quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Lembranças

O barco chegou, trazido pela mão amiga do L., fazendo jus à lembrança da água que cimenta uma amizade antiga, enriquecida anualmente nas areias da Foz do Arelho e nas águas daquele mar único, com ou sem nevoeiro.

O barquinho, de plástico, não trazia o almoço dentro nem isso seria expectável, tal como não o era a sua aparição como prenda. Lembranças do L.... Era pequeno demais para nele caber a comida que se seguiu e figuradamente enorme para se correr o risco de uma utilização ousada lhe provocar deterioração.

A refeição foi óptima e animada com o humor surgido da boca de cada um, carregado com as diferenças e subtilezas que evidenciam personalidades bem distintas. 

A chuva fez parte do "conclave" e carregou sem dó, sempre que lhe foi dada oportunidade. Talvez estivesse zangada e invejosa por não ter entrada nem participação no convívio. Não pôde saborear umas "peças" que, cheias de queixas do tratamento na cozinha, rapidamente se voltaram para o passado e se tornaram queixadas apetitosas, acompanhadas de batatas fritas na hora e de um arroz bem saboroso.

Para tudo acabar em grande, o M. tinha, lá por casa, uma medronheira cheia de frio, que ajudou a digestão e aqueceu a alma, sem proporcionar a S. Pedro a continuação do massacre a que tinha sujeitado todos durante o trajecto exterior.

A aventura ficou completa com umas taliscas de toucinho à moda antiga, que o palato adora e o estômago fará um esforço por ignorar.

Novembro está no fim e aqui chega da melhor maneira. Daqui a pouco estamos no Natal ...

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Sonhos

E se, de repente, a guerra acabasse, a inflação desaparecesse, houvesse casas para todos viverem em condições aceitáveis, as relações fossem pautadas pelo respeito da individualidade de cada um, que homens e mulheres fossem tratados de igual forma, aqui, no Qatar, na China ou no Irão, que o mundo fosse o sítio da convivência por excelência e não o "saco de gatos" que sempre foi, talvez houvesse alguns que não gostassem mas a grande maioria daria saltos de contentamento e acharia que, finalmente, se havia encontrado um modelo de sociedade justa, onde todos pudessem caminhar pelas ruas e não existissem avenidas vedadas ou caminhos de terra para pés rapados.

(...)
Ouve-se o piar dos mochos,
Vêem-se morcegos coxos
E marrecos a dançar.
Tinha o coração em chama,
Acordei ... estava na cama.
Vi então qu'era a sonhar!
Popular (bem antigo)

Pois! Mas não é assim nem nunca será. Por mais que apregoemos, acabamos sempre por também contribuir para que tudo continue na mesma, assacando sempre culpas aos outros, nos tais que não olham a meios para atingir os fins, sinistros, na maioria das vezes. E que são a escória da sociedade, ao contrário de nós, únicos perfeitos e sem defeitos!

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

domingo, 27 de novembro de 2022

Mulheres

A música foi gravada em 1979, no álbum "Fura, fura". A revolta a que se refere aconteceu em 1846. Hoje, infelizmente, o conteúdo mantém-se actual e o alerta necessário.

sábado, 26 de novembro de 2022

Viagens

Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Qatar, devidamente autorizado pela Assembleia da República onde, nos últimos tempos, imperam os gritos de histeria de um deputado que por lá se senta e faz lembrar aquele velho ditado segundo o qual vozes de burro não chegam ao céu, por mais que se clame pela intervenção divina. 

Pelo que se ouviu, a diferença horária causou alguns problemas no sono do nosso Presidente, coisa que não é muito vulgar na sua pessoa, conhecida que é a sua capacidade de dormir pouco e estar sempre bem desperto.

Foi dar uma aula sobre educação e direitos humanos, o que justificou, por si só, a deslocação e as mais de dezasseis horas consumidas nas viagens. A actividade lectiva que incide sobre a educação e sobre os direitos fundamentais é importantíssima e é cada vez mais difícil encontrar docentes que a ministrem. Aproveitou para estar presente no jogo da selecção, apoiando os seus jogadores e satisfazendo a sua necessidade de algum lazer, fazendo uma pausa e retemperando forças para chegar ao fim do seu mandato com a capacidade e a dignidade em alta, como até aqui.

No ínterim, a Judiciária desencadeou uma operação contra os proxenetas da mão de obra, dando indicação de que, finalmente, se irão tomar medidas para acabar com este "putedo". É mais do que tempo de parar com o aluguer de gente como máquinas que se armazenam em barracões por todo o país, alguns até nesta cidade oestina.

Infelizmente, Marcelo não pôde comentar esta operação, não por falta de vontade mas apenas por, como toda a gente sabe, ele não fazer comentários sobre a situação interna quando se encontra no estrangeiro ...

