terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Vivências

Apesar de o céu estar azul e não haver sinais de chuva, o frio amargura a sociedade, obriga a abafos e cuidados e parece agoirar o futuro, embora este tenha dono vitalício.

Os mortos da Turquia já são só nota de rodapé e a destruição causada pelo sismo há-de voltar à ribalta quando a economia for chamada à reconstrução e os interesses de alguns falarem mais alto do que as necessidades dos que ficaram sem nada.

A guerra na Ucrânia parece encaminhar-se para um túnel sem luz e sem fundo, com as partes envolvidas a tentarem justificar o que o (bom) senso sabe que não tem nexo nem razão, quanto mais justificação. A sobrevivência é o objectivo dos que conseguiram fugir e daqueles infelizes que por lá se arrastam, na esperança de que a descida às caves não seja, ainda, o caminho dos infernos para pagar os pecados de outrem.

Por cá, as greves nos comboios e a luta dos professores, mais a gafe do ministro Cravinho a convidar Lula para uma casa que não lhe pertence e os comentários, sempre oportunos (?) de Marcelo, determinam a ordem do dia e as aberturas noticiosas. A cada situação se confirma quão difícil é descrever o que quer que seja, valendo mais apontar o microfone ao primeiro disponível e pedir-lhe para clarificar o que acha ele sobre o tema. 

O preço do altar-palco ou do palco-altar já se evaporou, como irão desaparecer, milagrosamente, os abusos clericais.

Isto é o que acho, sim, porque também sou "achista" empedernido e já não tenho cura. Tenho, sim, algumas dúvidas sobre se este texto não incluirá algumas das palavras agora interditas. Já está, já está e não é por isto que o futuro vai ser negro, ou preto, ou afrodescendente ou de uma qualquer outra cor que seja bem dita e bendita.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Sentença

No início, apenas estavam presentes, na escura sala de audiências, cinco pessoas, cada uma na sua função específica: o queixoso e a sua advogada, a representante do réu e o causídico acompanhante, o escrivão e o respectivo computador, cujo teclado se sentia ser demasiado grande para a velocidade dos dois dedos utilizados. Talvez tivesse sido digitada a data quando, vinda do lado de lá da porta fechada, surgiu a figura imponente da juíza que iria dirimir a questão em julgamento.

Apenas duas pessoas usavam um fato dito normal, enquanto os insignes representantes da lei e da ordem exibiam as suas longas togas pretas, intimidantes e exemplares exibidoras de mau gosto. A audiência começa com a dissertação da juíza sobre o que estava em causa e com as advertências para o comportamento na sala, condição necessária para que ali se pudesse permanecer, e suficiente para que ficassem reunidas as condições para uma sentença justa. 

Começa, formalmente, a audiência. A juíza questiona a representante do réu, colocando-lhe perguntas directas sobre o assunto em julgamento. A senhora, visivelmente nervosa, começa a debitar um chorrilho de asneiras, encomendadas e destinadas a defender o indefensável, que ela própria tinha consciência de não corresponderem à verdade e nas quais nem sequer deveria acreditar. O queixoso, perante tais aleivosias, abana a cabeça, exibindo a sua discordância.

- O queixoso não se pode manifestar, clamou a juíza num tom de voz autoritário, do alto do seu pedestal e cumprindo as regras ditadas no início.

O sacrifício foi grande mas, até ao fim, nem um dedo sequer se mexeu, nem para coçar a orelha.

A audiência foi encerrada e a decisão marcada para algumas semanas depois. A sentença contemplou a razão e nela não constava qualquer alusão à manifestação corporal do queixoso. 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Tesourinho

A casa guardava muitos papéis antigos e, como é costume, a grande maioria só podia ter como destino o lixo no ecoponto azul. Facturas antigas, documentos de impostos, garantias de equipamentos, etc., etc..

Por princípio e sempre que esta tarefa me está destinada em qualquer sítio, nada se deita fora sem ser olhado com alguma atenção e rasgado em, pelo menos, quatro partes, se a "peça" não tem qualquer interesse, ou em bocadinhos, se se trata de algo com importância, ainda que mínima.

