quarta-feira, 31 de março de 2021

Vida(s)

Não sei, em concreto, onde vive. Ali para os lados do quartel, mas ao certo, certo, não consigo dizer. O antigo "bairro da lata", como era conhecido nos anos sessenta do século passado, é hoje o Bairro de S. Cristovão. Já não tem barracas, as ruas estão alcatroadas e têm nome, e está agora a sofrer uma intervenção municipal que tornará a sua entrada mais atraente para os que lá vivem e para os que por lá passam. Bem perto do Bairro fica o pinhal, antigo, onde fiz algumas simulações de combate quando a instrução militar me passou pelo corpo. Um pouco mais à frente (ou antes, dependendo do sentido), a ESAD, que aproveitou as instalações do antigo Hospital de Santo Isidoro, recuperou-as e ampliou-as, e fez uma escola de artes, hoje pólo conceituado e atractivo para muitos jovens artistas, que todos os anos trazem à cidade a sua irreverência e a sua especificidade de intervir. 

Quase me perdi em divagações, quando o que pretendia era escrever duas linhas sobre ela. Terá quarenta, cinquenta anos, talvez menos. Mais não, que se assim acontecesse, atiraria para a minha geração e estaria no "arquivo". Tem problemas, visíveis, de álcool e outras adições, traz sempre um saco às costas, com um conteúdo que desconheço e nem faço a menor ideia qual seja. Já a encontrei sentada no estacionamento do supermercado, a dormitar e quase de certeza a sonhar. Hoje vinha andando, meia trôpega, com os olhos a quase saírem das órbitas e a olharem, perdidos, o infinito. A pele, acobreada, tem rugas bem marcadas do "castigo" que carrega. O corpo não é gingão mas abana como se a ventania o fustigasse sempre. Terá família? Recusará ajuda? Como sobrevive?

Lembro-me disso sempre que a vejo. E que faço? Nada! "Alguém" tem obrigação ... 

terça-feira, 30 de março de 2021

Encomenda

A compra foi feita há quase um mês. No correio electrónico de confirmação era dito que, face às circunstâncias que se vivem, a entrega só aconteceria no dia 30 de Março, entre as oito e as catorze horas. Sem problema, disse para mim. As obras vão demorar algum tempo e, nessa altura, ainda estarão a decorrer. A aplicação da placa é das últimas coisas a fazer.

Há três dias, uma mensagem confirmou a entrega entre as oito e as catorze, referindo que "em caso de ausência poderá ser cobrado valor para novo agendamento". Sem problema, pensei de novo. Nesta fase, não há obrigações que não possam ser alteradas ou adiadas, isto se existirem. Haverá alguém em casa, para evitar novo agendamento.

A manhã corre, sem novidades a não ser a do sol, que se esqueceu de aparecer. Deve ter ficado em casa a aguardar alguma encomenda ... Findo o almoço, o "postigo" chama para o café. Não hão-de chegar nestes dez minutos ... O telefone toca. Um número esquisito, começado por 300. Atendo uma senhora, com um português do Brasil bem acentuado.

- É o sinhô Orlando? Vou graváre a chamada.

- Sim, sou eu. E quem é a senhora? Vai gravar o quê?

- É sobre sua encomenda. Não vai chegá na hora, mas vamo entregá até às dezesseis. Pode sê?

- Sim, claro. Obrigado. 

- Obrigado nois.

Ainda aguardo, mas deve estar a chegar. Uma organização destas não falha! 

segunda-feira, 29 de março de 2021

Quotidiano

Como toda a gente, não tenho um passado imaculado e fiz muitas asneiras, algumas que recordo, muitas outras que caíram no arquivo impenetrável por vontade própria, auto-defesa ou mesmo esquecimento puro. Ainda hoje, com todo o saber da experiência feito, é raro o dia que não cometa erros, faça coisas indevidas ou das quais me arrependo mais tarde. 

Por isso, cada vez tenho mais dificuldade em suportar os que se consideram infalíveis, têm sempre a solução na ponta da língua e, cúmulo, dominam todos os temas. E também aqueles que, perante a evidência do erro cometido, procuram os argumentos mais incríveis que o justifiquem e lhe dêem, até, credibilidade. E ainda aqueles outros que, do alto da sua "sapiência", tentam mostrar à saciedade e à sociedade que a "divina providência" lhes facultou os recursos, únicos, para "pregarem" a forma e o conteúdo da vida dos outros, como se só a cabeça deles funcionasse e apenas os seus olhos vissem as cores do quotidiano, do passado e do futuro.

Quando isto me acontece e me surgem estes seres sobredotados a indicarem o caminho, o "computador" apela à memória e traz à tona o Cântico Negro, de José Régio:

(...) Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí.

domingo, 28 de março de 2021

Livros lidos (ou em vias disso)

Chegou na quarta-feira passada, com a assinatura do autor, prémio por ter sido adquirido em pré-venda. Passou à frente dos que estão na fila por a chegada ter coincidido com o final de Tahirir, de Alexandra Lucas Coelho, e por o autor ser um dos meus preferidos da actual geração de escritores portugueses.

