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segunda-feira, 21 de julho de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Por recomendação de uma amiga da minha mulher, enfarinhada em gozos acessíveis à bolsa, marcámos férias no hotel da FNAT na Foz do Arelho. Face à minha irresolução Noémia trataria de tudo, não desistindo de me estimular entretanto com projectos e projectos durante a estadia. Era para ela como se nos deslocássemos em veraneio à Côte d'Azur, ou aos Mares do Sul, e uma prodigiosa aventura se abrisse à nossa frente. Preparou quatro malas com o conveniente ao efeito, mudas de roupa, toalhas e óculos escuros, duas almofadas insufláveis, e o inevitável bronzeador. Além disso incluiria para mim uma trousse de latex que, e ainda à antiga, denominava <<o maillot>>, e uma indumentária para ela, estampada com uma minudência de palmeiras e ananases, e expondo-lhe com modéstia algumas zonas do corpo, à qual chamava <<o fatinho de sol>>.

Aquilo transformar-se-ia porém num desterro insuportável, desprovido da papelada que significava a coluna dorsal dos meus dias, e por isso encolhia-me num amuo acidulado. Mantinha-me à sombra do mastodôntico edifício que tresandava aos restos acumulados das insípidas refeições, e votara um ódio sem fim à mera ideia das ardências do areal. Quanto aos hóspedes, e referindo-me primeiro aos do sexo masculino, arrastavam-se em tardes e noites de campeonatos de sueca, ou de king, e os mais velhotes tombavam de borco, ora taralhoucos, ora ensonados, sobre as perdas do dominó. Relutantes a desvendar as misérias das banhas, as idosas mães de família sentavam-se em perpétuo num minúsculo banquinho de madeira, tapando os joelhos com uma écharpe de chiffon, no intuito de que não lhes devassassem as coxas branquíssimas. As novas em conclusão falazavam sem parança, e todas a um tempo só, acerca de coisas e loisas, e entre contos e ditos.

Certa vez, e como se condescendessem em nos oferecer um lauto presente, trouxeram para nos divertir um cantor de olheiras cavadas, carpindo em boleros os seus dissabores de corno inato, mas levantando atrás de si os haustos das fãs sem aconchego. Setembro chegado, dera de assobiar um ventinho barbeiro que enregelava até mesmo os intrépidos, e sempre que eu procurava fugir a tão triste desconchavo, topava nas traseiras do casarão com as cozinheiras, e as respectivas ajudantes, fardadas como pessoal de enfermagem, mas de bata encardida, que lavavam à vassourada os panelões do seu ofício. Regressei espavorido, enjoado por um travo de enxúndias moídas, e temperadas em excesso. De tripa assanhada, ora pelos comeres que empanzinara, ora pela cólera para que não descobria refrigério, jurei e trejurei, e muito contra o silêncio de Noémia, jamais repetir o esquema balnear. (...)"

Cruzeiros de Inverno
(Menina sentada)
Mário Cláudio
D. Quixote (2025)

domingo, 3 de setembro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Verónica percorre as áleas da clínica, exibindo a segurança da superintendente de um goulag e arvorando por regra a doce satisfação do dever cumprido.

A especialista de saúde mental ocupa-se dos recém-admitidos com ostensivo empenhamento em os ajudar, e nesta primeira fase prescinde da neutralidade do código, chegando a tratar quem dela precisa por <<minha querida>>, ou por <<meu bom amigo>><<Minha querida>>, toma ela assim as rédeas do roteiro terapêutico da bibliotecária, <<eu mesmo tenho experienciado o pânico, nenhum de nós está a coberto disso, e ainda que se declare ele uma única vez na vida.>> Preparada em tais moldes a receptividade da doente, Verónica expande-se neste discurso imparável, dobrando o busto sobre o tampo da secretária do gabinete onde a atende agora, molemente aluída na poltrona de couro. <<Vou confiar-lhe um segredo>>, participa ela, e investe, <<um segredo que nem aos mais próximos me atrevo a confessar, há uns anos, submetida a uma intervenção cirúrgica, de correcção do septo nasal, verifico posteriormente nunca mais me recompor, enjoos e vertigens, sinais precursores de um inferno que não tarda a abrir-se-me, manifestado por alterações de marcha, por uma espécie de repentina paralisia geral, e como se alguém me amarrasse com cordas invisíveis, além da decorrente impossibilidade de descerrar os lábios para comer, ou para falar, em suma, a conturbação dos mecanismos vitais, dominados por uma vontade muito superior à minha.>> Verónica afasta o busto do tampo da secretária, assume a posição erecta, introduz ao computador umas quantas mudanças medicamentosas na ficha da internada, levanta-se com solenidade, acaricia os cabelos descuidados da que dela depende, e dá por terminada a consulta.(...)"

Teoria das Nuvens
Mário Cláudio
D. Quixote (2023)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) A ideia de uma peregrinação a Roma, empreendida por uma viúva alemã em era de turbulência religiosa, poderá desafiar um narrador de histórias de qualquer época e local. E se se aduzir que nos achávamos no fim da Primavera de mil quinhentos e trinta e quatro, e que Martinho Lutero afixara as suas negregadas teses dezassete anos antes no portal da Igreja do Castelo de Wittenberg, núcleo donde eu, a referida senhora, iria partir, obteremos um quadro em que se revelará tarefa simultaneamente árdua e fascinante introduzir alguma acção.

Eis que o Reformador continuava entretanto, e tal e qual como hoje, a exprimir a sua arrogância, quer contra o Papado inamovível, quer contra os fanáticos anabaptistas.