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

(...)11 de Agosto

Não há nessa carta nada que não pudesse ser dito na volta, uma vez que ele desce daqui a três dias. Creio que ele cedeu ao desejo de ser lido por mim e de me ler também. Questão de simpatia, questão de arrastamento. Vou responder-lhe com duas linhas ...

... Lá vai a carta; respondi-lhe com trinta e tantas linhas, dizendo-lhe cousas que busquei fazer alegres, e com certeza saíram quase amigas. Concordei que Nova Friburgo era delicioso, e concluí por estas palavras: <<Quando descer venha almoçar comigo; falaremos de lá e de cá.>>

17 de Agosto

Fidélia chegou, Tristão e a madrinha chegaram, tudo chegou: eu mesmo cheguei a mim mesmo - por outras palavras, estou reconciliado com as minhas cãs. Os olhos que pus na viúva Noronha foram de admiração pura, sem a mínima intenção de outra espécie, como nos primeiros dias deste ano. Verdade é que já então citava eu o verso de Sheley, mas uma cousa é citar versos, outra é crer neles. Eu li há pouco um soneto verdadeiramente pio de um rapaz sem religião, mas necessitado de agradar a um tio religioso e abastado. Pois ainda que eu não desse então toda a fé ao poeta inglês, dou-lhe agora, e aqui a dou de novo para mim. A admiração basta.

19 de Agosto

Tristão veio almoçar comigo. A primeira parte do almoço foi a glosa da carta que ele me escreveu. Contou-me que já em criança tinha ido com a madrinha a Nova Friburgo algumas vezes, parece-lhe que três: reconheceu a cidade agora e gostou muito dela. De D. Carmo fala entusiasmado; diz que a afeição, o carinho, a bondade, tudo faz dela uma criatura particular e rara, por ser tudo uma espécie também rara e particular. Referiu-me anedotas antigas, dedicações grandes. Depois confessou que as impressões da nossa terra fazem reviver os seus primeiros tempos, a infância e a adolescência. O fim do almoço foi com o naturalizado e o político. A política parece ser grande necessidade para este moço. Estendeu-se bastante sobre a marcha das cousas públicas em Portugal e na Espanha; confiou-me as suas idéias e ambições de homem de Estado. Não disse formalmente estas três palavras últimas, mas todas as que empregou vinham a dar nelas. Enfim, ainda que pareça algo excessivo, não perde o interesse e fala com graça. (...)

Memorial de Aires
Machado de Assis

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Mundial 2022

Da esquerda para a direita, aqueles sobre quem recai a responsabilidade de trazer para Portugal o melhor resultado possível.

Em cima: José Sá, André Silva, Ruben Dias, William Carvalho, Cristiano Ronaldo, Rui Patrício, Pepe, Danilo Pereira, António Silva, Rafael Leão e Diogo Costa;

Ao centro: Diogo Dalot, Matheus Nunes, Bruno Pereira, Jorge Rosário, Ilídio Vale, Fernando Santos, João Costa, Ricardo Santos, Gonçalo Ramos e João Palhinha;

Em baixo: Vitinha, Ricardo Horta, João Felix, João Cancelo, Bruno Fernandes, Bernardo Silva, Raphael Guerreiro, João Mário, Ruben Neves, Otávio e Nuno Mendes.



PORTUGAL - 3 / Gana - 2

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Futebol

O comboio não ia cheio, longe disso. Porém,  a julgar pelo barulho que se ouvia de dentro da carruagem, os poucos passageiros eram suficientemente ruidosos para se julgar que até haveria gente a mais. 

Naquela carruagem não estariam mais de uma vintena de pessoas, distribuída pelos vários bancos, sempre no singular, salvo as que pertenciam à mesma família ou à tentativa de a vir a constituir. Lá ao fundo, no átrio de acesso ou de saída, um grupo, pequeno, discutia, bem animado, os últimos resultados do futebol, a justiça dos mesmos, o falhanço do penalty, o erro do árbitro no off-side. Afinal, o barulho imenso que se ouvia era apenas daquela meia dúzia, todos bem dotados de garganta e de velocidade de argumentação, sempre sobreposta na do parceiro, tornando a conversa uma gritaria que mais ninguém conseguia compreender. A preocupação era gritar mais alto, sempre mais alto, cada vez mais forte. Pouco importavam os argumentos, as expressões, as frases. Os gestos, os esgares, os pontapés no ar e, por vezes, na carruagem, eram a expressão dos afectos pela discussão enriquecedora e interpretativa, num espectáculo para outrem usufruir, obviamente sem qualquer prazer.