Está a justificar a ultrapassagem. É uma biografia romanceada de Rui Nabeiro, o homem de Campo Maior que hoje completa 90 anos. 

(...) Foi ao entregar a vasilha que a minha mãe me prometeu a nata. Eu conhecia já o desenvolvimento desse gesto, não era a primeira vez. Entrei em casa e sentei-me à mesa com as minhas irmãs, a pequena não estava ainda farta de brincadeira. Sopa de feijão com massa, a minha mãe sempre de pé, a ir de uma tarefa para outra, acabámos de comer em silêncio, as sombras engrossavam nos cantos. Mas a pequena ainda estava esperta, não pensava em sono, e a minha irmã Cremilde fazia-lhe a vontade, as suas vozes a desmontarem-se até serem risos e, sem esforço, a transformarem-se outra vez em vozes. Recolhida a loiça, quando fui buscar o caderno da escola e me sentei à mesa, arrumado ao candeeiro de petróleo, a minha mãe deu ordem às raparigas para irem para o quarto, não se importaram, sabiam que lá estariam mais soltas. O carvão do lápis, no papel, sob a luz do candeeiro, penumbra, era feito de sombra, escrevi letras com sombra. O tempo, a minha mãe e eu, todos os objectos de cozinha.

E, há poucos minutos, voltei a guardar o caderno, os trabalhos terminados, aptos para o olhar do professor e, imediatamente, os sons do alumínio e do esmalte, a vasilha de alumínio a verter o leite para o púcaro de esmalte. Apercebo-me ainda do momento em que arrumei o púcaro às brasas, a raspar o chão de cinzas, ao lado da cafeteira com água que está sempre encostada ao lume. Esse momento aconteceu e está ainda a acontecer, existiu o ponto em que tudo era nesse momento, e existe este ponto arrastado em que é um eco, imagem desfiada, composta por notícias em que só agora reparo.

Interrompendo um raciocínio, de repente, como se me quisesse apanhar desprevenido, o leite sopra um arrufo e lança-se; mas os meus reflexos são imediatos, inclino-me e puxo o púcaro. A minha mãe dá conta desse gesto. Tem tudo preparado, abre a lata do café. (...)

Almoço de Domingo
José Luís Peixoto
Quetzal (2021)

sábado, 27 de março de 2021

Dia Mundial do Teatro

Comemora-se hoje o Dia Mundial do Teatro apenas com as peças trazidas para o ecran, que funcionam por não ser possível outra usufruição. Sabe a sopa sem sal ou a torrada sem manteiga, mas é o possível. Há vários espectáculos que podem ser vistos a preços simbólicos e alguns, até, de forma gratuita. 

Mas o teatro precisa de público, do apagar das luzes, da entrada em cena, dos aplausos, do regresso dos actores ao palco, já "despidos". Hoje não pode haver nada disso. Acalenta-se a esperança de poder estar para breve o regresso ao teatro ao vivo, em sala ou em espaço aberto.

Para assinalar a data, fica um extracto da Farsa de Inês Pereira, escrita em 1523 por Gil Vicente, por muitos considerado o pai do teatro português. A grafia segue o acordo ortográfico da época e o conteúdo mantém a actualidade possível.

(...) Escudeiro

Antes que mais diga agora,
Deos vos salve, fresca rosa,
E vos dê por minha esposa,
Por molher e por senhora;
Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzella,
Que vós sois, minha alma, aquella
Que eu busco e que desejo.

Obrou bem a natureza
Em vos dar tal condição,
Que amais a descrição
Muito mais que a riqueza.
Bem parece
Que a descrição merece
Gozar vossa fermosura,
Que he tal que da ventura
Outra tal não s'acontece.

Senhora, eu me contento
Recebervos como estais;
Se vós não vos contentais,
O vosso contentamento
Póde falecer no mais.
(...)
Autos e Farsas
Gil Vicente
Colecção dirigida por Vasco da Graça Moura

sexta-feira, 26 de março de 2021

Atrás do tempo, tempo vem

Chega ao fim mais uma semana. A Páscoa está à porta, sem festas nem ajuntamentos, que as notícias chegadas "lá de fora" não são nada animadoras e o exemplo do Natal ainda está bem fresco na memória.

A caminhada não se afigura com fim à vista. Tem mais semelhanças a um percurso circular, sem meta marcada, do que à maratona sempre referida, mas da qual todos desconhecem a distância a percorrer.

Passado mais de um ano, continuamos a assistir a uma infinidade de opiniões, algumas com nexo, outras perfeitamente dispensáveis, por vazias de conteúdo ou por mais não serem do que tentativas de colocar "egos" em bicos de pés, procurando agarrar o "céu" a que nunca pensaram chegar. 