Aparecem sempre surpresas, como a que aqui se reproduz e que não passava pela cabeça encontrar a cerca de cem quilómetros desta cidade oestina. O questionário tem quase 30 anos e há nele respostas, passe a imodéstia, ainda com actualidade.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Aniversário da guerra

A Rússia invadiu a Ucrânia no dia 24 de Fevereiro de 2022, faz hoje exactamente um ano.

Nem os grandes especialistas têm noção, escura ou clara, de como este "problemão" vai evoluir. Os que perderam tudo e tiveram de fugir, os que ficaram sem nada e tiveram de ficar, os que ainda mantêm alguma coisa de material mas convivem com o horror diário, os que continuam a guerrear, mesmo sem vontade, os que perderam a vida debaixo de fogo, são peças de um intrincado xadrez que, arrisco, vai terminar num empate, sem que os peões se apercebam e sem que seja possível determinar, sequer vaticinar, quando acontecerá o final do confronto.

As paradas de um lado e do outro, acontecidas nos dois últimos dias, mostram grandes solenidades, fardas de gala, peitos medalhados, meninos quase sem barba em marcha cadenciada, executando a continência submissa, que a pátria está no pedestal e a tudo obriga, herói ou mártir, morto ou vivo, voluntário ou compelido, tudo questão de pormenor pouco importante.

Os engravatados vão reunindo, sancionando, determinando, vendendo, emprestando, dando, abrindo portas e fechando janelas, ameaçando velada ou claramente, mas sempre com um cuidado diplomático extremo porque, mesmo em conflito aberto, há sempre alguma reserva a manter, não vá o diabo tecê-las e o resultado ser o contrário do que se perspectiva.

Para muitos, infelizmente, já não há futuro no mundo dos vivos; para outros, os próximos tempos vão acontecendo em lugares de acolhimento que, por muito boa vontade que haja, nunca serão como os que tinham sonhado; outros continuarão a fazer um esforço gigantesco para sobreviver aos tiros, à fome e ao frio, à imbecilidade de uns quantos que detêm o poder, sabe-se lá por quê e para quê.

Sei das minhas limitações. Talvez por isso, os meus recursos mentais não entendem nada, por mais esforço que façam.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Pele e osso

Já passaram 36 anos sobre a partida de José Afonso, que deixou um legado importantíssimo para os vindouros e inesquecível para os que tiveram o privilégio de o ver e ouvir.

A sua obra ainda mantém, infelizmente, uma grande actualidade social.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Voos

Estava poisado num ramo bem alto, camuflado entre a folhagem, densa, do castanheiro. De vez em quando ouvia-se aquele choro lancinante, característico da sua espécie quando em sofrimento. Transmitia dor e desencadeava pena.

Os olhos, experimentados, conduzidos pelo grito bem audível, conseguiram vislumbrar o azul das suas penas, lá bem no cimo da árvore. Era quase impossível que o gaio não tivesse já dado pela chegada do intruso. O normal teria sido que as asas batessem e o fizessem voar para longe, bem antes de a visita chegar à árvore. Não aconteceu, e ele permanecia quieto, lá no alto. Era claro que havia qualquer coisa de errado no seu comportamento, que indiciava impossibilidade de se pôr ao fresco. 

Não era possível subir ao seu local de refúgio com o mínimo de segurança. Mesmo assim, a curiosidade aguçou o engenho e, com alguma dificuldade, subiram-se dois ou três troncos mais grossos, na sua direcção. Não se mexeu. Parecia convencido de que a sua hora havia chegado.

A meio da árvore, o encurtamento da distância permitia distinguir perfeitamente o que o mantinha ali, quietinho, chorando. A asa esquerda estava caída, talvez só segura pelas penas. Os olhos eram tristes, quase de súplica para lhe terminar o sofrimento.

Desci da árvore. A "nove mm" tinha ficado encostada à árvore, com o cartuxo no cano. Bastava apontar e puxar o gatilho. Nunca tinha atirado a um gaio, ensinado que fora a respeitar a sua beleza e o seu pouco préstimo para comer. Aquele não ia ser o primeiro, apesar de parecer que implorava isso.