O "pica" entrou na carruagem, munido do necessário alicate, irrepreensivelmente fardado e com o seu boné castanho, com emblema, na cabeça, exibindo autoridade  e mostrando à evidência que a CP lhe tinha confiado a manutenção da ordem pública dentro do comboio. Todos lhe teriam de mostrar o bilhetinho, pequenino, adquirido na estação onde haviam entrado e mencionando aquela onde saltariam para fora. Era esse minúsculo papel que lhes garantia o direito de viajar.

Mal o "pica" assomou ao corredor, o barulho lá do fundo cessou como que por milagre. O "jogo" tinha acabado e os participantes preocupavam-se em sair rapidamente do "campo". Não havia saída ...

- São vinte escudos a cada um, para não os entregar à Polícia na próxima estação.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Conversa fiada

A manhã ainda não ia a meio. Apesar da chuva inclemente e da ausência da luz do sol que é lenitivo para a disposição, já havia quatro pessoas no balneário masculino, a despachar-se após umas braçadas  madrugadoras e tonificantes.

Gente nova, com conversas fora da caixa, sem problemas nem constrangimentos com a presença de quem tem idade para ser pai (ou avô?) deles. Enquanto se ensaboam, fechando sempre a água, a conversa vai fluindo, rápida, tipo fixe.

- Não vais a Lisboa hoje?

- Vou, claro. Daqui a bocado, por volta do meio-dia.

Nadar um bocado tinha trazido a tranquilidade que a água do chuveiro, quentinha, ainda reforçava.

- Hoje vou experimentar um transporte novo.

- Não me digas que vais de carro?

- Estás tonto ... nem pensar. Mal sentas o cu no carro e já lá vão trinta euros. Vou num autocarro de uma empresa nova que faz a viagem até à estação do Oriente, sem paragens. Uma hora e cinco. Um instante. Já comprei o bilhete na aplicação. Dois euros e picos, imagina!

- Isso é muito bom. E qual é a empresa?

- Chama-se Flix Bus e são uns autocarros verdes, enormes. Vou experimentar hoje. Vamos ver como corre.

 - Depois dizes. Hoje fico por cá. 'tou em teletrabalho.

A água do chuveiro já tinha tirado o sabão, o meu e o dos jovens conversadores. A conversa continuou enquanto a toalha fez a sua parte e o corpo ia sendo coberto com a roupa necessária para enfrentar o "inimigo" que lá fora continuava a fazer das suas. Rapidamente mudou e o assunto passou a ser o futebol e a falta de tempo para ver os jogos.

- Estou a tentar ver na quinta-feira, mas ainda não tenho a certeza se posso.

O velho meteu o bedelho e foi integrado, sem quaisquer problemas, na conversa.

Apenas teve alguma dificuldade em explicar que tempo para ver a bola é coisa que lhe não falta. É a vida!

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

A tempo

Com o inverno instalado e o campeonato do mundo de futebol a começar, estão reunidas as condições para que as saídas sejam curtas e apenas quando estritamente necessárias.

A lareira já funciona, proporcionando uma temperatura que não é sequer comparável à que está lá fora, e, pelo menos por enquanto, a chuva não tem acesso ao interior. Tudo conjugado, há um convite ao borralho, ao sossego, à mandriice, à música, à leitura, tarefas extenuantes e exigentes, que deixam o pobre humano depauperado e contribuem para uma noite de sono sem sobressaltos.

Toda esta actividade faz com que se esfumem os ecos da guerra e da inflação. Não se perde tempo a ouvir a discussão do Orçamento nem se liga peva à capacidade literária do ex-governador do Banco de Portugal, que "pariu" um livro volumoso, com recurso a barriga de aluguer. Feitios ... vale mais tarde que nunca e, pelo interesse e destaque que a obra tem merecido nas parangonas, é "dinheiro em caixa", polémica para durar e entrada na história da literatura de cordel, com todo o respeito pelo género. Há sempre quem queira ficar na História pelo que diz que fez. Se não fez, a culpa não foi sua. Vontade tinha ...

Pensando bem, o livro chega a tempo de ainda assistir ao julgamento de Ricardo Salgado e, quem sabe, pode até servir para esclarecer as dúvidas que têm surgido e para fundamentar a sentença que, um dia, talvez seja proferida.

