terça-feira, 30 de novembro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Como homem da lavoura, Lisboa deveria fascinar-me. Seria como sair da caverna e bater à porta da civilização, largando atrás milênios vencidos, marcados pelo nós das adversidades. No entanto, a ostentação dos ricos, as fachadas suntuosas dos casarões diziam-me que seus cofres enchiam-se com as moedas produzidas por nossa labuta.

Diante do desalento social que nos imprimia a pobreza, o avô aceitou finalmente que o neto, só após sepultá-lo, tentasse a sorte em Lisboa, com a finalidade de livrar-se das agruras do arado, das estações ingratas. E obedeci, fiz o sacrifício de permanecer ao seu lado na terra natal.

- Acato sua fantasia, Mateus. Mas o Infante não passa de um fantasma que invadiu seu coração.

Finalmente chegara a Lisboa, aventurei-me a molhar as mãos nas águas do Tejo, esperando que as tágides, as ninfas de Camões, espraiassem benefícios para este lavrador. Mas de nada valeu. Seguia desprotegido a andar pelos becos, a identificar uma e outra colina da cidade, a pôr-me diante do Castelo de São Jorge, visto do Mirador de São Pedro. A conhecer a Baixa, sobretudo o Paço. Para ver de perto os janotas lisboetas, os pobres cujos andrajos clamavam por ajuda. Aturdidos como eu pela fome e pelo frio, enquanto os ricos recém-instalados nos bairros do Alto, no Chiado, na adjacência do Príncipe Real, exibiam os últimos modelos de Paris.

Que infortúnio ser quem éramos. Condenados ao cotidiano insalubre, desprovidos de prazeres, desprezados pela nobreza e pela burguesia que se fortificavam à medida que empobrecíamos.

A memória soçobrava, não ficava de pé. Eu duvidava se de facto estava em Lisboa, ainda não atracara no Cais do Sodré, que identificava. Assim, havendo saído há semanas da aldeia, das trilhas das ovelhas nos montes, fugido das pressões históricas da estrada real, das vilas e das cidades, cruzando rios de barcaça devido aos remadores que venciam as águas transportando passageiros e mercadorias, eu conseguira chegar a Lisboa.(...)" 

Um dia chegarei a Sagres
Nélida Piñon

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Deficiência auditiva

É imperioso e não me posso descuidar. 

Vou marcar uma consulta para um otorrinolaringologista, com a maior urgência. Não vai ser fácil, tal a procura que, nesta altura, deve existir para essa especialidade. Os ouvidos são uma fonte de preocupação e essa não deve ser apenas minha. Ou têm cera ou já estão velhos, ou adoeceram de repente e estão com visões auditivas.

Parece-me ouvir coisas sem nexo, que não devem nem podem corresponder à realidade. Devo estar no mundo da Lua, porque não me embebedo nem tomo aditivos. Temo, até, que dos ouvidos passe à "moleirinha" e dê lugar a um desequilíbrio mental que redunde em internamento em Rilhafoles. Não é possível ter ouvido o que me pareceu. 

Espero, ansiosamente, que o médico dos ouvidos faça jus àquela especialidade tão musical e me garanta que não ouvi um "caramelo" a gritar "Deus, Pátria e Família" e trabalho, num congresso de um partido político. Acredito que ele me vai dizer que tudo não passou de um ruído de fundo, trazido pela 5G e sem qualquer significado, que a velhice valorizou e, afinal, não passa de uma balela. 

domingo, 28 de novembro de 2021

Farsa?

Juntava-se um magote e um gritava, com a bola debaixo do braço:

- Vamos jogar à bola?

Num qualquer campo improvisado, quatro pedras marcavam as balizas, os dois melhores do grupo escolhiam, alternadamente, os jogadores para as duas equipas. Não havia árbitro nem necessidade dele. Toda a gente se entendia a decidir se a bola tinha passado alta de mais e, por isso, não era golo, ou se aquela entrada mais dura ou a mão na bola eram merecedoras da marcação do livre. O número de jogadores variava consoante o número de "magotantes", com uma regra de ouro: se o número fosse par, as duas equipas ficavam com o mesmo número de jogadores; se fosse ímpar, um dos jogadores, determinado antes do começo, jogava uma parte em cada equipa. Era da "lei" que a igualdade de condições estava garantida e o resultado determinado pela habilidade de cada um e do conjunto de todos.

- Muda aos cinco e acaba aos dez!

Ontem nem um jogo de bola aconteceu. Por força de um surto do malfadado vírus, a equipa da B.SAD só tinha nove jogadores disponíveis para o jogo com o Benfica, a contar para o Campeonato Nacional de futebol profissional. A maior parte dos jogadores eram da equipa B e dois deles eram guarda-redes. O simulacro começou com onze contra nove, arremedou-se a primeira parte, no regresso do intervalo só vieram sete e, dois ou três minutos depois do recomeço, um deles lesionou-se (ou fingiu) e acabou-se, finalmente, a farsa. Os regulamentos determinam que os jogos não podem continuar quando uma das equipas fica com menos de sete jogadores. E os regulamentos são para cumprir, diz quem sabe. 

Mudei de canal assim que vi o simulacro a iniciar-se com duas equipas desequilibradas não pela qualidade dos seus jogadores mas pela quantidade. Vi o Palmeiras, treinado pelo português Abel Ferreira, derrotar o Flamengo por 2-1 e dar ao treinador a vitória na segunda Taça dos Libertadores, em dois anos seguidos, porque gosto de futebol.

Por cá, aquele simulacro talvez tenha servido para testar a qualidade da relva, das botas ou das redes. De jogo não teve nada ...

Vergonhoso! 

sábado, 27 de novembro de 2021

Ómicron

(Décima quinta letra do alfabeto grego, utilizada para designar a nova variante do vírus)

Podiam ser diamantes ou exemplos da vida de Nelson Mandela. Podiam ser laranjas ou uvas, frutas que também por lá há, de alta qualidade. Mas não é nada disso. Parece que já se encontra entre nós uma nova variante do vírus que há dois anos nos acompanha e atormenta, e que terá vindo da África do Sul sem ter a devida autorização, sem ter sido convidada, sem visto nem passaporte e sem necessidade de atravessar o Mediterrâneo num qualquer bote de borracha para cá chegar.