Tudo isto acontece, realçado pelo vigor frenético dos títulos e "apimentado" com imagens constantes da seringa a picar o braço e da zaragatoa a invadir o nariz.

Valha-nos a certeza de que o tempo não pára e o Verão está quase a chegar ...

quinta-feira, 25 de março de 2021

Liberdade escurecida

O sol já deverá estar a esconder-se no mar da Foz do Arelho, naquele movimento de luz alaranjada (não confundir com laranjinha) que, para quem sabe de fotografia, proporciona imagens lindíssimas. 

Como a partir da meia noite já não se poderá transitar entre concelhos, estou com algum receio que ele não arranje documento justificativo e, amanhã, não apareça e a escuridão nos atinja a todos. Claro que não vai acontecer, apesar das minhas dúvidas. O sol preocupa-se com todos nós, sabe da nossa necessidade de vitamina D, apesar da ocupação que carrega de andar lá nos céus noite e dia atrás da lua, como diz a cantiga. Ele anseia que as nuvens não o toldem, se ajustem e afastem, deixando-nos o azul e o quentinho, que bem merecemos, se nos portarmos bem.

E portar bem significa usufruir vibrantemente da nossa liberdade, cuidando sempre de a domar para que não prejudique nem colida com a dos outros.

De acordo com as notícias, ontem foi dia de escuridão completa no Tribunal de Odemira. Um julgamento foi adiado porque o pacóvio que presidia queria toda a gente sem máscara, por achar que o uso da dita lhe violava a liberdade. Felizmente, parece que já alguém se impôs e mandou a figurinha para casa aprender os ditâmes da função que lhe estava cometida.

Talvez ainda vá a tempo de fazer a quarta classe de adultos, para que não se diga que o analfabeto conseguiu chegar a juiz ...

quarta-feira, 24 de março de 2021

Primavera

O meu amigo ADS partilha comigo muitas coisas, de entre as quais algumas subtraídas desse grande armazém arquivador que é a Internet. A boa música faz muitas vezes parte dessas partilhas e eu, de tão habituado que já vou estando a esses mimos, cometo muitas vezes a indelicadeza de nem ops agradecer.

Ontem recebi uma animação da Primavera, de António Vivaldi, que muito me agradou. Entrei no arquivo, encontrei várias, mas não há amor como o primeiro ...

Aqui fica, para meu deleite e de todos os que apreciam boa música, acompanhado de expressivos desenhos "falantes".

terça-feira, 23 de março de 2021

Vícios

O café mantém-se "postigado" e a ida não é uma aventura embora ofereça sempre algumas curiosidades, impensáveis há uma ano. Já poucos se lembrarão, mas a entrada nos cafés era completamente livre e havia sempre clientes e conversas com fartura.

Estavam seis pessoas na fila, ainda que pouco passasse das 13 horas (os velhos refeiçoam cedo). Alguma impaciência na espera que o gong desse sinal de entrada. Dos seis, apenas dois beberam café. Os outros quatro procuraram a fortuna, adquirindo raspadinhas que a Santa Casa oferece, pagando, claro. A ansiedade era grande e a prática, via-se, imensa: já cá fora, na mão esquerda o segredo do papel ou o papel do segredo; na direita, a moeda que talvez descubra a sorte.

Ninguém voltou à fila, seguindo o seu caminho sem quaisquer manifestações de júbilo. Verdade se diga que também não me pareceu que ficassem muito desgostosos. Já devem estar habituados a que a sorte não os bafeje.

Amanhã voltarão e eu terei, de novo, companhia distanciada, como convém, e a fila a determinar a entrada para o café do "postigo". 

segunda-feira, 22 de março de 2021

Tempo

Já não lembro com precisão quando foi e porque foi, mas tive o primeiro relógio bastante novo. Talvez doze ou treze anos, o que, na época, era um grande privilégio. Foi oferta do meu pai, por certo para premiar algum feito escolar que devo ter realizado e mereceu a recompensa.

Nunca mais deixei de usar relógio, primeiro no braço esquerdo e aí por volta dos 18 anos, no braço direito, por me parecer mais fácil de consultar. Já passaram pelos meus braços muitos exemplares, desde os que exigiam corda manual, diária, aos que o balanço do braço mantinha "vivos", aos mais recentes, sofisticados e impiedosamente certos, desde que a pilha estivesse em condições, situação que se resolvia com uma simples ida ao relojoeiro, para substituir.

Esse instrumento arcaico chamado relógio foi substituído no passado dia 19, Dia do Pai ou dos Pais, como parece ser chique dizer agora. Os meus netos ofereceram-me um monitor de actividade física. Não é um relógio, mas dá as horas de todo o mundo; tem calendário perpétuo, que sabe quais são os meses de 30 e os de 31 e não tem dúvidas sobre quando o Fevereiro tem 29 dias; conta todos os passos que dou e transforma-os em distância, sem necessidade de agrimensor; mostra as pulsações e diz-me quantas horas dormi e destas, quantas foram de sono profundo; analisa o stress diário e ainda deve fazer mais coisas, que irei descobrindo. De tudo faz estatísticas e elabora gráficos. Se eu pretender, até me avisa quando o telefone toca ... sem o Matos Maia, claro, que esse era do antigamente!