Alguns dias depois, o regresso ao local: na árvore já não estava e, no chão, não havia qualquer vestígio de por ali ter caído. Talvez tenha conseguido sobreviver e voar de novo, quem sabe?

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Palhaços

Por esta época, vestia-se da cabeça aos pés com o rigor de um palhaço profissional. Roupa larga e colorida, nariz vermelho, rosto pintado de branco, sapatos enormes, um adereço na mão que tanto podia ser uma gaiola sem pássaro como um cujo dito sem ela. Todos os anos diferente no tema, nos pormenores, na forma, mas sempre palhaço. Era a sua catarse. Depois de um ano de trabalho, dois dias de folia, bem completos.

Este ano, embora já tivesse tudo preparado há muito, não o fez. A mãe partiu há pouco tempo e entendeu que lhe devia esse respeito, embora ela talvez tivesse opinião diferente. Decidiu assim, fez como lhe pareceu melhor, sem mágoas nem arrependimentos.

Ontem esteve a ver o desfile e encontramo-nos. Muita conversa, muitas recordações, muitas apreciações, muitas críticas. Já vimos tanta coisa que não é fácil a surpresa e difícil a concordância. No final, sério, desabafou:

- Já reparaste que não há um único palhaço no desfile?!

E era verdade. Nem um. Toda a gente mascarada, de tudo e mais alguma coisa e nem sequer um palhaço vestido a rigor.

Dos outros, havia muitos ... 

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Dúvida

A gaivota pousou no pau ou está descansando na areia da margem esquerda?


Para quem esteve mais atento e procurou com mais atenção, descobriu que, afinal, a gaivota pousou, sim,  na bandeira da Escola de Vela.


Conclui-se que, para qualquer coisa, há sempre, pelo menos, duas hipóteses de análise. Depende da perspectiva e da capacidade de quem analisa. A síntese, sempre necessária, só pode ser feita por quem usufruiu de (mais) uma manhã linda na Foz do Arelho. Tivessem lá ido e perceberiam com mais facilidade. Nem sequer uma brisazinha e o espelho, só reflectia.

Nada mexia!

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Carnaval

Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. Que importa!

Não há necessidade de pensar, ler, ouvir ou compreender, muito menos escrever. Tudo está à mão de semear, servido sem osso, limpinho, pronto a comer. A hora é de apenas encaminhar para as papilas gustativas. A língua deve prestar toda a atenção aos sabores, não permitindo o seu uso para dar opiniões, matéria reservada aos "sabões" e aos dotados. À ralé cabe-lhe seguir atrás da banda, aplaudindo, de preferência.

"Calça justa e bem esticada / já manchada pelo selim / polainas afiveladas / antigamente era assim (...)"

É tempo de saltar, dançar, pular, gritar, marchar, sambar. A vida são dois dias e o Carnaval ... três!

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Centenário

O Carnaval de Torres Vedras comemora 100 anos. Ao longo deste tempo imenso, tem proporcionado diversão muitas vezes louca, trapalhona, bem regada, pouco dormida, vivida sempre pelos habitantes da cidade como festa única. Nestes dias de folia, muitos milhares de forasteiros visitam e divertem-se na cidade, que hoje já exibia nas suas ruas a música apelativa e muita gente mascarada.

Trabalhei com alguns/algumas pessoas que, logo no início do ano pediam a marcação de oito dias de férias para esta altura, para poderem participar sem preocupações, em quatro dias (e noites) de loucura, intervalados com algum, pouco, tempo para fechar os olhos.

O "monumento" que anuncia a festa deste ano é, uma vez mais, uma obra de arte e de crítica, como convém para que o sorriso seja permanente, ao menos nestes dias de folguedo.



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Notas

Quando o meu entendimento dos temas mais importantes, ou inquietantes, da vida começou a acontecer, fazia-me muita confusão os meus pais referirem, com regularidade, que tinham gasto dez mil réis a comprar isto ou aquilo e, muitas vezes, eu tinha presenciado que o custo tinha sido dez escudos.