Os cientistas ainda não têm posição definitiva sobre a perigosidade desta variante mas, pelo pânico plasmado (não fui eu que escrevi este "palavrão") na comunicação social, tudo indica que se aproximam, de novo, dias difíceis. 

Discute-se, agora, a vacinação das crianças e continua a assobiar-se para o lado em relação à caterva de negacionistas que, sempre de acordo com as notícias, parece ser a que ocupa mais camas nas enfermarias e nos cuidados intensivos.

Não tenho nada contra a liberdade de cada um, antes pelo contrário. Acho, até, que todos devemos poder fazer o que nos dá na real gana, sem dar satisfações a ninguém e muito menos às autoridades ... desde que não colidamos com o outro. E surge a pergunta: como se sentirá alguém a quem a sociedade facultou os meios necessários à sobrevivência depois de, ela mesmo, se ter recusado submeter-se à vacinação preconizada para o bem de todos?

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Indultos

"Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe"

O "Zé" sabe bem que o estabelecido na sapiência dos adágios corresponde, quase sempre, ao que a vida nos proporciona durante a passagem, efémera, que por ela realizamos.

Por muito boa que seja a coisa, não é provável que se mantenha igual para todo o sempre, sofrendo altos e baixos como as ondas do mar. Também, normalmente, o mal tem um fim, demorando mais ou menos, consoante a sorte de cada um.

Exemplo disso é o caso de João Rendeiro, coitado. Teve de fugir do país, está algures em parte incerta exercendo a sua função de consultor para sobreviver, usufruindo de praia, com água quentinha quase de certeza, que o homem já não tem idade para se banhar em águas parecidas com as do nosso Oeste. O ditado cumpre-se: a vida era óptima mas, por culpa de alguém que não o próprio, houve problemas e a justiça desatou a persegui-lo impiedosamente, embora nunca o tivesse conseguido "enjaular". Apesar dos recursos confeccionados por ilustres causídicos, o homem, de acordo com o que explicou em entrevista na inauguração da CNN Portugal, foi obrigado a fugir à (in)justiça que gente sem quaisquer escrúpulos lhe destinava. E lá abalou, imagina-se com que sacrifício, na esperança de reaver o bem e esperando que o mal acabe. Pesaroso, como aparecem sempre estas vítimas, lamentou não ter consigo a companheira, que por cá ficou por amor às três cadelinhas, que não sobreviveriam sem o seu conforto.

Perante os factos, não há argumentos e surge a dúvida: a companhia aérea impediu a viagem das 3 cadelinhas por falta de passaporte ou, no país de destino, só admitem cadelas?

Não há mal que nunca acabe ... e o indulto pode ser a solução. O PR referiu que, neste ano, o prazo para apresentar o pedido tinha terminado em Julho. Mas todos os anos há indultos. Pode muito bem acontecer em 2022 e o melhor é apresentar já o pedido, não esquecendo de invocar o bem-estar das cadelinhas, argumento na certa fundamental para uma decisão favorável.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Palavras bonitas

DISFARCES

Eu sou o tigre dos versos
a raposa da saudade
o leopardo adverso
nele buscando o inverso

da escrita no seu disfarce

Eu sou o lince dos verbos
a pantera em sua arte
o desespero do falcão
a águia do vento norte

no desvario da razão

Estranhezas
Maria Teresa Horta
D.Quixote (2018)

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Canas

"Faz a festa, deita os foguetes e corre a apanhar as canas."

E faz muito bem. A festa dura dois ou três dias, os foguetes um minuto, no máximo, entre pegar-lhe, acender a mecha, vê-lo subir e ouvir: PUM!

A cana não. Tem utilidade. Não só a dos foguetes, utilizada para ajudar as plantas a crescer, amparando-as com todo o carinho, dos crisântemos às sardinheiras, dos brincos-de-princesa aos gladíolos, das rosas aos cravos túnicos. A cana-da-índia, por exemplo, era usada na escola como ponteiro, para assinalar no quadro as coisas mais importantes, e na cabeça de cada aluno, quando situava a serra do Larouco no Alentejo, o rio Mira no Minho ou o apeadeiro da Amieira na Beira Baixa. E a cana grossa? Um regalo. Servia como cabo da gancheta que impulsionava o arco nas corridas, ou para fingir um duelo diabólico, com espadeiradas de laivos ancestrais. Os mais habilidosos conseguiam até fazer flautas e delas extraíam sons, incipientes, é certo, mas que davam uma grande alegria pela conquista "impossível". 

Como os tempos mudam. Hoje a cana é um flagelo para o ambiente, nomeadamente junto aos rios, em cujas margens cresce sem qualquer controlo, abafando e destruindo toda a vegetação, fundamental para a conservação das margens. De vez em quando cortam-na sem lhe sacar a raiz, e ela, teimosa, regressa em pouco tempo. É terrível, essa cana!  

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Não há duas sem três

Pouco passava das onze e meia quando cheguei. A função estava marcada, com o habitual preciosismo, para as 11H55. Um amigo, que me tinha feito companhia há seis meses, tinha marcação para as 11H54. Com este rigor, ia ser canja ...

Havia, talvez, uma dezena de pessoas para ser atendida na entrada. De papéis na mão, a mesma funcionária de há seis meses lutava com as dificuldades que a ordem alfabética lhe proporciona. A indicação da hora facilita-lhe o trabalho e, para as 11H55, só havia duas marcações. Foi fácil.