Tenho cá um palpite que o jornalista autor do livro poderia ter escrito o dobro das páginas, ou mais um volume, se tivesse pedido para consultar as actas da administração do Banco de Portugal da época. Lá deve estar tudo clarinho como água ... ou não.

domingo, 20 de novembro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Abençoada seja, pois, a juventude com sua beleza, sua inocência e sua roupa escassa, seus braços à mostra e suas pernas despidas, sem frio e sem calor, sem queixume e sem dor nenhuma. Depois daqueles cinco rapazes e três raparigas, a nova equipa foi ainda reforçada com a chegada de uma Margarida e uma Duriel, e a tunisina Maha, e todos em conjunto produzem alguma coisa de tal modo preciosa, que tudo mudou no Hotel Paraíso. Falo com as minhas três companheiras de mesa e elas sentem isso mesmo, que as paredes parecem mais lavadas, e no entanto sempre alguém as lavou com o mesmo Fabuloso Aroma do Bosque. E também o chão e as portas brilham com mais intensidade, mas toda a gente sabe que o motivo desta mudança reside no sorriso destas grandes crianças, mulheres e homens, que aqui chegaram e a quem apetece chamar netos e netas, filhos e filhas. Trazem o futuro com eles, e assim, à nossa volta, tudo recomeça, nada termina. Nada termina, diz a juventude. Um passarinho azul canta em cima da cabeça de cada um deles. Trinados. Alegria. Abençoados sejam estes jovens por nos trazerem consolação. Eu esperava por este momento, e ele chegou a tempo. Arrependo-me das minhas horas mesquinhas em que me deixei arrastar pela tristeza. Não tenho motivos. A alegria de ter estes jovens a passear pelos corredores desta casa deu-me uma força que eu julgava já não possuir, de tal modo que ontem consegui caminhar por mim só, entre a cama e a cómoda.

Agarrada ao tampo, fiquei durante uns instantes diante do espelho, em pé, e para espanto meu, vi o desenho da minha alma reproduzido nele. Já não são os meus traços nem os meus cabelos, mas é o meu carácter, alguma coisa que se desenha entre a risca dos lábios e o arco onde antes os olhos brilhavam. De azul. Disse para a minha imagem - Olá, ainda aí estás, Alberti? E apesar de me achar feia, ainda gostei de mim. Congratulei-me por existir. E mantive esse sentimento, quando ontem nos levaram até ao jardim na parte que olha para a barra do mar. Por cima do Hotel Paraíso, nuvens brancas como se fosse Agosto, nem um rasto de água. (...)"

Misericórdia
Lídia Jorge
D. Quixote (2022)

sábado, 19 de novembro de 2022

Acentos

Entrou na agência com ar de quem não se sente à vontade, apesar do corpanzil, enorme, de que era dono. O nervosismo era evidente e chamou logo os holofotes da atenção de quem tinha obrigação de a prestar ao que se passava.

- Bom dia. Faça favor ...

- Abrir conta ... patrão mandou.

Foi-lhe indicado caminho para a secretária. Sentado, ficou mais tranquilo e, apesar de não dominar bem a língua, falou sempre em português e conseguiu fazer-se entender.

- Ucrânia. Estou Portugal dois anos. Patrão novo, mandou abrir conta, receber ordenado.

- Tem o passaporte e o cartão de contribuinte?

- Sim, claro.

Abriu a carteira, retirou os dois documentos e disse:

- Não ri ...

Não percebi. Julguei que tinha utilizado o verbo rir por engano. O atendimento tinha sido normal, sem excessos, sem qualquer motivo para risos. Adiante ...

Abri o passaporte. A foto correspondia e, logo abaixo, lá estavam o nome e o apelido, em ucraniano e em inglês. Os olhos, que não pescavam nada do ucraniano, saltaram de imediato para o inglês.

- Surname: Camara

- Name: Fode 

Registo feito, o banco ganhou mais um cliente, que se portou sempre bem enquanto por lá andei.

Eu, apesar de muitas vezes conversar com o homem, nunca consegui compreender a razão pela qual a falta de um acento circunflexo no apelido me haveria de provocar risota.  

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A guerra e a informação

Por aqui já foi referido várias vezes que sou leitor do Expresso desde 1973, sem que Francisco Balsemão saiba ou com isso se preocupe. Concordando ou discordando, com altos e baixos, vou cumprindo, com gosto, o ritual de o comprar, agora à sexta-feira. O sentimento que a coluna de Miguel Sousa Tavares me causa é similar ao que acontece com o jornal no seu todo: às vezes concordo, outras nem tanto, outras ainda, menos, discordo em absoluto.

Esta semana, Miguel Sousa Tavares explana a sua opinião sobre a guerra e, no final da crónica, ainda dá uma boa "bicada" no Mundial do Catar. Porque tudo é efémero e daqui a algum tempo, quando a guerra acabar - como espero e desejo eu - haverá muita gente a dizer que previu tudo, ficam por aqui uns excertos de um texto bem escrito, como sempre, e com opinião fora da caixa monolítica onde parece que uma grande parte dos opinadores caíram.

"(...) Que este estranho incidente tenha ocorrido quando os grandes do mundo estavam reunidos do outro lado do planeta e numa altura em que, em surdina ou a meia voz, se começou a ouvir falar da necessidade de encontrar um caminho para desbloquear a guerra na Ucrânia foi, decerto, uma coincidência, e não mais do que isso. Mas o que não é coincidência é a "precipitação" de Zelensky e de Stoltenberg: nenhum deles está interessado na paz e sentiram o perigo que os últimos desenvolvimentos internacionais trazem aos seus objectivos. (...)