- O que é isso dos mil réis?, questionava a minha impertinência.

- Antigamente era assim que se chamava a moeda - réis. Quase ninguém, dos mais velhos, fala em escudos e está sempre a fazer a comparação com o dantes.

O tempo foi corrigindo, com o apagamento dos que não sabiam, ou não queriam, utilizar, verbalmente, a nova moeda e os mil réis eclipsaram-se do quotidiano.

No primeiro dia de 2002, o Euro passou a ser a moeda corrente em Portugal e, durante bastante tempo, quase toda a gente fazia mentalmente a conversão para escudos, procurando avaliar o custo, aumentado, pela matemática a que estava habituada.

- É pá, isto está impossível. Oitenta paus por uma bica; uma nota de cem por uma alface.

O tempo foi correndo, muitos da época do escudo já se apagaram e a grande maioria dos outros não se preocupa em fazer ponderações. Não vale a pena!

Hoje, no supermercado, estava um livro de um autor que conheço bem e do qual tenho algumas obras. Aquele, dizia-me a memória, não estacionava na estante. Promoção: Cinco euros.

- Vou levar. Nem se nota na conta.

No regresso, fiz-me de velho e ponderei:

- A promoção, afinal, custou mil escudos e mais uns pózinhos.

Não recordo já quanto pagava, em escudos, por um livro, até porque perfilho o princípio de que dinheiro gasto não faz falta a ninguém. Todavia, não tenho dúvidas: quando iniciei a minha "carreira" de comprador de livros, nenhum dos "normais" custaria o valor que dei hoje na promoção. Quem ponderava com os olhos no antigamente, seguramente que pensaria ser um desperdício gastar quatrocentos ou quinhentos mil réis num monte de folhas. Mil réis era um crime. Seria o ordenado de um mês, pago à semana, claro.

Valeu que foi o cartão que pagou!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Pilhas novas

No pulso fazia vida, há já bastante tempo, uma máquina oferecida, com amor e carinho, pela geração seguinte. Aquela pequena peça mostra as pulsações, o tempo dormido, os passos dados, a correspondente distância em quilómetros, e muitas outras opções, a maior parte estranhas ou raramente consultadas por quem, com muita informação, só baralha a atenção. Para além disto tudo, a maquineta ainda dá as horas, minutos e segundos, os dias da semana, a data completa, tudo sempre certinho, sem falhas.

A pulseira da maquineta partiu-se e houve necessidade, não imperativa, de recorrer ao relógio tradicional, que há muito andava ausente, bem escondido e triste, lá no fundo da gaveta. A pilha estava descarregada!

Se fosse o primeiro que por este pulso andou, dava-se corda e os ponteiros ressuscitariam, oferecendo a hora certa, mais coisa menos coisa. Neste, apenas o relojoeiro consegue resolver o problema. Pilha nova e eis que o velho Tissot acorda com toda a energia, mostrando que, por mais invenções que aconteçam, os velhos ainda têm algum préstimo. Relógio é relógio, ainda que lhe não dêem a importância devida. 

Entretanto, a bracelete também evidenciava sinais de cansaço, fruto da idade e do abandono, indiciando partir a qualquer momento. Os riscos de fazer o velho despedaçar-se contra a calçada era elevado e não havia outra alternativa que não comprar também uma nova. Pilha nova, bracelete nova, relógio a funcionar em pleno, com uma jovialidade de fazer inveja e um aspecto de beleza sem igual, quando comparado com essas modernices.

Satisfeito com o resultado, fui consultar a Net, onde é possível saber e obter respostas para tudo. Pelo menos é o que toda a gente diz e, a julgar pelos comentários que por aí são feitos, não há hipóteses, sequer, de pôr isso em dúvida ...

Como sou meio baralhado, devo ter procurado de forma errada ou sem as coordenadas devidas: não encontrei uma única referência a pilhas que me ponham a funcionar como antigamente e nem sequer um anunciozito a um relojoeiro que isso arrisque.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Elevador

Ocupa as mãos, a mente e a atenção, mesmo a intuitiva. É um elemento imprescindível na indumentária moderna, incluindo para aqueles que raramente o utilizam, quase o detestam e têm algumas dificuldades no seu manuseamento.