Preenchido o questionário por uma outra funcionária, mergulho no local de vacinação. Com dificuldade, consigo um lugar na bancada (o peão estava cheio), onde irei aguardar não sei quanto tempo. A ansiedade de ouvir o seu nome afecta, talvez, mais de duzentas pessoas, que preenchem completamente os lugares disponíveis, sem quaisquer intervalos nem distanciamento social. Bem prega Frei Tomás ...

- Tinha marcação para as dez e ainda aqui estou.

Nota-se que a organização é expedita: deslocam-se várias pessoas nos dois sentidos, com papéis na mão e ar de quem não consegue resolver o problema. O médico, que faz a cronometragem do recobro e acudirá a algum contratempo, está agarrado ao telemóvel, parecendo que o jogo será interessante. Interrompe para registar no cartão a hora a que o vacinado irá sair. Verifiquei isto quando me calhou a mim. Na hora em que voltei, apagou o que havia escrito e disse, com uma voz reveladora do enfado e do frete que estava a fazer:

- Pode sair ...

E eu, cumpridor, saí. Duas horas depois de ter entrado, volto à rua e respiro o ar fresco da mata. O almoço está à espera e os braços levam no seu interior a vacina para a gripe, no direito, e a terceira dose da Covid, no esquerdo. A enfermeira, simpática, disse, rindo-se:

- Deviam vir todos vestidos como o senhor. A maioria parece uma cebola.

domingo, 21 de novembro de 2021

Sarjetas

A chuva está a chegar, de acordo com os avisos do Serviço Meteorológico. Mesmo sem esses avisos, toda a gente que por cá anda há uns anitos sabe que, nesta altura, mais dia menos dia, ela chegará e com a força que gosta de trazer na época natalícia.

E "vem-nos à memória uma frase batida": ainda não limparam as sarjetas! Coitadas. Passam nove meses ou mais a ser caixote do lixo, sem regras, depositárias, desde as mais horrendas porcarias até à chave que caiu do bolso e, tinha de ser logo ali, naquele bueiro horrível, nem vale a pena tentar procurar, minhas ricas mãos. O homem das chaves faz outra num instante e até nem é caro.

As sarjetas são desprezadas, ignoradas, desconsideradas. Ninguém lhes liga e nem para elas olha. Não se reconhece a importância que têm na sociedade e na vida de todos e de cada um. A ingratidão do costume.

Há dias, nos trabalhos de alcatroamento de que as ruas do meu bairro têm beneficiado, um dos agueiros foi ignorado e a camada de alcatrão tapou-lhe completamente a frontaria e tirou-lhe a utilidade ... futura. Estou convicto que, um dia destes, alguém há-de passar e verificar que houve asneira. Mandá-la-á corrigir e lá virão dois ou três operários, armados de "pá e pica", para solucionar o problema.

Se a chuva chegar entretanto e acontecerem águas fortes pela rua abaixo, teremos a brilhante e costumeira conclusão:

- Pois, não limparam as sarjetas!

- Já estamos habituadas. É todos os anos o mesmo. E a culpa é sempre nossa, que nos sujamos todas e gostamos muito de folhas de plátano. 

sábado, 20 de novembro de 2021

Sina

O fim da tarde aproxima-se e o dia de trabalho chegará ao fim com o pôr do Sol. No Inverno, acontece mais cedo e proporciona um horário mais suave, para quem labora ao ritmo da luz que vem do céu e o torna azul, mesmo que acinzentado pelas nuvens.

Ferramenta às costas, por cima da saca de capuz, o caminho até casa ainda é longo. Faz-se com vontade e com conversa com os parceiros da luta diária. Trocam-se banalidades, coscuvilhices, acabam forçosamente no tempo. E se chove?

Chover significa descanso, é verdade, mas também ausência do pagamento no final da semana. E o dinheirito faz muita, muita falta. O homem da loja já não abre o livro. Mau feitio ... não lhe custava nada. Só mais uma parcela, que diferença fazia, benza-o Deus. Sempre se comia algum bacalhau, as couves estão ali à mão e a estragar-se.

Não choveu! A semana correu bem, houve trabalho todos os dias e, no sábado, já noite bem escura, a jorna foi paga. Apetecia ir à tasca comprar uma "ciganinha" de tinto, mas não se pode fazer a vontade ao corpo. Habitua-se mal e, depois, só quer descanso e bom trato. Bebe-se a água-pé, que já está turva mas ainda marcha.

As notas, velhas, são guardadas no bolso do colete, as despedidas "até segunda", com o boné na mão, para manter viva a esperança de que a próxima seja tão boa quanto esta. Chegado a casa, entrega a "féria" à "chefe". Será ela que, na segunda-feira, irá pagar a dívida ao homem da loja e pedir-lhe para abrir mais uma folha no livro. Tem mais lata e, se houver recusa, uma lágrima escorrerá pelo canto do olho, coisa impensável para um homem a sério.

A vida continuará, sem alterações. Sina minha, pensou, e foi deitar-se. Estava cansado!

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

À laia de balanço

Foi a pandemia que motivou a assiduidade do escrevinhador e, desde 16/03/2020, tem aparecido um registo diário para a posteridade, seja lá isso o que for. A esperança de que tudo passasse rápido era a mola da vontade e, afinal, já lá vão mais de vinte meses. E a saga parece ter tendência para continuar.

Não assinei nenhum contrato nem retiro quaisquer benefícios desta "actividade", a não ser o puro gozo pessoal e a ambição (desmedida?) de um dia escrever, em letras garrafais, "a epidemia acabou". Ainda não é oportuno. 

A esta hora está a decorrer mais uma reunião dos técnicos para informação dos decisores políticos sobre a situação actual e do que se prevê vá acontecer no futuro próximo. Estive atento ao início, mas desliguei nem cinco minutos tinham passado. Dispenso aqueles salamaleques com que toda a gente inicia a respectiva exposição. Se as entidades presentes tivessem de responder aos cumprimentos todos, talvez o protocolo deixasse cada um ir aos "finalmente" e os dispensasse dos "entretanto". Verei o resumo, que será difundido com comentários de "tudólogos" a fundamentarem tudo e o seu contrário, e evito o massacre daquelas reverências a tudo e a todos. 