Não há nenhuma contestação séria sobre quem foi o responsável último por esta guerra, sobre quem invadiu quem: foi a Rússia, de Putin. Diferente é a discussão sobre as razões que conduziram a tal, onde coexistem diversas versões e opiniões, e a discussão sobre o que foi ou não foi feito pelos poderes ocidentais para evitar a guerra: em minha opinião, nada. Mas, independentemente disso, repito o que já aqui escrevi: não me lembro de alguma vez ter assistido a um grande acontecimento internacional coberto com tamanha unilateralidade e falta de isenção jornalística e opinativa por parte da chamada "imprensa livre". Nunca vi tamanha promiscuidade entre propaganda e informação, tamanha falta de contraditório, de verificação de fontes, de "fact checking", de ir para além das aparências e do pronto a consumir, de procurar o que está escondido, de fazer as perguntas difíceis, de questionar a verdade oficial. (...)

E esta é a altura certa para tentar desbloquear uma guerra cuja continuidade sem fim à vista só interessa aos poucos que estão a ganhar milhões com ela à custa dos milhões que estão a ser sacrificados por ela. Até porque um dia é inevitável que aconteça um acidente com um verdadeiro míssil russo transviado, e aí já sabemos que há gente ansiosa por essa oportunidade de ouro para nos precipitar no abismo.

2. Vai começar o regabofe patriótico do Mundial. E para dar o exemplo a partir de cima, lá vão as três principais figuras do Estado fazer o sacrifício do Catar: PR, PM e PAR. E lá veremos também, no camarote de honra, o dr. Arnaut, presidente da Assembleia-Geral da Federação Portuguesa de Futebol e também presidente dessa outra instituição de bem-fazer que é a ANA - Aeroportos, uma empresa que actualmente reclama em tribunal €300 milhões ao Estado português por lucros cessantes durante a pandemia. Meus senhores, o que pensam que nós achamos disto?

Uma pausa na loucura?
Miguel Sousa Tavares
Expresso (18.11.2022)

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Vespas

Surgiu do nada, sendo que esse nada foi algo de palpável ou resultado de distração: porta aberta, janela entreaberta, qualquer objecto vindo de fora e ela aproveitou a boleia. Era a possibilidade de conhecer novos caminhos, novas paisagens, outros costumes.

Não há certeza sobre a forma como apareceu no vidro da janela, subindo e descendo de forma vagarosa, como a deliciar-se com o passeio mas buscando a liberdade que a luz do dia lhe indicava, apesar da chuva incessante. 

- Olha uma vespa! É enorme!

Era bem maior do que aquelas que aparecem normalmente no jardim e que por lá permanecem sem causarem qualquer dano, embora, por vezes, se devam arreliar com as primas abelhas, na disputa do pólen de melhor qualidade. A preocupação de evitar o seu desaparecimento da natureza condicionou a racionalidade do perigo que ela transportava, sentindo-se aprisionada e perturbada.

Abriu-se a janela, tentando que, sem chegar perto e sem movimentos bruscos que a assustassem, ela descobrisse, com o seu radar próprio, o caminho para o sítio de onde tinha vindo ou algum parecido. O semáforo não funcionou e a seta, virtual, que lhe foi apresentada foi ignorada por completo. A aflição começava a dar sinais.

- Vai buscar um pano, pega-lhe e manda-a pela janela.

Há muitos anos que não era picado por uma vespa. Lembrava-me bem da última vez e das dores que me tinha causado. A racionalidade não esteve presente e o pano não criou a protecção necessária. A vespa não perdoou a ousadia e ferrou o dedo com tal violência que o pano, com ela dentro, voou pelo quintal fora.

Não faço ideia se, como se diz, ela morreu depois de ferrar o "dente". Isso já não me preocupa, até porque o Código Penal, que eu saiba, ainda não prevê que possa constituir crime sacudir para longe uma simples vespa.

O que sei é que já passaram quase dois dias, já coloquei vinagre várias vezes, apertei com uma faca, coloquei gelo, besuntei com Fenistil e o "pai-de-todos", esse dedo fundamental para a linguagem gestual dos machos, ainda não me deu descanso, continuando a trazer a vespa à minha mente, sem contemplações e com dores suficientes para eu não a esquecer.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Centenário

Se ainda por cá estivesse, o nosso Nobel da Literatura sopraria hoje 100 velas no bolo de aniversário. Talvez aproveitasse para fazer um discurso deixando alertas, recomendações, reprimendas, sugestões a todos nós, aproveitando para lamentar a forma como nos comportamos e como estamos a enterrar o futuro.

