e desceu a Santarém num instante. Estava convencido que aí poderia apanhar uma outra composição com destino ao Oeste e que seria um pulinho até chegar à praia. Consultou os avisos, espreitou os mapas e nada, não encontrou nada. Ficou perplexo. Procurou o Chefe da Estação e indagou como poderia prosseguir a viagem.

- Só na Rodoviária e não vai ser fácil. Mas tente!

Conseguiu lugar num autocarro até Rio Maior e, cansado da viagem e dos transbordos, ficou por ali. Afinal de contas, a cidade é pacata e engraçada, até tem minas de sal, e os tipos lá do Oeste, que não se preocupam em arranjar comboios em condições, que esperem sentados.

Talvez amanhã ... ou na próxima semana! Tudo vai depender de as nuvens chegarem (ou não) a Rio Maior.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Palavras bonitas

Buarcos, 20 de Agosto de 1937

Um pinheiro.
Olho esta vida aqui no areal, 
Serena, ao vento, ao sol e ao cheiro
Deste mar animal;
 
Meço-lhe o pé seguro,
A largura dos braços e a certeza
Que tem de cima abaixo de ser duro
Conforme lhe mandou a natureza; 
 
E deito-me à sombra dele, no chão, 
- No mesmo chão onde eu não pude ser
Nada mais que um bicho anão
A gemer. 

Diário I
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1989)

(Nota: Miguel Torga, pseudónimo do médico Adolfo Correia da Rocha, nasceu a 12 de Agosto de 1907)

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Ciclismo

A Volta a Portugal em Bicicleta está a decorrer desde 4 deste mês e, de acordo com o calendário fixado, deverá terminar em Viseu, no próximo domingo, dia 15. Todavia, o malfadado "bicho" que nos acompanha há quase dois anos, poderá fazer mais estragos do que os já feitos e impedir, até, que a corrida chegue ao fim,

De acordo com as regras, como dizia hoje, bastante emocionado, o director da equipa Rádio Popular/Boavista, vamos para casa porque temos mais um caso positivo e, ao segundo caso, a equipa tem de abandonar a prova.

E, com esta, já lá vão três equipas das dezoito que iniciaram. Esperemos que fique por aqui, para que a competição, já fortemente afectada, chegue pelo menos ao fim. 

Conseguiremos, um dia, vermo-nos livres desta maldição? O meu médico de família disse-me hoje que, na próxima consulta, marcada para daqui a seis meses, ainda ambos usaremos máscara. Perspectiva animadora ...

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Actualidade

Vivemos tempos difíceis e bem diferentes.

Logo pela manhã, a notícia de que a PSP inicia uma operação para detectar casos de fragilidade social e uma outra para controlar os excessos de velocidade. Pergunta inocente: mas isto não faz parte da actividade policial durante o ano inteiro?

Uma espreitadela pelas primeiras páginas dos jornais e salta à vista a foto em bikini da Ministra da Saúde, passeando numa praia algarvia com o marido. Notícia assim e na primeira página só poderia ser nesse arremedo de jornal que se chama a si próprio de Correio do tempo em que sai. Pergunta inocente: adianta alguma coisa à governação, aos governados ou à melhoria "covidiana"?.

Ainda de manhã, um diálogo curioso:

- Já não somos vizinhos. Fomos ontem para a casa nova.

- Então agora vêm as criancinhas ...

- Nem pensar! Temos o cão e chega. Já ladra muito ...

Uns "caramelos" de Vila Real deram notícia, pelas redes sociais, de que um tal André "está doente" mas que "A Nossa Senhora de Fátima está com ele e não vai permitir que um dos seus escolhidos sucumba a uma doença criada na China para destruir o (...)". Quem lhes espetasse um pano encharcado nas trombas ou, como diria uma antiga professora minha, "valha-lhes um burro aos coices e três aos pontapés."

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Medo

Dizia-me ontem um amigo com quem não estava há largos meses:

- Mal saio de casa. Tenho medo. Vou ao supermercado logo pela manhã e tento despachar-me depressa. Nem à praia venho ... calhou hoje, mas vou embora não tarda nada. Está a chegar muita gente.