Pelo andar da carruagem, o Inverno trará mais dissabores e preocupações, embora permaneça presente a esperança de que as consequências não terão a gravidade anterior. Ainda por cima, as previsões apontam para a chegada do vento e da chuva, retirando do nosso convívio este sol maravilhoso e o céu azul, que tanto contribuem para a boa disposição. Não se adivinham grandes dias, diria o pessimista. Vai tudo correr bem, responderia o optimista. "Entre les deux, mon coeur balance".

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Divagações sem nexo

A terra não era muito grande, embora aos olhos dos passarinhos parecesse enorme. Pintassilgos, felosas, rouxinóis, toutinegras, pardais, melros, tordos, verdelhões, tentilhões, todos achavam que aquelas terras não tinham fim nem a comida alguma vez havia de escassear mais do que já estavam acostumados. 

Os passarões, grandes, que voavam muito mais e bem mais alto, sabiam que a terra e os recursos eram finitos e, inevitavelmente, iriam acabar. Era importante estarem precavidos e terem presente que um segredo é muito difícil de manter mas, neste caso, era fundamental não o deixar violar, como acontece no da justiça. 

Apesar de voarem alto e não se misturarem com aqueles que, por força das circunstâncias, apenas conseguem voar um pouco acima do solo, e nem sempre, era necessário garantir que as notícias da morte anunciada fossem manifestamente exageradas (como a da morte do outro), para não haver alarmismos, nem gerar pânico ou revolta nos pequeninos.

Fez-se o plenário e toda a gente que nele participou disse de sua justiça e proclamou a necessidade imperiosa de resolver tudo, sob pena de os pássaros, grandes e pequenos, virem a ser dizimados. Os mais pequenos, com a representação que lhes cabe por força do tamanho, também tiveram direito a pronunciarem-se e a serem ouvidos, com algum desdém por parte daqueles que voam alto e percorrem grandes distâncias.

Ao fim de bastante tempo, a assembleia concluiu, de forma brilhante, que há necessidade de fazer qualquer coisa, alterar hábitos, costumes, meios ... mas não pode ser já.

Precisamos de tempo, proclamaram os grandes. Um dia destes, depois de estudarmos profunda e minuciosamente o assunto, convocaremos um novo plenário e decidiremos, todos, o que fazer no e pelo futuro.

À cautela, que o seguro morreu de velho, os pássaros grandes passaram a voar mais alto ...

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Aniversário de Saramago

Se fosse vivo, José Saramago completaria hoje 99 anos. 

A sua Fundação iniciou hoje as comemorações do Centenário do nascimento do Prémio Nobel da Literatura de 1998, que se prolongarão até Novembro de 2022. 

Resolvi também comemorar e fui à estante. Peguei na Viagem a Portugal, edição de 1997, autografado pelo autor em 24.10.1998, e reli parte do que Saramago escreveu, com o brilhantismo que se lhe reconhece, sobre as Caldas da Rainha. Algumas observações bem pertinentes e até a referência ao "dono" da minha rua (Costa Mota), entre outros ceramistas de renome, lá se encontram.

"(...) De manhã, nas Caldas, vai-se ao mercado. O viajante foi, mas não fez compras. O mercado das Caldas é para avios domésticos, não tem mais pitoresco do que isso. Em grande engano caem os turistas que indo de passagem vêem o magote de vendedores e compradores, tão ao natural, e irrompem excitadíssimos, enristando máquinas fotográficas, à procura do ângulo raro e do raro espécime que lhe enriquecerá a colecção. Em geral, o turista fica frustrado. Para ver comprar e vender não precisava de vir tão longe.

Onde se está bem é no jardim. Ao mesmo tempo íntimo e desafogado, o jardim das Caldas da Rainha é, para usar o nariz-de-cera, um lugar aprazível. O viajante senta-se por aqueles bancos, divaga ao longo das áleas, vai vendo as estátuas, naturalistas por via de regra, mas algumas de boa factura, e depois entra no museu. Abunda a pintura, embora nem toda se salve: o Columbano, o Silva Porto, o Marques de Oliveira, por quem o viajante torna a confessar rendida estima, o Abel Manta, o António Soares, o Dórdio Gomes, e alguns outros. E também, claro está, o José Malhoa: afinal, este homem foi excelente retratista e bom pintor de ar livre e atmosfera. Veja-se o retrato de Laura Sauvinet, veja-se o Paul da Outra Banda. E se se preferir um documento terrível, sob as aparências brilhantes da luz e da cor, olhe-se As Promessas por todo o tempo necessário até que a verdade se mostre. Estas pagadoras de promessas que se arrastam no pó requeimado pelo Sol são um retrato cruel mas exacto de um povo que durante séculos sempre pagou promessas próprias e benesses alheias. A dúvida que assalta o viajante é se José Malhoa saberia o que ali pintava. Mas isso importa pouco: se a verdade sai inteira da boca das crianças que nela não pensam como oposto da mentira, também pode sair dos pincéis de um pintor que julgue estar só a pintar um quadro.

Também nas Caldas da Rainha se deverão ver as cerâmicas. O viajante confessa que tem um sério amor por estes barros, e tão aberto que precisa de vigiar-se para não cair em tolerâncias universais. Não se toma por entendido na matéria, mas é familiar da D. Maria dos Cacos, do Manuel Mafra, dos Alves Cunhas, dos Elias, do Bordalo Pinheiro, do Costa Mota Sobrinho, para não falar de anónimos fabricantes que não punham marca nas suas peças e tantas vezes as modelavam magníficas. Se o viajante começa a falar de louça das Caldas, há o risco de levar o dia todo: cale-se pois, e siga viagem. (...)"