- Não tens telemóvel?

- Claro que sim, era o que faltava, mas não uso muito.

Quem assim responde está a necessitar de uma intervenção "ecológica", talvez parecida com a do lince e da serra da Malcata. O aparelhinho é fundamental nos dias de hoje. A sua versatilidade é imensa e os novos fazem tudo, até chamadas telefónicas e SMS. Cada vez é mais utilizado e, pouco a pouco, vai substituindo a necessidade de cérebro para executar o necessário, do trabalho ao lazer, do ócio ao prazer.

O botão de chamada do elevador foi premido e, enquanto se aguardava a chegada, foi-se preparando o acesso - password, aplicação de mensagens, destinatário - para que, em dois caracteres, se comunicasse o piso de destino. A porta abriu-se, a entrada foi feita, o botão do 1 premido. Daí a pouco, ainda a mensagem não tinha seguido, de novo a porta do transportador se abriu e a saída aconteceu. Mensagem enviada, surgiu no aparelhinho.

As cadeiras da sala estavam quase todas ocupadas. Lá ao fundo, duas livres, no cantinho. Bom sítio. O telemóvel foi emudecido que o sítio não é para barulhos, o livro aberto e a leitura, interessante, foi iniciada.

O tempo passa depressa para quem desespera e não consegue ser atendido de imediato. Parece que terão passado mais de cinco minutos. Uma eternidade! Por pressentimento ou gesto mecânico, a mão foi ao bolso e os olhos espreitaram o ecran. 

- Curioso ... está a ligar. Não consegue arranjar lugar para o carro. 

- Onde estás?

- Sentado, a ler, aguardando que o número apareça.

- Não pode ser. O médico veio chamar-te e eu fui ter com ele. Pensava que estavas na consulta. Afinal ... Disse-me que já era a segunda vez que te chamava. Agarrei-me ao telemóvel e tu não atendias ... pedi ao segurança para ir à casa de banho ver se lá estavas ...

O elevador tinha descido sem disso fazer eco. Despistado, saiu sem sequer olhar para o -1 escarrapachado na parede, em tamanho bem grande. Sentou-se, tranquilo, com o olhar atento aos números que iam desfilando no ecran, à espera que aparecesse aquele que estava no papelinho e lendo mais uns parágrafos, sem ligar ao tempo que tanto corre no piso certo como no errado. 

- Desculpe, doutor. Não me apercebi que o elevador tinha descido em vez de subir ...

Tudo acabou bem e ninguém morreu. O pânico foi apenas um pormenor e a culpa, essa, sem dúvida que foi do elevador, que deveria ter cumprido a ordem de quem lá estava dentro e não de outro qualquer espontâneo que o desejava no -1. 

Moral da estória: se é despassarado, use sempre as escadas.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Alzheimer

Não existe. Está presente. Sorri, às vezes sem razão aparente, noutras parecendo que está a entender o que se diz. A mão deixou de se movimentar para o cumprimento. Nada o aproxima e tudo o afasta. Dão-lhe a comida na boca e parece que isso lhe dá algum prazer. Sorri, a olhar para a colher. Saboreia, sem sofreguidão. Não se lhe escuta um som, uma palavra, nada.

E tanto que ele gostava de falar. Desloca-se com dificuldade, na cadeira de rodas que a mulher ou o filho empurram. Meia dúzia de passos, para ir mantendo alguma força nas pernas, mas sempre amparado.

- Tenho muito medo que escorregue, mesmo segurando-o.

Não tem memória. Os olhos vêem e não transmitem nada. Talvez o coração sinta, quem sabe. O cérebro parou e as reacções são escassas, esgares apenas. A malvada doença sacou-lhe tudo, até a dignidade.

A dedicação da mulher é enorme, o trabalho, uma luta inglória, noite e dia. Oficialmente está vivo. Estará?