E lembrar-me eu que o meu avô usava um "cebola" no bolso do colete, preso num botão do mesmo por uma corrente de "prata" e que o polegar e o indicador muito labutavam naquela carrapeta para o manter "vivo".

domingo, 21 de março de 2021

Primavera dominical

Dia da Árvore, Dia da Poesia e um dia de sol, lindo, e com pouco vento. Um passeio matinal, uns trabalhos em casa, umas páginas lidas de um dos (muitos) livros que ambicionam ser lidos, os olhos passados por alguns jornais. Paragem mais cuidada no P2 do Público e na habitual crónica de Carmen Garcia, com o título "O meu pai esteve na guerra" que, como sempre, vale a pena ser lida, pela objectividade, pela clareza e, sobretudo, pela sensibilidade que a autora coloca nos seus textos.

A ginjeira está em flor, bonita como são todas as flores, e até a abelha se aproveita disso. Os melros, visita assídua do quintal, já devem "lamber o bico" pelas ginjas que hão-de nascer e que irão saborear em primeira mão.

nada pode ser mais complexo que um poema

organismo superlativo absoluto vivo,

apenas com palavras,

apenas com palavras despropositadas,

movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,

nada mais do que isso,

música,

e o silêncio por ela fora 

Servidões
Herberto Helder
Assírio & Alvim (2013)

sábado, 20 de março de 2021

Vocabulário

Sou "cliente" do blogue Duas ou três coisas, que o embaixador Francisco Seixas da Costa mantém com informações diárias, quase todas de excelente gosto e conteúdo. Ontem deparei-me com um conjunto de vocábulos, muitos deles que nunca tinha ouvido, publicados no jornal brasileiro Folha de S. Paulo, por Mariliz Pereira Jorge. O objectivo foi, julgo, encontrar palavras para definir aquele que preside ao país de Chico Buarque, de Machado de Assis, de Jorge Amado, de João Cabral de Melo Neto, de Clarice Linspector, de Caetano Veloso, de Maria Bethânia e tantos outros. 

"Ignóbil. Basculho. Baixo. Repugnante. Canalha. Deplorável. Mesquinho. Patife. Ordinário. Reles. Pulha.Sórdido. Torpe. Velhaco. Abominável. Detestável. Ralé. Biltre. Infame. Bandalho. Aberração. Calhorda. Desprezível. Pífio. Ignorante. Vil. Ribaldo. Soez. Jacodes. Cafajeste. Bronco. Inculto. Boçal. Néscio. Estúpido. Rude. Verme. Desgraçado. Maldito. Jumento. Monstruoso. Sádico. Burro. Insensível. Mentecapto. Demónio. Desalmado. Incapaz. Covarde. Crápula. Incompetente. Doentio. Sociopata. Peste. Idiota. Energúmeno. Reaça. Desequilibrado. Imoral. Rato. Mandrião. Beócio. Abjecto. Descarado. Pusilânime. Enxurro. Choldra. Gentalha. Labrusco. Desrespeitoso. Cruel. Facínora. Atroz. Maligno. Cafona. Execrável. Infando. Nefando. Abominável. Inclemente. Mau. Sicário. Viperino. Tirano. Impiedoso. Desumano. Malfeitor. Celerado. Estrupício. Chorume. Louco. Escroto. Lixo. Inútil. Escória. Ogro. Mitômano. Ególatra. Tosco. Verdugo. Mentiroso. Asno. Babaca. Déspota. Autoritário. Morte. Opressor. Tapado. Mandão. Autocrata. Desnecessário. Safardana. Prepotente. Abusivo. Injusto. Reacionário. Fascista. Cínico. Animal. Desaforado. Histrião. Grosseiro. Vulgar. Malandro. Inconveniente. Sujo. Sem-vergonha. Obsceno. Brega. Charlatão. Perverso. Monstro. Ditador. Embusteiro. Horrível. Desnaturado. Carrasco. Egocêntrico. Mariola. Salafrário. Imbecil. Lunático. Bufão- Garganta. Farofeiro. Farsante. Oportunista. Indefensável. Broxável. Carniceiro. Irresponsável. Excrementíssimo. Marginal. Praga. Traiçoeiro. Criminoso. Terrorista. Asqueroso. Cu de boi. Podre. Capiroto. Embuste. Lazarento. Indecoroso. Desmoralizado. Imprudente. Maléfico. Parasita. Delinquente. Seboso. Coisa-ruim. Quadrilheiro. Arrombado. Mau-carácter. Frouxo. Fracassado. Ressentido. Obtuso. Boçal. Brutamontes. Cavalgadura. Descortês. Lorpa. Pateta. Cretino. Parvo. Pacóvio. Inapto. Desqualificado. Pequi-roído. Genocida."