Viagem a Portugal
José Saramago
Caminho (1997) 

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Habilidade

Afigura-se necessário substituir a lâmina do X-acto. A instalada está tão curta que obriga a algum esforço para cortar uma folha de papel só com a pontinha que resta. Nem só de pontinha vive o homem e, por isso, abriu-se a gaveta da secretária na procura de uma lâmina que voltasse a colocar o instrumento como novo. A caixinha amarela que por ali  se achava meio esquecida seguramente há alguns anos, foi encontrada. Só uma? Estranho, mas parecia ser verdade. É possível. Não há já lembrança de quando foi a compra.

A tarefa de substituir nem sequer é difícil: retirou-se o encaixe, o que restava da lâmina saiu e foi para o lixo amarelo, que cá em casa recicla-se, a nova foi colocada no sítio mas ... não chegava ao fim, por mais força que fosse feita.

- Querem ver que ficou algum bocadinho da lâmina velha a impedir a passagem na abertura?

A averiguação efectuada confirma que não há qualquer impedimento a que a lâmina por ali passe. Será mais grossa? Não parece. Mira-se e remira-se a lâmina, tenta-se perceber se haverá algum engulho no instrumento, dada a sua provecta idade. Nada. Introdutor e receptor parecem disponíveis para a função comum, mas não conseguem a consumação do acto desejado: a lâmina introduzir-se no espaço a ela destinado, que se encontra bem aberto na barriguinha do X-acto.

De repente, milagre: há uma pequena fissura e, afinal, a lâmina nova são duas, tão coladinhas uma à outra que só uma observação muito minuciosa permitiu perceber. 

- Se a ranhura é apenas uma, como querias tu que entrassem duas?

Separação feita, acto concretizado sem mais problemas. O X-acto está a funcionar em pleno e disponível para, seguramente, trabalhar mais uns anos. Quantos, pouco interessa. O que não há dúvida é de que o material tem sempre razão! 

domingo, 14 de novembro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Não sou um especialista em literatura, muito menos escritor, e tenho extrema dificuldade em fazer crítica ou sintetizar um livro. Sou, e quero continuar a ser, apenas um leitor. Que já leu muito, que continua a ler diariamente e que raramente larga um livro sem chegar ao fim, ainda que contrariado ou com dificuldades.

Gosto de me manter actualizado com os autores que escrevem em português, para usufruir das subtilezas da língua, normalmente difíceis de serem conseguidas em traduções, e por me parecer que existem grandes autores na língua portuguesa, alguns dos quais passam ao lado das parangonas e dos críticos "encartados". Teresa Veiga, pseudónimo de alguém que não conheço e nem sequer sei se é homem ou mulher (como se isso tivesse alguma importância), é um deles. O seu último livro já foi lido e, tal como os anteriores, valeu a pena. 

"(...) Resolvi que ia esperar pela noite sentado num banco de jardim e escolhi um, meio escondido sob a ramagem de uma árvore, abrigado à sombra tutelar da torre da igreja, numa praceta sossegada onde não se viam cães nem crianças, longe do bulício do centro e com uma vista admirável sobre o mar por se situar no ponto mais alto da vila. Durante alguns minutos fiquei a ver o mar passar por vários cambiantes de cor até se aquietar e cobrir-se de uma capa cinzento-esverdeada, como se estivesse a preparar-se para acolher a noite e mergulhar no sono. Tarde demais, verifiquei que me enganara. Quase na minha frente, num outro banco que não beneficiava de vista de mar e que eu ignorara instintivamente, estava sentada uma mulher, completamente imóvel, que já lá devia estar quando eu chegara sem que me tivesse apercebido da sua presença.

Por acaso eu lera recentemente uma novela em que a protagonista era uma mulher com poderes maléficos que esperava o cair da noite para se refugiar num recanto obscuro e aguardar, no maior silêncio, que a vítima fosse sugada pela força centrípeta dos seus encantos. Encostada a uma árvore, ou sentada num muro, muito direita e de olhos baixos, olhava sem ver, aparentemente naquele estado de apatia que corresponde a um alheamento total da realidade. (...)"

O senhor d'Além
Teresa Veiga 
Tinta da China (2021)

sábado, 13 de novembro de 2021

Condução

Era sempre ela quem conduzia a carroça que o burro puxava, ligeiro na ida, cansado no regresso, quando as abóboras ou as batatas pesavam no lastro da viatura. Em outras vezes, a carroça ficava em casa e o burro era aparelhado com os dois cestos bem presos à albarda. A condutora, essa, nunca mudava. Em vez do banco e da mão direita descansando na bola do travão da carroça, aí vinha ela sempre sentada de lado, com as duas mãos segurando a arreata. Escarranchar na albarda era pose exclusiva de homem e só possível sem cestos. O burro era o transporte individual utilizado para as deslocações que não envolviam grandes cargas, fazendo o papel do actual automóvel citadino, com os cestos a servirem de porta-bagagens.

A motorista era exímia na condução, quer do burro enquanto "motor" da carroça, quer no asinino isolado, apesar de não ter carta de condução. Tinha uma licença para a carroça, confirmada com a chapinha esmaltada a branco e letras pretas, identificando o número de registo e a edilidade a que pertencia, afixada na parte de trás do veículo. O saber da experiência feito, alicerçado na transmissão cultural dos mais velhos, era a sua escola. Sem nunca ter passado por aulas de código da estrada, sabia bem como conduzir na sua mão, sem excesso de velocidade e sem violação das regras de trânsito que, à época, estava bem longe de ser caótico. Raramente andava a pé e o burro era o seu grande companheiro nas deslocações diárias para a fazenda, o mercado, o que fosse necessário. 

O marido, pelo contrário, era um pedestre empedernido. Com a enxada às costas, começava bem cedo a caminhada, primeiro até à tasca para o bagacinho da manhã, depois até à fazenda para tratar de garantir o sustento da casa. Ao fim do dia, o regresso tinha nova paragem na tasca, para o tintinho que abria o apetite para a janta. Era um homem comedido, de poucas palavras e muito trabalho, que não perdia tempo em conversas sem finalidade. Sempre que alguém lhe falava na extraordinária capacidade da mulher, os olhos riam-se e a boca exprimia com satisfação:

- Uma máquina! É pró burro e prá carroça!