Medo. Apesar do tempo decorrido, do número de pessoas já vacinadas, de as notícias transmitirem um pouco mais de esperança, continua a ser a palavra mais presente, mesmo quando não é pronunciada. O que se tem passado deixa marcas, obriga a questionamento, transmite insegurança, deixa dúvidas permanentes, e termina sempre com "E se?".

Vive-se um tempo difícil, que faz perder a paciência, se é que ela ainda se encontra por aí. Exasperamo-nos com as esperas, não tiramos os olhos de quem tem por missão desinfectar, receamos pegar no correio que o carteiro nos estende, aproveitando bem o comprimento do braço, duvidamos que a mão do empregado não tenha tocado na chávena. E a inversa, tal como na matemática, também é verdadeira. Será que este tipo não estará?

Há medo do vírus corporal e do informático, há medo das fraudes, dos contactos, do trânsito, do calor e do frio, do vento e da chuva, há medo dos fogos e do polícia, de tudo e de nada, transformando-nos em medricas, hipocondríacos, opinativos, "achistas", "melgas", egoístas, parvos, estúpidos, convencidos, cheios de certezas absolutas e de ausência de dúvidas.

- Eu não tenho dúvida nenhuma de que ...

Até quando? A ver vamos ... 

domingo, 8 de agosto de 2021

Desporto

Chegam ao fim os Jogos Olímpicos 2020, realizados em Tóquio este ano, em consequência das limitações impostas por esse malfadado vírus que teima em manter-se na nossa companhia, apesar dos sentimentos que desperta e das vacinas que vão sendo dadas. Que me lembre, são os primeiros Jogos que acontecem em ano ímpar e julgo até, sem ter recorrido à "enciclopédia Google", que tal nunca se tinha dado.

Portugal teve uma participação "curiosa", arrecadando o maior número de medalhas de sempre - uma de ouro, por Pedro Pablo Pichardo no triplo salto, outra de prata, por Patrícia Mamona também no triplo salto, e duas de bronze, uma no judo por Jorge Fonseca e outra na canoagem, por Fernando Pimenta. Foram tidas e mostradas algumas atitudes e reacções que não lembram "ao diabo" mas lembraram a algumas pessoas com responsabilidades, de atletas a jornalistas. E foi pena!

O desporto, mesmo para os que dele fazem profissão, encerra um princípio elementar e que tem de estar sempre presente - saber perder. Deve aprender-se de pequenino e permanecer para sempre, a não ser que o mundo esteja de pernas para o ar e que andemos todos na Lua. Para que alguém possa ganhar tem de existir pelo menos um que perca. E o que é normal é perder, porque só há competição quando os participantes são pelo menos dois, e apenas um fica em primeiro.

Um pouco de humildade faz sempre bem, mesmo quando se foi ou ainda se é atleta de primeira linha.

sábado, 7 de agosto de 2021

Vícios

Há muitas coisas que já não conseguirei concretizar, mesmo que viesse a terminar para além dos cem, desiderato que não será atingido ainda que a minha vontade fosse muito forte.

Uma delas é ler todos os livros que tenho, todos os que ainda espero adquirir e aqueles que gostaria muito de ter lido mas que não foi possível fazê-lo no tempo devido. Ler é uma paixão que pede meças com o prazer de comprar. Talvez seja melhor utilizar a palavra vício em vez de paixão. Chega a ser obsessivo, a quase não ter limites e a obrigar a tento na "pinha" e na carteira. Para ajudar, estas modernices dos cartões, dos telefones e de todas as demais formas de gastar facilmente o dinheirinho, subtraem a noção de custo, desvalorizam o gasto, menosprezam a necessidade e reduzem o racionalismo a quase zero. Ainda por cima, há formas de pagar que demoram mais de um mês a produzirem efeitos visíveis na tal carteira, que é nova e, se não se cuida, abre-se em demasia. Nem tem moedas a tilintar ...

- Tenho aqui tantos para ler ... mas este não posso deixar de comprar. 

- E este, que saiu agora e é de um autor de quem nunca li nada. A sinopse é interessante e li uma crítica muito boa. 

A Feira do Livro vai começar a 26 de Agosto. A lista está feita e sofrerá muitas actualizações. Para além disso, no local há sempre qualquer coisa que chama, apela, manifesta-se. Está decidido: até lá, por muito forte que seja a vontade, não comprarei mais livros!