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Sofrimentos

Ter as notícias à mão e no momento torna as tragédias mais violentas, ou melhor, impede que as ignoremos ou subvalorizemos. Não conseguimos evitar que nos causem dificuldades de entendimento, nos provoquem borboletas no estômago, nos façam desviar os olhos.

Não bastava a guerra na Ucrânia, que está quase a cumprir o seu primeiro ano, com muita gente que parece querer festejar a data, e surge um terramoto na Turquia e na Síria, nesta para juntar a uma outra guerra da qual já poucos falam e se mantém há mais de uma década. 

A lareira acesa, o jantar na mesa, o livro na mão, a música a tocar, o supermercado aberto e o cartão bancário pronto a mostrar-se à máquina (agora já nem se introduz), o carro cheio de gasolina, a roupa adequada ao frio ou à chuva, o mar ali a dois passos a convidar ao relaxamento, tranquilidade e paz, e perturbação, pouca ou nenhuma. O trabalho está feito e não tira o sono. O ordenado chega no dia aprazado, sem sobressaltos nem deslocações.

A televisão é ligada. A barbárie entra sem convite. O semblante fecha-se, os olhos condoem-se, a dúvida instala-se, a pretensa solidariedade aproxima-nos, não se entende o porquê, o sofá convida a pensar, a analisar, a achar e a dizer: não há nada que eu possa fazer ...

Embora possa parecer perto, foi lá longe, onde o sol não castiga tanto e o frio congela a água, não dando tréguas aos que restam em busca de alguma coisa que os possa aliviar. São muitos os que partiram sem dar conta da viagem. Muitos mais aqueles que carregam e vão continuar a suportar um sofrimento que, por muito que doa ver, custará muito mais viver.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Palavras bonitas

Décimo Poema do Pescador

Nem sempre o robalo vem
nem sempre ele traz aquele inexplicável e fundo
mistério de pulsar como o coração de alguém
ou talvez como o próprio coração do mundo.

Nem sempre me toca a graça e nem sempre está 
o vento de feição. E no entanto procuro
incansavelmente procuro o não sei quê que já
muitas vezes me trouxe um coração no escuro.

Não há senão esse buscar. Esse incessante 
navegar pelo sonho essa viagem
de Ulisses sem regresso. Como alma errante
não mais que um viajante de passagem.

Um intruso no mar um algo a mais
pela noite adiante obsessivamente procuro
na página nos astros nos canais
um verso um peixe um coração no escuro.

Eu pescador Ulisses alma errante
navegador da noite procuro nem sei bem
uma luz um robalo um breve instante.
O coração do mundo. Ou de ninguém. Ou quem.

Senhora das Tempestades
Manuel Alegre
Dom Quixote (1998)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Memória

A memória vai encontrando caminhos ínvios e desaparecendo por entre as mais estreitas vielas, ainda que conheça muito bem os locais, saiba os temas, domine os assuntos ou as tarefas, e tenha passado mais do que suficiente para encher avenidas das matérias que possam estar em causa.

Por mais notas que se registem, ou mnemónicas que se fixem, quando é necessária, a palavra, traiçoeira, esconde-se debaixo da língua e por lá permanece, por mais esforços que se façam para que a porta se abra.

- Não consigo. Daqui a bocado vou lembrar-me ... quando já não for preciso.

Vai acontecendo no dia a dia e causa mais perplexidade quando o assunto é por demais conhecido, dominado, e foi tratado durante muito tempo. Teimoso, está ali fresco que nem uma alface e não surge. Que se há-de fazer? Nada, ou melhor, um esforço para que o que agora se escondeu, não permaneça na toca e surja daí a pouco. Não se perde tudo e pode dizer-se, para consolo, que, afinal, o que estava escondido e bem resguardado, apareceu clarinho para se poder explicitar, já noutro tempo, é verdade, e, mais provável, a despropósito, agora que já a ninguém aproveita.