No ano passado, para assinalar esta mesma data, escolhi o texto que, sobre esta cidade, nos deixou na Viagem a Portugal. Lido agora, até parece que não passaram quase trinta anos.

Hoje fica registado um pedacinho da História do Cerco de Lisboa, para aguçar o apetite a alguém mais desatento ou distraído, que ainda não o conheça.

"(...) Agora sentado à secretária, com as provas do livro de poesia diante de si, segue atrás do pensamento, ainda que talvez fosse mais exacto dizer que o antecede, pois, sabendo nós como o pensamento é rápido, se nos contentamos com ir atrás dele em pouco tempo perdemos-lhe o rasto, ainda estamos a inventar a passarola e já ele chegou às estrelas. Raimundo Silva tenta, pensando e repensando, perceber por que desde as primeiras palavras não pôde reprimir a agressividade, Não sabe o que é o deleatur, incomoda-o sobretudo a lembrança do tom com que atirou a pergunta, provocador, mesmo grosseiro, e depois o duelo final, os inimigos, como se houvesse ali uma questão pessoal a dirimir, um rancor velho, quando se sabe que estes dois nunca se encontraram antes, e, se sim, não deram um pelo outro, Quem será ela, pensou então Raimundo Silva, ao pensá-lo afrouxou, sem dar por isso, a rédea com que vinha guiando o pensamento, foi quanto bastou para que ele lhe passasse à frente e começasse a pensar por conta própria, é uma mulher ainda nova, menos de quarenta anos, não tão alta como primeiro lhe parecera, o tom da pele mate, os cabelos soltos, castanhos, os olhos da mesma cor, um nada menos escuros, e a boca pequena e cheia, a boca pequena e cheia, a boca pequena, a boca, cheia, cheia. Raimundo Silva está a olhar a estante que tem em frente, encontram-se ali reunidos todos os livros que reviu ao longo duma vida de trabalho, não os contou mas fazem uma biblioteca, títulos, nomes, ele é o romance, ele é a poesia, ele é o teatro, ele são os oportunismos políticos e biográficos, ele são as memórias, títulos, uns célebres até aos dias de hoje, outros que tiveram a sua boa hora e para quem o relógio parou, alguns ainda suspensos do destino, Mas o destino que temos é o destino que somos, murmurou o revisor, respondendo ao que antes pensara, Somos o destino que temos.

História do Cerco de Lisboa
José Saramago
Caminho (1989)

terça-feira, 15 de novembro de 2022

FDJ

Folhear jornais, e lê-los, é tarefa cada vez menos vulgar e não tardará muito tempo que seja considerada completamente anacrónica, fora de moda, inconcebível, própria de velhos parados no tempo. Apesar de ter consciência disso, continuo a ser teimoso e a ler alguns jornais que  vão mantendo (ou esforçando-se por isso) o jornalismo com algum nível.

Se não fosse esta minha teimosia, nunca teria chegado ao meu conhecimento que pertenço à FDJ e tenho como companheiro Miguel Esteves Cardoso, o que não o abona a ele em nada, mas a mim me dá um prestígio incomensurável. É da autoria deste meu "confrade" a crónica que todos os dias o jornal Público insere nas suas páginas sob a designação "Ainda ontem". Hoje, o texto intitula-se "O flagelo da FDJ" e, com a devida vénia e a inveja de não saber escrever assim, aqui o deixo transcrito.

" Desde miúdo que pertenço à FDJ. Foi quando fiz a minha primeira torrada que os meus pais me inscreveram. Desde aí, sempre que posso, tenho promovido os valores da FDJ. Quando me perguntam pela sigla do crachá, ou das decalcomanias na minha mochila, digo que são da Federação da Juventude. Mas os sócios que me estiverem a ler saberão que, na verdade, correspondem a Falta de Jeito.

Quando Chico Buarque canta O meu amor, as palavras entram-nos pela consciência adentro: "O meu amor tem um jeito manso que é só seu ...". Mas a falta de jeito não lhe fica atrás: também é só minha.

Lembro-me do meu pai a tirar-me o quebra-nozes ou o berbequim ou o tira-linhas das mãos e, olhando para a cagada feita, exclamar: "Mas que falta de jeito! Chega a ser espantoso como é que um só ser humano consegue ter tanta falta de jeito". 

Começava a angústia genética: "Mas de onde é que tu herdaste essa falta de jeito? Dos teus pais, não foi. Dos teus avós, tão-pouco. Mas então de onde? Qual foi o borra-botas do antepassado que te inquinou com tanta falta de jeito, santo Deus?".

A minha mãe defendia-me, mas só superficialmente, sem convicção, alegando que eu não tinha FDJ - o que era era canhoto.