O português é uma língua riquíssima: tantas palavras para designar um parvalhão!

sexta-feira, 19 de março de 2021

Dia do Pai

O meu pai dizia. com frequência que:

- É bom chegar a velho mas não é bom ser velho.

Tinha toda a razão, acrescento eu. Faria hoje 99 anos.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Devaneios assertivos

Da sabedoria popular:

Bem prega Frei Tomás. Faz sempre como ele diz, nunca como ele faz

Quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita

Não basta à mulher de César ser séria, é preciso parecê-lo

Cão que ladra não morde

Livrar de cão que não ladra e de homem que não fala

Fui à minha vizinha, envergonhei-me. Vim para casa, remediei-me

Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal

No poupar é que está o ganho

Quem muito dorme pouco aprende

Quem vê caras não vê corações

De Peter Drucker:

Gerir é fazer certas as coisas; liderar é fazer as coisas certas

quarta-feira, 17 de março de 2021

Barber Shop

A caminho do barbeiro, não encontro ninguém conhecido. Passam por mim meia dúzia de pessoas, bem mais novas e apressadas. No parque de estacionamento havia lugares "à fartazana". A actividade da cidade ainda está muito longe do normal. Muitas lojas do pequeno comércio ainda permanecem fechadas e isso causa algum desconforto ao passar, lembrando o Fulano, o Sicrano, o Beltrano que, à vista, estão "mortos".

O meu amigo C. está a funcionar "ao postigo" e falou comigo à porta. Ninguém entra para comprar nem para dois dedos de conversa. Estávamos nisto, enquanto eu aguardava a minha hora marcada e o barbeiro despachava o freguês anterior e desinfectava tudo, quando apareceu um cliente. Queria ver canas de pesca, embora a actividade de pescador amador ainda esteja interdita.

- Tem alguma ideia?, perguntou o C.

- Queria ver ...

- Não pode entrar. A polícia passa muitas vezes e, se estiver lá dentro, aplica-me uma multa. Vou trazendo para aqui, para ver se gosta ...

O barbeiro, que fica em frente da loja do C., chamou-me. Estava na hora de me sentar na cadeira e de cortar a guedelha.

Já mais leve, voltei à conversa com o C.

- Vendeste a cana ao homem?

- Não. Talvez volte quando a pesca voltar a ser permitida. Hoje até nem foi muito mau. Vendi um saco, entreguei quatro cofres (para as armas) e tive algumas promessas...

O dia está a acabar. As poucas pessoas que (ainda) andam na rua, vão recolhendo à casinha. Espera-se um amanhã melhor, mas não vai ser fácil ... 

terça-feira, 16 de março de 2021

Futuro

Faz hoje um ano que coloquei aqui o primeiro texto sobre o "bicho". Também passam hoje 47 anos do levantamento do "meu" RI5, que serviu de prólogo ao 25 de Abril. Uma poeta que muito admiro - Natália Correia - deixou-nos também neste dia, há 28 anos.

Porém, como a vida não é feita de passado e sim das portas abertas para o futuro, o meu neto GRANDE, que ainda não tem 15 anos, fez isto, apenas com um telemóvel.


E ainda há quem diga "no meu tempo" ...

segunda-feira, 15 de março de 2021

Ao postigo

Postigo - s.m. 1. pequena porta secundária, aberta numa muralha, fortificação, etc. 2. janelinha em portas ou janelas, para se olhar quem bate, sem as abrir; espreitadeira. 3. m.q. Guiché 4. m.q. Portinhola ('de coche') 5. pequena janela 6. abertura no tampo dianteiro de tonel ou pipa (pelo qual se faz a limpeza) 7. mar Tampa com que se fecham vigias, gateiras, etc., em embarcações 8. mar m.q. Gateira ('abertura') etm. lat. posticum 'a parte posterior de uma edificação, porta dos fundos, porta escusa, quarto dos fundos, latrina, traseiro, nádegas'.

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
2003

De acordo com as regras do confinamento, o café de hoje foi ao postigo, sem pecado e com chávena própria, que nos copos de papel o sabor é muito, muito diferente.

Uma maravilha ... e soube tão bem!

domingo, 14 de março de 2021

Sol

Um dia de sol tão bonito, a cheirar a Primavera, merece uma voz maravilhosa e uma música a condizer.

Razões que a razão desconhece fazem com que uma grande artista pareça "banida" dos holofotes e das rádios do seu (nosso) país, na certa por a sua qualidade não estar ao nível das piroseiras que, todos os dias, nos invadem a casa sem quaisquer escrúpulos.