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Pedrinhas

Tenho visto, nas raras vezes que presto atenção aos anúncios televisivos, publicidade ao regresso dos relógios Cauny. Quando era jovem, ainda bem longe de a "outra senhora" ter sido corrida, um Cauny no pulso significava compra no contrabando, provavelmente a alguém que, andando embarcado, trazia meia dúzia para distribuir pelos amigos, a preços módicos para a categoria da peça. Havia algum cuidado na divulgação de como tinha sido obtido e quem era o vendedor, incorporando sempre uma sucessão de amigos do amigo do amigo do amigo de um outro amigo cujo nome nunca se tinha ouvido.

Não parece ter sido o caso de alguns militares que integraram as forças da ONU na República Centro Africana, os quais, alegadamente, como soe agora dizer-se, trouxeram umas "pedrinhas"  e como elas fizeram milhões de euros em vez de as distribuírem pelos amigos. As notícias trouxeram a lume, inicialmente, os, de novo alegadamente, crimes cometidos por meia dúzia de energúmenos que, à primeira oportunidade, revelam o que são e como, descaradamente, não prestam, muito embora saibam marchar "à comando" e até berrar o "grito de guerra".

Todavia, e como é costume, o tema principal deixou de o ser e o importante passou a ser discutir se era obrigação de A contar a B e se C devia ter sido informado, do Presidente da República ao Primeiro-Ministro, se a informação devia ter chegado a este e àquele, quem sabe até se a culpa não é do soldado que estava de quarteleiro-dia quando aquela gentalha fez o espólio, porque não examinou devidamente as calças e não confirmou se por lá teriam andado as "pedrinhas".

Perdemo-nos sempre em ninharias, concentramo-nos no acessório e deixamos o essencial. Parece não restarem dúvidas de que o culpado de haver alguns ladrões na tropa é o Ministro da Defesa e também o CEMGFA, que deviam ter descoberto a falta de carácter desta gente antes de os admitir e de lhes mandarem pagar o ordenado.

Tudo indica que, pelo menos, o Ministro terá de ir responder ao Parlamento por não ter contado aos sete ventos que havia averiguações em curso. Os, sempre alegadamente, ladrões, poderão invocar o direito ao silêncio e ficarem caladinhos frente ao Juiz.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

S. Martinho

Em dia de S. Martinho
Vai à adega e prova o vinho!
 
Mas é melhor teres cuidado,
O piso pode estar molhado! 

Será que o piso molha o cuidado
Ou o "D" foi mal colocado?
 

Aviso colocado no parque de estacionamento da Praça 5 de Outubro 

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Ida às compras

Vai com frequência ao supermercado, sempre munido da lista das necessidades e preocupado com os preços, aos quais presta a melhor atenção que consegue. A vida está cara e não há lugar para luxos.

Não sendo uma tarefa que adore, o Carlinhos procura desempenhá-la com a maior eficiência, atento às novidades, às promoções, à qualidade do que compra. Respeita as regras, lê os rótulos, sempre atento ao que ouve e ao que vê, tentando ficar a par do que aparece de novo e errar o menos possível.

Depois dos iogurtes, do pão e da uva, da manteiga e dos pistachos (guloseima a que se arroga ter direito), passou pela secção de charcutaria, para comprar o queijo fresco, de que gosta bastante e é muito bom naquele supermercado. Tirou a senha de atendimento. Aguardava a sua vez e os olhos foram passando pelos produtos expostos, da mortadela ao chourição, dos torresmos às salsichas. Uma peça de fiambre, enorme e intacta, despertou-lhe a atenção, não só pela dimensão como pela etiqueta, também ela enorme, que a peça exibia:

Fiambre da perna extra

Ficou intrigado. Parecia fiambre normal, feito de forma normal, proveniente de porco normal. Mas, por vezes, as aparências iludem. Perna extra? Querem ver que, com estas modernices todas, alguém da Web Summit tem uma empresa unicórnio que consegue produzir porcos com cinco pernas e que a extra dá uma melhor qualidade ao fiambre ou tem maior e melhor produção? Esteve à beira de perguntar, mas encolheu-se na sua timidez habitual. 

Recebeu o queijo, ainda comprou pasta de dentes e cominhos e lá foi à sua vida, depois de pagar a conta, beneficiando dos descontos dados pelo cartão. No caminho encontrou um amigo e passou-lhe as suas dúvidas.

- És parvo ou quê? Isso é a qualidade do fiambre, que é extra, não é a perna ...

Sempre a aprender, concluiu para si e rumou a casa. 

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Não me canso de dizer, por aqui e em todo o lado, que adoro a forma como António Lobo Antunes escreve, que o considero o melhor escritor português vivo e um dos maiores de sempre.

Faltando livro novo, julgo, a editora D. Quixote publicou um novo livro onde reúne 164 crónicas já publicadas nos cinco volumes anteriores às mesmas dedicados e 9 inéditas. O livro tem prefácio do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Muito embora a minha preferência vá para os romances, as crónicas são, também, excelentes. Dispõem bem, são escritas com um gosto e uma leveza "do outro mundo", lêem-se de uma penada e versam sempre temas que mexem connosco. Para além disto tudo, são escritas de forma sublime.