Mas não é por ser-se canhoto que se tem FDJ. O que não faltam por aí são canhotos maneirinhos, cheios de habilidades, capazes de tocar a Scheherazade de Rimsky-Korsakov com um abre-latas e um fio de pesca.

O primeiro choque do portador de FDJ é descobrir que não tem cura. Pois a FDJ tem o espantoso condão de se moldar a qualquer actividade humana. As palavras mais dolorosas que um portador de FDJ pode ouvir, ao tentar (debalde) executar uma tarefa são: "Não se preocupe. É só uma questão de jeito ..."

Pois é, lá isso é, amigo, está bem visto, sim senhor: é tudo uma questão de jeito.

É tudo uma questão de jeito até a pessoa amada se virar para nós e sibilar: "Sai daí! Tu afinal não tens jeito nenhum!". É que ninguém acredita quando dizemos que temos FDJ. Mas temos. "

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Memória

Por mais que se tente fugir, num encontro de septuagenários, as conversas encaminham-se sempre para as doenças e para as recordações que permanecem bem presentes embora sejam de há muito, muito tempo.

- Disso, lembro-me perfeitamente ... não me perguntes o que almocei ontem.

A referência aos lapsos de memória do que se viveu ontem, por vezes ao que se passou há momentos, a baralhação dos nomes, a palavra debaixo da língua que teima em não sair e só (res)surge quando já não é necessária,

- Desculpa lá interromper ... lembrei-me agora do que queria dizer há bocado

um sem número de situações que todos conhecemos, já vivemos e cuja aparição parece, ao que dizem, ser normal e sem terapêutica conhecida. 

Comparando com os computadores, parece que a situação memorial é mais ou menos similar, salvo a solução. À medida que a capacidade de armazenamento se vai aproximando do limite, a memória da máquina começa a ter dificuldade em encontrar o pretendido, demora mais tempo, baralha-se, perde informação, "queixa-se", solicita actualizações, diz que é tempo de libertar espaço. O recurso à "nuvem" ajuda a que a sua acção seja simplificada, facilitada e sem preocupação de "ver" apenas com os seus "olhos". O arquivo passa lá para cima e, lá de cima, até vêm notícias e respostas. Em último recurso, adquire-se outro (sem necessidade de ir à loja) e ... tudo como dantes, quartel-general em Abrantes.

O computador continuará com uma boa memória, acederá ao "além", obterá cada vez mais respostas, terá cada vez mais capacidade de segurar os conhecimentos e de os alardear.

Os "jovens" septuagenários já só se apresentam com uma vaga ideia 

- Eu sei isso ... mas não me vem à cabeça.

domingo, 13 de novembro de 2022

Palavras bonitas

 FAMÍLIA

Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda a noite
e a mulher que trata de tudo.

O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.

Vai, Carlos!
Carlos Drummond de Andrade
Tinta da China (MMXXII)

sábado, 12 de novembro de 2022

Evolução

À medida que os anos vão passando, a necessidade de dormir vai diminuindo, proporcionando, assim, mais tempo ao pensamento, ainda que este não o aproveite como devia e era suposto acontecer.

Vivemos na sociedade do efémero, onde a notícia de há pouco já está ultrapassada e, as mais das vezes, esquecida. Outros valores mais altos se alevantam ...

Se é assim para quem ainda vai procurando estar atento ao que é noticiado, o que acontecerá a uma grande parte que consome as suas horas de ócio - e muitas de trabalho - a dobrar a cervical e a usufruir esse singular prazer oferecido pelo aparelhinho que, dizem, Alexander Bell inventou. Evoluiu tanto, mas tanto, que serve para tudo, até para fazer chamadas telefónicas.

Apreciar esses teledependentes na rua é tarefa facílima e com piada, sem haver necessidade de procurar muito para encontrar exemplares ao virar da esquina. No passeio, o homem lá segue completamente absorto, decerto esperando que o barulho dos pés do outro o alerte e a colisão se evite; na passadeira, a menina nem olha para o trânsito, confiando que, se houver algum condutor distraído, o aparelhinho lhe dará a informação e evitará o acidente.

Vamos andando, ouvindo que o telemóvel novo é Bué da fixe, tem uma câmara tipo máquina que tira fotos muita giras e até faz filmes bué top.

- Já sabes daquilo?

- Claro! Vi no Face, mas no Insta estão bué fotos.

- Parece que ela, agora, vai pôr no Tik. Vai ser bué da fixe!

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Escadas

Com a facilidade própria dos cerca de quarenta, o homem sobe a escada, salta para o telhado e inicia a tarefa de que está incumbido, evidenciando destreza e causando inveja a quem já a teve e ainda imagina que ela se possa manter e permitir alguma veleidade.