O "Amor a Portugal", em cerca de cinco minutos, numa interpretação soberba de Dulce Pontes, acompanhada brilhantemente pela Banda da Armada.

sábado, 13 de março de 2021

(Des)Confinamento

Foi divulgado, pelo Primeiro-Ministro António Costa, o calendário que determina a forma como, se tudo correr bem, iremos voltar à vida (quase) normal. Aconteceu no final do dia de quinta-feira, deu origem a inúmeros comentários, apoios e críticas de quem sabe do assunto e disse-se até,  "malevolamente", que o Presidente da República teria aproveitado a viagem a Roma para não falar ao país e  se descartar da decisão, prevenindo a eventualidade de alguma coisa correr mal e haver necessidade de voltar atrás. António Costa chamaria a esses rumores pura especulação e Marcelo Rebelo de Sousa viria, mais tarde, garantir que tudo tinha sido combinado assim, para que o encontro com o Papa Francisco não saísse prejudicado e os quinze minutos de audiência fossem diminuídos.

Cá por mim, velho apressado, telefonei ao meu barbeiro no final do dia de ontem, para não o incomodar nos trabalhos de preparação da reabertura, que deveria estar a levar a cabo, criando as condições para segunda-feira.

- Vai reabrir na segunda, não é verdade?

- Claro! Finalmente ...

- Guarde uma hora para mim. O cabelo está enorme. Pode ser à sua escolha, não tenho preferência e a minha agenda tem o dia livre ...

- Só na quarta-feira. Segunda e terça já estão completas. E só pode ser às 17H30. Posso marcar? Já tenho outra chamada em espera.

- OK. Quarta-feira, às 17H30. Até lá.

Conclusão: o cabelo cresceu a muita gente e houve muitos mais apressados do que eu. Não devem ser só velhos!

sexta-feira, 12 de março de 2021

Dentista

De boca aberta, deitado na cadeira enervante da estomatologista, oiço a conversa que se vai desenrolando entre a técnica e a ajudante. São jovens e têm algumas recordações que me são familiares, criando-me a vontade de participar, mas não posso. A concentração e as alterações que o meu sistema nervoso produz assim que entro naquele consultório, impedem qualquer raciocínio ou frase, para além do "sim" ou do "não", do aceno, do esgar ou do gesto.

O rádio, sintonizado na Antena 2, emite um som meio esquisito, que desperta lembranças às conversadoras.

- Parece o amola-tesouras.

- A doutora lembra-se?

- Lembro-me bem. Era miúda e a minha mãe dava-lhe as facas para afiar.

- E o "pitrolino", recorda-se?

- Isso não. Nem sei o que é.

- Era o homem da carroça, que vendia o petróleo e o azeite, avulso.

- Já só me lembro do azeite engarrafado e petróleo acho que nem nunca vi ninguém comprar.

Silêncio. A concentração no dente é completa.

- Está quase. Deve estar cansado de ouvir estas conversas sem jeito nenhum.

A mão sai do cinto e faz sinal que não há cansaço. A médica continua a sua tarefa, fala dos discos de vinil que o pai ainda tem, diz que se habituou a ler livros digitais e já não quer o papel.

- Até comprei um "ipad" especial, um "kindle". É espectacular.

Acabou! Há que sair da cadeira, agradecer, pagar e desejar às duas a continuação de um bom dia. Mais uma vez, aquilo que para mim é ontem, afinal já nem faz parte do imaginário da grande maioria.

A ida ao dentista correu muito bem e volto lá na próxima semana, para acabar o tratamento ... e ouvir!

quinta-feira, 11 de março de 2021

Regresso ... ao futuro

É comum a muita gente o reivindicar da experiência, do passado, a excelência dos seus atributos e a obra que realizaram, em contraste com a "incapacidade" das gerações mais novas, que nada sabem do que custa a vida e não conseguem fazer nada de jeito.

- Se fosse no meu tempo ...

E ficam perorando por um passado que já foi e não voltará, por muito que lhes custe. Águas passadas não movem moinhos e ninguém se lava duas vezes nas águas do mesmo rio. O passado é importante para conhecermos a história, a sua evolução, os progressos realizados, e para aprendermos com os erros cometidos. Analisando assim, compreendemos que, se não houvesse arrojo e audácia (isto lembrou-me o arrojo, audácia e desprezo pela vida que se ouvia no "poço da morte" das feiras), ainda estaríamos na idade da pedra ou lá muito perto.

O tempo de fazer, de pular, de arriscar, passa depressa e não adianta que os mais velhos tentem condicionar o progresso do mundo com argumentos falaciosos de "eu fiz e fui o maior ... da minha rua". Os olhos evoluem e aquilo que viram há trinta anos já mudou, pelas deficiências visuais próprias do avançar da idade e porque, felizmente, outros surgiram com muito mais capacidade e muito melhor visão.