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Sabedoria

Ontem o pescador, diligente e amigo, tinha avisado:

- Aproveitem bem. Amanhã o mar dá a volta.

Ninguém ligou ao aviso, na certeza de que era basófia de pescador a dar "uma de entendido" nas peripécias do Atlântico que banha a Foz. O tempo estava tão bom, o mar estava chão, nem sequer havia vento. Tretas, para não estar calado.

Hoje, logo à chegada se deu conta que o "saber da experiência feito" existia. O mar nem parecia o mesmo. Revolto e trocado, ondas bem altas, apesar de a maré estar a encher há pouco tempo. Nem um surfista quanto mais um banhista.

Caminhada até à aberta e de novo a conversa do pescador:

- A "juventude" tem de ter cuidado. As ondas enganam, o mar está muito bruto e bate quando menos se espera.

Lá está ele outra vez ... nós conhecemos bem isto, que diabo.

Banho na aberta, sem perigo. O mar começava a entrar e fazia uma piscina agradável, com a água a uma temperatura nada habitual.

Regresso pela borda de água, em amena cavaqueira. O pescador já tinha partido e o mar batia com força, espraiando e convidando a andar na areia molhada. Conversa animada, quatro almas alinhadas na perpendicular e, de repente, uma onda vem de lá com uma violência que, por pouco, não leva todos ao chão. Foi preciso força nos pés e nas pernas para evitar que o caminho fosse o agueiro que desaguava lá bem no fundo. Um susto, um banho de água temperada com (muita) areia e a confirmação de que, afinal, quem conhece bem o mar é o pescador ...

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Figos

As felosas-brancas cirandam por toda a copa da figueira, saltando de ramo em ramo e comendo os maduros figos que por lá se vão dando. Passeiam-se pelos grossos troncos, ocupam as melhores folhas, saboreiam o melhor sol, resguardam-se na sombra divina quando o calor aperta.

Na parte de baixo, esvoaçam as fuinhas-dos-juncos, tentando subir o tronco sem nunca o conseguirem. Falta-lhes a força, e a capacidade de voar também é diminuta; sobra-lhes a fome e o medo de caírem da árvore. O controlo é apertado, as "donas" da figueira não admitem veleidades nem heroicidades, que o respeitinho é muito bonito e quem manda, gosta.

Mal nasce o Sol, as fuinhas ainda tentam aproveitar alguma distracção própria do acordar, e ensaiam subir, para alcançar um qualquer figo, mesmo que não dos de interior mais fofinho. Impossível. Há sempre alguma felosa bem acordada e vigilante que, com escarcéu e bater de asas, lhes retira qualquer entusiasmo e as obriga a contentarem-se com as pequenas migalhas largadas de cima.

E todos os dias se repete a cena de há milhões de anos: as felosas-brancas enchem o papinho e deliciam-se com o docinho dos figos bem madurinhos; as fuinhas-dos-juncos contentam-se com os restos, as sobras, os podres e os que, verdoengos, nunca chegarão a ter sabor.

O resto da passarada encara como normal que "enquanto uns comem os figos, a outros lhes rebentem os lábios",

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Papel

O embaixador Francisco Seixas da Costa diz hoje, no seu blogue "Duas ou três coisas", que deixou de comprar as "toneladas" de jornais que costumava adquirir, por altura das férias, à "menina da tabacaria".

Sem qualquer intuito de comparação, bem longe disso, também cá por casa vão rareando os jornais em papel, resumindo-se, por teimosia intrínseca, ao Expresso semanal, comprado no quiosque, e ao Jornal de Letras, à Gazeta das Caldas e à Visão que o carteiro (profissão em vias de extinção!?) vai trazendo, quinzenalmente, o primeiro, semanalmente, os outros dois. Mas a avidez da leitura desapareceu e o ritual tem tendência a copiá-la em breve, quando a coragem para quebrar a regra o permitir. 

As notícias hoje fervilham, são despejadas por todos os meios, repetidas até à exaustão ou até surgir um novo acontecimento mais apelativo aos olhos e aos ouvidos das audiências ávidas. Inúmeros "jornalistas" das redes sociais, das mensagens no telemóvel, dos mails, inundam-nos a todo o instante e despertam-nos a impaciência.  E com a grande "vantagem" de serem sistematicamente opinadas pelos grandes "sabões" de tudo o que acontece e de mais um par de botas.