Seriam várias as semanas de preparativos aturados, visando a bem dizer uma quase mudança de residência para um país diferente, na qual eu acabaria por investir aquilo que me assistia ainda de meios de fortuna, e de energias do corpo. E naquela loucura senil, ou naquele ímpeto redentor, sentia-me por vezes à beira da assinatura de uma sentença de morte. Recrutei quanto consegui de batedores, criados e guardas, reuni os animais de tiro e carga indispensáveis, e acumulei arcazes sobre arcazes, de mantimentos e roupas, de armas de ataque e defesa, de peças de mobiliário, e de artigos de botica. E convidei a querida Susanna, amiga de sempre, para me acompanhar na expedição em que figuraríamos como as únicas mulheres. Quanto às relíquias que me cumpriria negociar, tendo obtido para o efeito a promessa de mediação do cardeal Cajetan, distribuí-as pelos falsos engenhosamente praticados nos múltiplos caixões de transporte da bagagem.(...)"

Tríptico da Salvação
Mário Cláudio
D. Quixote (2019)

sábado, 3 de julho de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

(...)"A emigração da rapaziada do lugar, à qual se associa um ocasional homem maduro, suspensa entretanto pelas expectativas desencadeadas pelos cravos, prossegue a inalterado ritmo. Justificando-se a saída, já não com a ausência de horizontes, mas com a imprecisão destes, abalam agarrados ao princípio que adoptaram, e que se sintetiza na constatação em voga, <<Aqui há confusão a mais!>> Não partem tão futricas como antigamente, e rebocando uma mala fechada, com cordas traçadas, mas de calça e casaco de jeans, e com uma sacola de bom couro ao ombro. Ontem pôs-se na alheta um irmão da rapariga, e uma semana antes viera despedir-se um sobrinho da idosa. Acabaram-se os adeuses dramáticos, calando-se choros e gritos, e selando-se em definitivo as bolsas lacrimais, ao estabelecer-se a absoluta certeza de que <<na nossa era desaparecerem as distâncias.>>

O meio da tarde, alcançado ao termo de um esparso convívio com os livros, reestrutura-se-me à chegada da merenda, tisana de hortelã e pão com manteiga. Recebo a bandeja sem me erguer da poltrona, e com o monte de manuscritos a meu lado, cobertos de pó, e picados pelas faúlhas libertadas da lareira. A manta que me tapa as pernas cheira que tresanda ao óleo da salamandra que acendo, sempre que o calor da lenha se mostra insuficiente. Mastigo como posso, emborco com cautelosa demora aquilo que me põem à frente, e regresso às recordações da mulher no tempo em que ela habitava a Casa."(...)

Embora eu seja um velho errante
Mário Cláudio
D. Quixote(2021)

terça-feira, 7 de março de 2017

Livros (lidos ou em vias disso)

Mais um excelente livro de Mário Cláudio, desta vez especulando sobre a vida de Camões e sobre um pretenso trapaceiro que pretenderia apoderar-se da obra do poeta.

"(...) Lá me surgia de tempos a tempos alguém que evocava os passos lisboetas do nosso homem, mas bem mais os chocarreiros do que os literários, com exclamações deste recorte, e proferidas entre torpes risadas e piscadelas de olho, "Que valdevinos!","Que borrachola!", "Que putanheiro!". E abstinha-me portanto de descrever o meu convívio com o vate, poupando-me à reposição de baboseiras quejandas, e preferindo não me capacitar da rapidez com que em Portugal se arquivam os maiores, a fim de os festejar muito depois nos ossos que deixaram, sempre que isso convém aos que mandam, e às vezes aos que obedecem.(...)"

E mais à frente:

"(...) Mas o que sobremaneira me deixava boquiaberto era que a gentalha que se cruzava com semelhante monstro, aceitando-o cegamente como Luís de Camões, nem por instantes adquirisse consciência de falcatrua tamanha. A população de Lisboa não reparava na fantochada, ou fingia não a compreender, arrebatada por essa forma de inércia lusa, e recorrente em vário tempo e lugar, nos termos da qual se mostra preferível a mentira que desresponsabiliza à verdade que sobressalta.(...)"

Os naufrágios de Camões
Mário Cláudio
D. Quixote (2016)

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Livros (lidos ou em vias disso)

(...)

À secretária do gabinete da casa demolida, agasalhando-se na manta, fareja o relento da linhaça de que se fabrica o escaldante emplastro que lhe colocam em cima do peito, e procura distrair-se dos seus incómodos na esperança daquilo que no fim da doença se contém, e que consta destas linhas, (...)

Mas quando a bronquite se lhe assanha, faz-se necessário colar-lhe às costas aqueles copinhos de vidro com uma chama azul lá dentro, denominados "ventosas". E por mais que se controle não pode evitar os berros com que reage à tortura do fogo que lhe queima a pele, e os que o seguram recomendam-lhe calma, e enganam-no com esta frase, sempre a mesma,

"Pronto, pronto, já acabou!, pronto, pronto, já acabou!

Das ventosas nunca mais o velho ouve falar, nem das papas de linhaça, às quais dão também o nome de "sinapismos". De resto, e com o agravamento da sua bronquite, substituem-lhe estas mezinhas clássicas pela modernidade da penicilina, e submetem-no ao tratamento de choque que consiste em aplicar-lhe sete dezenas de injecções a intervalos de três horas, e tanto de dia como de noite. E já nem ousando gemer, consente entre enfado e sono nestas palavras que o humilham pela comiseração das suas misérias,

"Ai, coitadinho dele!, está como rabinho tão picado!, não há lugar para mais uma pica!".

Astronomia
Mário Cláudio
D. Quixote (2015)