Até os automóveis caminham a passos largos para dispensarem os condutores! Ora eu, que tirei a carta há mais de meio século e decorei o código de trás para a frente e vice-versa, não quero crer que se possa conduzir sem a caixa de velocidades e, muito menos, sem colocar as mãos no volante ... Isso vai ser muito perigoso ... ou não!

quarta-feira, 10 de março de 2021

Vidas

- Não posso fazer muita força. Este dedo deve estar partido.

- E não foi ao médico?

- Não tenho tempo ... 

- Mas isso é perigoso, nunca mais cura e só piora.

- Um dia destes ... Há uns anos, estava a trabalhar na Áustria e caí. O braço esquerdo doeu-me muito, mas continuei. Passada uma semana, o braço estava inchado e não aguentava as dores. Fui ao hospital. O osso do pulso estava partido. Trataram-me, puseram uma tala e vim-me embora. No dia seguinte fui trabalhar. Era preciso!

Na maior parte das vezes, nem damos pelos sacrifícios dos outros e pelas dificuldades que têm para assegurar o dia a dia e os (poucos) proventos que auferem.

 - Tenho de trabalhar. Não sei fazer outra coisa e sempre assim foi, desde miúdo. Criei um filho sozinho, desde os seis meses. Ensinei-lhe cedo que temos de ser honestos e trabalhar para quem nos dá emprego e nos paga. 

Há muito tempo que não tinha esta experiência "auditiva". Aconteceu hoje e concluí, uma vez mais, que os meus problemas são ridículos quando comparados com situações destas. Apesar disto, está sempre bem disposto, com graça "malandreca" para aliviar a conversa.

terça-feira, 9 de março de 2021

Tributo

Neste dia, em 1841, estreou-se no Teatro alla Scala, de Milão, a ópera Nabucco, de Giuseppe Verdi. Em 1959, na grande cidade de Nova Iorque, foi apresentada a boneca Barbie. Os dois acontecimentos são hoje registados na comunicação social, com o destaque devido e para que conste.

Uns bons anos passados, não num teatro nem num salão mas no Montepio Rainha D. Leonor, nesta cidade de "águas mornas", nasceu a minha filha. Foi um acontecimento muito mais importante e, apesar disso, não há um único jornal que lhe dedique uma linha. Coisa estranha? Claro que não!

A discrição é uma grande qualidade e a minha bióloga tem-na.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Chega?

O Campeonato Europeu de Atletismo em pista coberta, disputado na Polónia neste fim de semana, confirmou que já chega de blasfemar contra os migrantes, os de etnia ou pele diferente, o sexo forte e o sexo fraco, e muitos outros preconceitos que ainda por aí prevalecem.

Portugal trouxe 3 medalhas de ouro, duas conquistadas por mulheres e uma por um atleta do sexo masculino. Auriol Dongmo nasceu nos Camarões e conquistou o ouro no lançamento do peso feminino; Patrícia Mamona, que já nasceu em Portugal mas é filha de angolanos, trouxe a medalha mais importante do triplo salto feminino; finalmente, na prova masculina de triplo salto, o ouro foi conquistado por Pedro Pichardo, atleta que nasceu em Cuba e se naturalizou português.

Não foi por serem isto ou aquilo, pretos ou brancos, diferentes ou iguais, que a bandeira subiu no mastro e o hino nacional se ouviu em todo o mundo. Foi "apenas" porque foram os melhores.

Há lugar para todos e todos têm lugar, com o respeito e a tolerância a que qualquer um tem direito.

Chega de parvoíces!!!

domingo, 7 de março de 2021

Recordando ...

A minha primeira professora vive hoje um dia especial. 

Apesar de já ter comemorado muitos aniversários, este é o primeiro que festeja confinada e sem os rituais do costume. "Não quero que me comprem nada ... já não faço anos". 

Fui o seu primeiro aluno, vim ao mundo no mesmo sítio, fruto dos mesmos pais, apenas com três anos de atraso. Este tempo, hoje pequeno, foi o suficiente para que os seus dotes didácticos se fizessem sentir precocemente e determinassem a carreira que escolheu e foi a sua vida.

sábado, 6 de março de 2021

Futuro?

Não vale a pena especular e pensar em agregar esta ideia. Apenas se aplica aos grandes actores Ruy de Carvalho e Eunice Munoz e não passa de uma representação teatral de dois grandes actores, bem longe da realidade ...

Será?

sexta-feira, 5 de março de 2021

Janelas

Nos últimos dias e muito por influência do jornalista (ainda) director da Gazeta, JLAS,  têm circulado pelas redes ditas sociais muitos recortes de notícias sobre professores da "minha" Escola, publicadas aquando das suas vindas para as Caldas, das nomeações e tomadas de posse ou de realizações que conceberam ou ajudaram a levar a cabo.

Os comentários que surgem são, como é normal, extremamente abonatórios para as pessoas "noticiadas", o que se compreende bem e segue a regra. Até hoje, sempre me tem sido difícil, para não dizer impossível, encontrar alguém desaparecido que, em vida, tenha sido uma peste.