É o progresso, a actualidade, o desenvolvimento, ou, como dizia a minha mãe, já não é o meu tempo ...

Vamos persistindo nos livros (hoje chegaram mais dois), muito por teimosia e porque esses não perdem actualidade e vão exercitando os "dez réis de caco" que ainda se mantêm à tona.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) Não falou do gatinho nem de qualquer outro tema. Nem se lembrou da mica, nem do artigo. Não era ninguém. Não encontrava palavras e ele parecia feliz por não ter de conversar. Quando acabou, Nino recostou-se na cadeira, oferecendo o peito pressentido na camiseta justa ao olhar de quem estivesse. O pescoço é que era mais curto. Depois agradeceu com os floreados habituais o guisado perfeito, nunca provara nada melhor. E lançou-se numa peroração pós-prandial, que dizia mais ou menos isto:

- Um fantasma não tem de ser necessariamente irreal. Pode ser tão real como tu ou eu. Eles têm é diversos graus de realidade, de densidade, cara Anna, e eu diria que, em média, o seu grau de realidade depende sobretudo da densidade que cada um de nós consegue atribuir-lhe. Há quem consiga criar fantasmas do nada, mas o melhor, penso eu, é ter uma base, uma espécie de primário, como na pintura. Se houver um primário, uma cor unida, que nos empape a tela, a partir daí é mais fácil criar uma imagem. Ela é segura, é duradoura. Há quem considere que ver fantasmas é sinal de loucura. Mas na verdade todos somos fantasmas uns dos outros.

Anna calou-se, percebeu que tinha ali pano para mangas, no fundo pareceu-lhe banal o que ele dizia, no que precisou de sofisticação para aceitar ideias muito batidas pelo tempo - apenas porque vinham dele. De tudo o que dissera, ela escolheu sentir-se como alvo de uma crítica à sua devoção. Nino subtraía-se, mais uma vez, ao sentimento falso que nela imaginava com tanto empenho uma verdade qualquer, uma <<relação>>. Do ponto de vista estritamente filosófico, a teoria do fantasma não era convencional.(...)

Afastar-se
Luísa Costa Gomes
D.Quixote (2021)

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Bolas de Berlim

O "São Pedro" que tem a seu cargo a gestão climática do Oeste deve ter-se distraído com a abertura decretada e não cumpriu a determinação "primeiro de Agosto, primeiro de Inverno". Porém, rapidamente se apercebeu do lapso e mandou chover na noite e na manhã do dia 2, ainda a tempo de que a grande maioria dos veraneantes desta região não se apercebesse da imperdoável falha e não o recriminasse como é costume. Marques Mendes não o irá, assim, incluir no seu comentário semanal, por "três razões" fundamentais, que afinal, contando bem, até são quatro.

Vazia, a praia. Até o vento quis estar ausente. A chuva da noite e do início da manhã abandonou a região, com o "rabinho entre as pernas", que ninguém brinca com  o Oeste. Mas o objectivo tinha sido conseguido. A "fauna" da manhã ficou em casa, a tratar das limpezas ou a recuperar do sono adiado.

Havia pescadores. Mas estes são determinados pelas marés e nunca pelo tempo.

- Ainda era escuro quando cheguei. Mas não dá nada ... tenho ali uma douradita e é um pau! Daqui a pouco começa a vazar, acabou.

- Mas não há peixe?, pergunta o "nabo" que, dele, só percebe no prato, e pouco.

- A Lagoa não vaza bem, a porcaria do fundo não chega ao mar e o peixe não vem à costa, anda lá longe.

Explicação aprendida e apreendida, caminhada de regresso à cadeira, livro nas mãos. Já não faltará muito para o regresso a casa, dando lugar à "fauna" da tarde.

A menina das "bolinhas" aparece, um pouco atrasada em relação à hora habitual.

- Fui "fazer" as unhas. (exibe um verde azulado ou um azul esverdeado, não sei bem). Ainda não vendi uma ...

Vendeu, claro. São óptimas. Até as que vieram para casa já marcharam, não fosse azedarem...