Não era nada disto que eu queria hoje deixar por aqui mas ... já se me varreu!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Trastes

Permaneciam paradas há vários anos, encostadas num canto da garagem e sem qualquer utilidade prática. Dos mais velhos aos mais novos, ninguém lhes ligava. Há muito que tinham cumprido a sua missão e perdido a actualidade. Duas delas ainda tinham dínamo na roda da frente ...

Degradavam-se a olhos vistos, sentindo o peso da idade e a ausência de utilização. Comprovavam, como se necessário fosse, que é melhor ir fazendo alguma coisa, mesmo que seja pouco.

"Acrescenta sempre alguma coisa, disse o rato. E fez xixi no mar."

O homem da oficina já só a mantém para se distrair. O papel na montra refere que aceita bicicletas velhas.

- Vou-me entretendo. Recupero, devagar, que já não tenho idade para correr nem a foguetes. Não as mande para o lixo, como fazem muitos. Traga-mas que dou-lhe destino capaz.

Lá foram, de certeza com pena de abandonarem o poiso que tinha sido seu, em exclusivo, durante bastante tempo e sem ninguém a aborrecê-las. Não se queixaram. Quem sabe ainda lhes resta alguma curiosidade e espírito de aventura. Saíram de um canto e foram para outro, com companhia, onde irão aguardar que as mãos do homem as comecem a tratar e lhes dêem uma "vestimenta" nova, bem oleada, para voltarem a andar, correr e saltar como nos velhos tempos.

- Reparar custa quase tanto como uma bicicleta nova. Olhe que um par de pneus não custa menos de 35 Euros. Mas dá muito gozo ...

As justificações continuaram, apesar de, à partida, estar garantido que o negócio não envolveria qualquer montante. Afinal de contas, ganhei um espaço livre na garagem, que dá sempre jeito.

Até quando? O mais certo é ser ocupado de novo com algumas coisas daquelas que se guardam "porque podem vir a ser precisas". Um dia saem, como as bicicletas.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

Não me desloco muito ao Centro Comercial cá do burgo mas, por vezes, lá acontece. Isso implica sempre uma entrada na Bertrand, única livraria que ainda resta na cidade. Na maioria das vezes, pelo menos um livro salta da prateleira e pede boleia até a casa.

Naquele dia, o objectivo estava definido e dirigi-me logo às prateleiras em busca não do tempo perdido mas do livro pretendido. Olhei, vi, reparei, mirei, nada. A destreza para descortinar qualquer coisa nunca foi famosa e o defeito agrava-se cada vez mais.

- Não se importa de me indicar onde está a Biografia de Luiz Pacheco ...

- Está lá ao fundo, mas eu vou lá consigo.

O colaborador (agora ninguém é empregado ou trabalhador) acompanhou-me, solícito, até ao sítio onde eu já tinha estado.

- Já não há nenhum ...

- Não me diga?!

- Têm-se vendido como pãezinhos quentes, mas ainda tenho no armazém. É só um momento.

Voltou daí a pouco com três ou quatro exemplares e passou-me um deles.

- É este, não é verdade. Temos vendido bem ...

 - Talvez seja por Luiz Pacheco ter vivido nas Caldas em pequeno e ter voltado já bem adulto ... Apanhou por cá algumas pielas.

A admiração foi notória.

- Ah! Então talvez seja por isso. Tenho de o ler.

Não faço ideia se o colaborador da Bertrand já o leu. Por aqui, cerca de um terço das mais de 500 páginas já marchou ...