"Lá no fundo, no fundo, até nem era mau diabo."

Um dos professores "noticiados" recentemente era conhecido por gostar demasiado das alunas, de disso fazer publicidade com galanteios frequentes, alguns de mau gosto mesmo para a época, e também por, no seu trabalho didáctico, não ser dos de primeira água. Era vítima de muitas tropelias por parte dos alunos, quer em "bocas" lançadas à sua passagem quer nas aulas, que podiam ir das abelhas levadas numa caixa a serem soltadas em plena sala às garrafinhas de mau cheiro, tão populares no Carnaval.

Num dia de muito calor e sem ar condicionado a funcionar ou a existir, uma aluna pediu para abrir uma janela, porque o ar estava muito "pesado", fruto, talvez, de algum "vapor" escapado por distracção ou mesmo por vontade. O professor teve resposta pronta:

"Ó menina, descasque-se, ponha-se à vontade. Abrir as janelas é que não!"

quinta-feira, 4 de março de 2021

Pecado

Eu, pecador, me confesso ...

Ontem carpi mágoas de saudade de um café do café. Hoje, a meio da manhã, um SMS "maroto" dava a sugestão de uma visita ao café habitual, antes das 14 horas, que é a hora do fecho. Talvez haja uma surpresa.

Almocei e fui até lá. Não havia ninguém à espera. Mostrei-me através da montra e aguardei que o sinal sonoro me desse indicação para entrar. Em vez de me dirigir à parte do take-away ou à do quiosque, foi-me indicado o acesso outrora livre e agora apenas destinado a quem lá trabalha.

No escuro, a chávena apareceu, por milagre, à minha frente. Quentinha, a chávena, e a bebida, cremosa, ainda a fumegar. Bebi. Nem saboreei, mas soube tão bem! Até a máscara gostou! Quando a voltei a colocar, passadas mais de duas horas, ainda havia o cheirinho maravilhoso daquela bica tão ansiada.

Sabe sempre bem pisar o risco ... mas não pode ser sempre nem se deve divulgar.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Rotina ou talvez não ...

O drama da folha em branco ... não tenho nada para dizer e muito menos para escrever.

Não que o mundo tivesse parado, eu tivesse deixado de estar atento ou não estivessem a acontecer coisas que a todos interessam, como aquela do japonês que está a oferecer viagens à Lua, para concretizar em 2023. Só não me inscrevo porque ainda não tenho o "passaporte vacinal" e não arrisco ir lá e sujeitar-me a apanhar o "corona lunar".

Sinto falta de café do café, de andar por aí sem "rédeas", de ver gente, de conversar ou de estar calado, sem a isso ser obrigado. Não há meio, mas tudo indica que o dia vai chegar em breve. Já ninguém põe à janela o "vai ficar tudo bem" e deixou de ouvir-se o papagaio carioca falar do "resfriadinho". O das melenas já foi passear e estará agora a meditar sobre a cor da casa que substituirá a Branca, que não deverá ter Sala Oval. Pondera, também, se deve manter a cor do cabelo e a "brasa".

Cá pela cidade, tal como no país, começou a agitação dos candidatos a autarcas e já há um candidato perfilado. É edil de Junta e vai tentar ser promovido à governação principal do concelho.

"Cheira-me" que, este ano, as autárquicas vão ser diferentes ...

terça-feira, 2 de março de 2021

Mãe

- Vou buscar os medicamentos e volto já.

- Não vale a pena. Quando voltares já cá não estarei.

Era um final da tarde e estavas deitada na cama do hospital, com grandes dificuldades na respiração mas completamente lúcida. A percepção do que iria acontecer era muita mas, ainda assim, saí para satisfazer o pedido da enfermeira. Não cheguei a casa e os medicamentos por lá ficaram ... o telefone tocou antes e voltei pelo mesmo caminho. Tinhas razão ...

Foi há dezassete anos e continuas a ser a minha rosa, da noite, da tarde e da manhã.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Palavras bonitas

 SERENATA DO ADOLESCENTE

Que doentia claridade
a que me invade e me obsidia,
durante a noite e à luz da tarde,
à luz da tarde, à luz do dia!
Que doentia aquela grade
de insone e ténue claridade,
sob a avançada gelosia!

Passo na rua e nada vejo
senão a luz, a luz e a grade, 
Ó lamparina do desejo,
porque ardes tu, até tão tarde?
E às vezes surge, entre a cortina,
aquela sombra vespertina
que me retém nesta ansiedade.

Se tens trint'anos? ou cinquenta?
Quis lá saber a tua idade!
Sei que em meus olhos se impacienta
fome de luz daquela grade!
Sei que sou novo, e que me odeio
porque me tarda - ante o teu seio -
queimar tão pobre mocidade!

Obra Poética
David Mourão-Ferreira
Editorial Presença (1997)