Recordações da casa amarela

(...) A Mãe da Senhora, a quem também jamais escutei um som

(não desesperem que os barulhos vêm a seguir)
 
levava o ano lectivo a fazer crochet num banquinho de lona sob a macieira, e a sua função consistia em deixar-me sonhar que se morresse não havia escola durante uma semana. Enquanto lá andei infelizmente nunca morreu, apesar de uma bronquitezinha cujos progressos eu acompanhava com desvelo e esperança, e aposto que continua a fazer crochet em qualquer escola de arrabalde e a sofrer de uma bronquite que não se decide para desespero dos alunos. A Senhora, filha desta perversa tartaruga centenária, casada com o Senhor André, tinha bexigas

(uma desgraça nunca vem só)
 
ensinava a primeira e a segunda classes e não me ligava peva: só por isso, na minha opinião, merecia o marido e as borbulhas. O Senhor André ocupava-se da terceira e da quarta, era careca, sovava-nos com abundância e método ao estalo, à reguada, a pontapé, e enfiava-nos a tabefe pela cabeça adentro as serras do sistema Galaico-Duriense, o ramal da Beira Baixa e os rios de Moçambique. Exemplo: Peneda (estalo), Soajo (estalo), Larouco (estalo), Gerês (estalo), e assim sucessivamente

(assim sucessivamente era uma das suas expressões favoritas)

como quem crava pregos na parede à martelada.

As aulas deste pedagogo iniciavam-se de acordo com um ritual imutável: o Senhor André chegava, nós levantávamo-nos, o Senhor André sentava-se, nós sentávamo-nos, o Senhor André tirava pêlos do nariz, nós não

(o Senhor André era a criatura com mais pêlo no nariz que imaginar se pode, e eu supunha que em lugar de miolos possuía no interior do crânio um piaçaba que não parava de crescer)

e após a sua colheita de cerdas que ele lançava com desprezo para o chão esfregando o indicador no polegar, ordenava ao Nicolau

(o Nicolau era ruivo: existe sempre um ruivo em cada turma)
 
procurando trocos na algibeira Ó Nicolau vai-me comprar um maço de Três Vintes. O Nicolau partia a trote livre de recitar as ilhas dos Açores, um frémito de ciúmes do Nicolau percorria a turma que amansava os ditos ciúmes dando caneladas no Nicolau durante a hora de almoço, e enquanto esperava que o dito Nicolau lhe trouxesse o cancro o Senhor André chamava o Vasconcelos ao quadro e aplicava-lhe uma bofetada mesmo antes de começar a lição, porque conforme nos explicava com a sua subtil frontalidade era a melhor forma de poupar tempo dado que o Vasconcelos não estudava. Na realidade nunca se soube se o Vasconcelos estudava ou não estudava porque o Vasconcelos nem conseguia abrir a boca: mal chegava ao raio de acção do Senhor André já estava a bater com a testa no quadro. O quadro caía, o Vasconcelos leva um biqueiro suplementar por ter derrubado a ardósia, a seguir ao Vasconcelos era a vez do Norberto, (...) 

As crónicas
António Lobo Antunes
D. Quixote (2021) 

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Selo branco

O objectivo era marcar a escritura de habilitação de herdeiros, que já andava há mais de um ano para ser concretizada. As orientações sobre a pandemia sugeriam/determinavam que todos os assuntos não urgentes fossem adiados, por razões sanitárias e porque uma parte dos funcionários estava em teletrabalho e muitos outros em tele.

A melhoria das condições e o regresso à quase normalidade fez tomar a decisão de ir tratar do assunto. "Bicha" à porta, indicações dadas pelo voluntarismo de quem chegou primeiro e aguarda.

- Se é registo predial, entra a seguir a mim ...

Quem assim falou era da "arte". Tinha várias pastas na mão, carregadas de documentos, na certa muito preciosos. Ia-se entretendo a jogar no telemóvel, até que saiu um homem e lhe deu indicação para entrar. O palpite estava certo. Era da "arte". Demorou por lá mais de uma hora. Os assuntos eram muitos e deviam ser complicados. Mais de duas horas depois da chegada, surgiu a indicação para penetrar. Finalmente ... 

Na pasta improvisada ia a certidão do registo predial, a caderneta predial, a certidão de óbito e o comprovativo do imposto de selo, tudo obtido nos serviços respectivos, via Internet.

- O documento do imposto de selo não está assinado.

- Obtive-o na página das Finanças, na minha área pessoal. 

- Pois ... mas tem de ser assinado. Vá às Finanças, para eles assinarem.

É perto e bom caminho.

- Venho da Conservatória. Eles dizem que este documento tem de ser assinado aqui.

- Pois ... mas nós não assinamos documentos da Net. Tem de ser uma certidão ...

A certidão foi feita no momento e o seu custo liquidado, como é óbvio. Capeava o documento igual ao que tinha sido apresentado, mas tinha assinatura, garantida pelo selo branco, que não precisa de tinta e é a chancela da autenticidade.

A escritura foi marcada. Agora já não falta o papel assinado ...

domingo, 7 de novembro de 2021

Distâncias

Eram tio e sobrinho, donos de considerável fortuna em terras situadas em concelhos diferentes, e viviam a cerca de trinta quilómetros um do outro. Para a época era uma distância significativa, embora não fosse essa a causa de não se verem e falarem há vários anos. Uma zanga enorme, sobre negócios, tinha dado origem a esse afastamento e ambos sabiam que seria muito difícil eliminá-lo. A teimosia era uma qualidade que ambos cultivavam com denodo.

Os anos passaram e o tio, já viúvo e velho, sem filhos e apenas com aquele sobrinho como família, sentiu a saúde a ir embora e o fim a aproximar-se. Resolveu quebrar o orgulho e, à falta de telemóvel ou sequer telefone, chamou um servo e disse-lhe:

- Vais à quinta do meu sobrinho e dizes-lhe que eu quero e preciso de falar com ele. Com urgência.

O homem aparelhou o burro e fez-se à estrada. O caminho era longo, o recado importante e o tempo urgia. Chegou à quinta por volta da hora do almoço, do senhor, claro, que ele tinha levado um bom naco de pão e um bocado de chouriço, num saquinho de pano onde "morava" a garrafinha que o patrão tinha enchido do seu tonel particular. A tarefa era delicada e mereceu atenção especial de quem ordenava.

Depois de dizer ao criado de fora, que o recebeu, quem era e ao que vinha, aguardou um bom bocado no largo fronteiro à porta de entrada, até que viu surgir o sobrinho. Vinha com cara de poucos amigos e, sem demoras, despejou a frase, sem sequer responder com uma pequena saudação à retirada do boné e ao cumprimento reverencial:

- Diz lá ao senhor meu tio que é tão longe daqui lá como de lá aqui.