"(...) A expensas do pai e depois suas, Paulo Pacheco fazia desde jovem temporadas estivais em termas para serenar as convulsões de asmático. Frequentara as de Entre-os-Rios, no Douro, e depois as das Caldas da Rainha, que ficava mais perto de Lisboa, tinha um vetusto e celebrado hospital termal, com águas que haviam granjeado fama de vencer qualquer catarro respiratório. Dispunha para instalação de um requintado hotel, com salão de baile e 120 quartos, o Lisbonense, que só abria na época estival. Demais, entre o hotel e o hospital, desdobrava-se um vasto parque arborizado à inglesa, com um lago voluptuoso onde deslizavam cisnes à beira do qual as senhoras se vinham sentar, de sombrinha na mão, a contemplar o verde das águas. A vila era farta de comidas, com uma tradição barrista antiga e uma fábrica de loiças fundada por Rafael Bordalo Pinheiro. Mal o filho mostrou segurança no andar, logo pensou levá-lo consigo na temporada seguinte para a vila, para o iniciar nos benefícios das águas. Desta vez, em lugar de se instalar com o filho no hotel, preferiu optar por alugar uma parte de casa, de modo a ter apoio nas compras, na comida e no amparo da criança, já que não levava criada. Instalou-se em casa de uma senhora solteira, Eugénia Augusta de Vasconcelos Soeiro de Brito, filha de um coronel do exército, camarada talvez do velho oficial  de infantaria, Luiz Henrique, e que vivia numa vivenda do centro, na Rua General Queirós. Senhora culta, de meia-idade, que escrevia nos jornais, o seu estalão mental não diferia muito das poetisas de almanaque que eram as tias de Paulo Pacheco. Meio, educação e interesses eram idênticos. A senhora cedeu a pai e filho o primeiro andar, ficando ainda com o encargo da roupa e comida de ambos. Solteira, sem filhos e sem afectos, ligou-se à criança que conheceu quase de colo e acabou por ter junto dela um papel de peso. (...)"

O firmamento é negro e não azul
A vida de Luiz Pacheco
António Cândido Franco
Quetzal (2023)

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Palavras bonitas

Para o meu neto Miguel, o infante de um quarteto maravilhoso de netos, que muito merece porque tudo dá. 

Completa hoje 7 anos de uma vida cheia e desafiante, na qual se tem revelado perspicaz, inteligente, dotado de uma personalidade forte e de uma meiguice desarmante. 

O INFANTE

Na bandeira das almas há uma alma
Que pesa mais no prato da balança;
Irradia vontade e confiança,
E os seus olhos videntes
Iluminam os outros penitentes.

O além do mundo, embora mundo ainda,
É tenebroso.
E só o génio animoso
Dum inspirado
Tem a coragem nova de enfrentar
O medo acomodado
Que não deixa passar.

Segue ele à frente, pois, o espírito audaz,
Que só ele é capaz
De ir à frente e de ser o derradeiro.
Guia de todos os descobrimentos,
E sempre ele o gajeiro,
Com nomes vários nos vários momentos.

Poemas Ibéricos
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1995)

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Cabril do Ceira

O meu amigo ADS enviou-me esta fotografia, para me lembrar, como se fosse necessário, que a zona das suas origens tem paisagens maravilhosas, que convidam à visita e ao deleite.

O blogue da União Progressiva da Freguesia do Colmeal, que pode ser consultado aqui, dá nota do que por lá acontece, da beleza da região, e salienta as tradições e a vida que a natureza, felizmente, ainda por lá vai fazendo acontecer.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Actualidade

Como sempre, as imagens de António valem mais que mil palavras.
Este é o cartoon de hoje, no Expresso.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Prognósticos

Sobem os juros, aumentam os preços, dividem-se as opiniões. Há certezas de muita gente para a melhor receita, há dúvidas de muitos outros sobre a adequação das medidas adoptadas.

Como sempre, todos sabem tudo e ignoram muito mais. A bola de cristal ausenta-se e, apesar de haver quem nunca se engane e raramente tenha dúvidas, ninguém tem certezas de nada.

Daqui a um ano, aparecerão as grandes dissertações confirmativas e comprovativas das razões que provocaram o resultado acontecido. Alguns transmitirão as certezas que tinham e que, por decoro, não verbalizaram nem escreveram na altura. Far-se-ão grandes tratados, análises e conclusões sobre o que se passou e a forma como tudo poderia ser evitado se ...

Ainda não é possível saber se a inflação vai atingir os dois dígitos no final de 2023, apenas pela singeleza da constatação de que ainda faltam cerca de onze meses para lá chegarmos. Quanto aos juros, o BCE vai dando uns toques, a pouco e pouco, para a bola não fugir.

E surge, de imediato, a frase futebolística:

- Prognósticos? Só no fim do jogo!!!