No dia seguinte, o tio deslocou-se ao tabelião da vila e fez testamento a favor do seu feitor.

sábado, 6 de novembro de 2021

Eleições

No Expresso de hoje, como sempre, António demonstra a sua categoria e confirma que "uma imagem vale mais que mil palavras".

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Dissolução

Marcelo Rebelo de Sousa confirmou o que já tinha antecipado e marcou as eleições para 30 de Janeiro de 2022. Nesta decisão está implícita a dissolução da Assembleia da República, faltando apenas a divulgação da data em que isso acontecerá. Os deputados estão, neste momento, a prazo incerto, sem saberem quando deixarão de receber o ordenado. Deve ser uma angústia profunda, que poderá levar alguns à depressão e a terem dificuldades no final do mês para liquidarem os compromissos.

"É preciso que mude alguma coisa nem que seja para que tudo fique na mesma"

PSD e CDS vão aproveitar estes tempos para tentarem arrumar a casa, muito embora seja uma tarefa ciclópica  e para a qual não parece existir mão-de-obra suficiente em número e muito menos em qualidade. PCP e BE ainda estão a digerir a "refeição" e a desejar ardentemente que o tempo "lave" o acontecido e limpe a memória. O PS anseia que o desgaste natural de seis anos de poder, com "cabritadas" várias e "habilidades" desnecessárias, não aleije muito e permita continuar as tarefas normais e as que a "bazuca" proporcionará. Os outros contam pouco, se não chegarem surpresas de última hora.

Não há qualquer drama por haver eleições. Dramático seria se voltássemos aos tempos em que não existiam ou eram meros simulacros, como era norma no antigamente. Espera-se que as "guerras" aqueçam e "piquem" para a deslocação às urnas todos aqueles que têm votado no partido Abstenção. Seria bom para todos, ganhadores e derrotados.

Depois ... ver-se-ão os resultados!

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Lisboa

Um passeio junto ao Tejo, com visita à renovada estação fluvial do Terreiro do Paço, uma almoçarada num excelente restaurante junto a Santa Apolónia, um convívio com amigos e o último livro de Germano Almeida autografado pelo próprio, no final do repasto. Eis o resumo de um dia bem passado na capital, marcada pelo imenso trânsito e pelas longas filas para os autocarros. O Metro esteve de greve e assim permanecerá até ao final do dia, talvez para que todos os trabalhadores possam ouvir a comunicação ao país do PR, Marcelo Rebelo de Sousa.

Germano de Almeida, simpático como sempre, informou, sem tabus, que vai regressar dentro de dias a Cabo Verde e só voltará a Portugal lá para a Primavera de 2022. Talvez nessa altura traga notícias sobre um novo livro que, por enquanto, ainda nem em pensamento existe.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Notas

Havia a preocupação de separar todas as notas que se apresentassem deterioradas, escritas, borratadas, e de as retirar da circulação. Na maior parte das vezes os clientes nem se apercebiam desse trabalho, a não ser que o estado das mesmas fosse de tal maneira catastrófico que surgissem dúvidas sobre a sua valorização na totalidade pelo Banco de Portugal. Quando tal acontecia, a nota era contabilizada numa conta de transição e, posteriormente, o cliente seria ressarcido pelo montante atribuído pelo Banco de Portugal, normalmente valores entre os 50 e os 80 por cento, consoante a degradação.

Apareciam as situações mais díspares: rasgadas nas pontas, coladas com fita-cola, descoloridas pela acção das máquinas de lavar, cosidas com linha, com nódoas de óleo ou de azeite, com uma variedade imensa de frases, mensagens de amor, votos religiosos, preces e desejos.

Recordo, ainda hoje, uma quadra que deu brado, quando surgiu ao ser efectuada a recontagem de um maço de notas de 20 escudos. Tinha passado despercebida no recebimento do depósito, por a nota estar em excelente estado. A quadra estava escrita no branco da marca de água, com letra pequenina e bem desenhada. O poeta escreveu o seu desejo e pretendia que a nota servisse para o proclamar aos sete ventos:

" Vai-te, nota ingrata,
Por esse mundo sem fim ...
E diz às notas de mil
Que não se esqueçam de mim! 

A nota não cumpriu a missão, mas o verso ficou bem guardado na memória.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Melros

Os melros são, desde sempre, o meu pássaro de eleição, como já por aqui referi várias vezes.

O preto das suas penas, o amarelo do bico, a forma como voam, a subtileza com que se deslocam no solo, o seu cantar, tudo me delicia. E esse prazer compensa o ódio que tenho aos que, indevidamente também chamados de melros, são oportunistas, vigaristas, crápulas e todos os adjectivos que cada um saiba para definir gente sem escrúpulos. Mas vamos ao que interessa ...

A oliveira está carregadinha de azeitonas, como nunca tinha acontecido. O dono não as apanha e o vento encarrega-se de as ir atirando para o chão, à medida que amadurecem. Os melros deliciam-se, primeiro a medo, depois e à medida que confirmam que o sossego permanece, a tranquilidade instala-se e o repasto acentua-se. Se se aproxima alguém, a pé ou de carro, levantam voo com o silvo característico do aviso para algum mais distraído. 

Passado algum tempo, eles aí estão de volta ao "lagar", para continuar a festa. Lembro-me dos "ataques" que sofriam as bagas dos loureiros, mas às azeitonas nunca tinha visto e a satisfação é a mesma de sempre. Só me falta perceber se a azeitona é comida inteira ou se lhe retiram o caroço.

Até os melros que voam estão diferentes, ao contrário dos outros, que continuam iguais ou ainda mais refinados.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Dia de Todos os Santos

Há alguém a quem passe pela cabeça ser este dia consagrado a mim e a muitos outros tão "diabinhos" quanto eu.