O objectivo é verificar se haverá alguma telha partida, que tenha provocado a infiltração surgida na cozinha. Coisa simples. Difícil é conseguir ver as telhas partidas que se encontram na cabeça de muita gente que por aí anda ...

A escada está colocada, não mexeu nem um milímetro com a subida e os degraus desafiam a aventura, acicatada pela saudade de anos passados. No meu tempo ...

Sobe-se sem qualquer problema. Os olhos analisam o telhado, verificam o que quem sabe executa, extasiam-se com a paisagem que, daquele ponto alto e habitualmente inacessível, se consegue observar. Afinal, continua fácil ...

Está na hora da descida e os olhos, ao invés de continuarem a espreitar a paisagem no horizonte, resolvem dar uma olhadela lá para baixo, para aquele fundo que, estando perto, parece tão distante. Intui-se que não há qualquer problema, para quem nunca sofreu de vertigens ou outras coisas parecidas. 

O formigueiro aparece de imediato. As pernas não tremem, a escada não abana, mas surge uma sensação desagradável. Medo, receio, "cagufa", "treme-treme", inquietação ... O perigo pode estar à espreita, diz a voz instalada bem lá dentro, num sussurro que mais ninguém ouve. E se a escada escorrega? E se falhas um degrau? E se ...

Já não tens idade para subir escadas ... uma evidência!

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Privilégio

O "aviador" , fazendo inveja em muita gente cá de baixo, admira a beleza à sua volta, desfruta de uma vista admirável à sua frente, pode até admirar as ondas que rebentam debaixo dos seus pés e, para cúmulo, tem o sol a presenteá-lo com um quadro invulgar e belíssimo.

Sortudo!

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Memória

Seu nome era Gal ... 

Gal Costa partiu hoje, aos 77 anos. Uma das melhores vozes da música popular brasileira, que me habituei a ouvir e faz parte do "arquivo" histórico.

Ficam as músicas, da Índia ao Folhetim, a voz, doce, e a recordação.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Já está a caminho do "compartimento familiar", onde se juntará aos outros seus "irmãos", a quem nada fica a dever. É mais um excelente livro de António Lobo Antunes, confirmando, se necessário fosse,  a minha opinião de que se trata do melhor escritor português vivo, único na forma como conta, expõe e concretiza. Neste livro, a solidão é rainha e, embora a medida sejam "os estalos dos móveis à noite", os entretantos são tantos, tantos, tantos, que a não deixam isolar-se e muito menos sufocar-se devagarinho.

"(...)

- Pai

que ganas de tirar-te de novo o nariz apertando-o entre o pai de todos e o fura bolos dobrados, mostrar-te a pontinha do mata pulgas e piolhos entre os outros dois, guardar aquilo tudo no bolso e exibir-te a mão aberta e vazia prometendo

- Se te portares bem dou-to quando fizeres dez anos

enquanto os teus olhos, iguais aos meus coitados, se envidraçavam de lágrimas e o teu lábio inferior principiava a aumentar, até que um pedido de socorro te rasgava de cima abaixo

- Mãe

e a tua mãe na entrada da cozinha, com um tacho ou outra coisa do género na mão, a arredondar-se de zanga para mim

- Francamente

a mostrar-te a tua cara num espelho

- O teu nariz está aqui rapariga ninguém tira narizes

contigo a palpares-te desconfiada

- Este é o meu de certeza?

a meter-me a mão na algibeira para se certificar e, em lugar do nariz, trazendo de lá um cartão escrito numa caligrafia trabalhada que a tua mãe, ao ver-me a cara, puxou logo antes que eu conseguisse apanhá-lo, e de braço dobrado para me manter à distância leu alto

- Sexta feira às dezanove no sítio do costume Nené

e começou a rasgá-lo em pedacinhos que iam caindo numa cascata lentíssima, enquanto dentro de mim o meu primo Jaime, na sua voz lenta, pomposa, que encantava as senhoras e felizmente, filha, a tua mãe não ouvia

Chuva da tarde melodia mansa
Desejos vagos de chorar baixinho
Voltei aos meus caprichos de criança
Só quero, amor, saber do teu carinho

enquanto a tua mãe tentava bater-me com o espelho de pega e eu a prevenia para bem de nós todos

- Olha que partir um espelho traz sete anos de desgraça

e me defendia em cima com os cotovelos, em baixo com um joelho no ar e a tua mãe

- Malandro, malandro

a empurrar-me na direcção da porta

- Sai daqui para sempre que não te quero ver mais

a atirar-me, quando eu já nas escadas, a gabardine com o cabide lá dentro, cujo anzol de arame só por milagre não me furou um olho (...)"

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Trapalhadas

... E o burro sou eu?

Tomando como verdade o que tem sido veiculado pelos orgãos de comunicação social, a Câmara Municipal de Caminha, na altura sob a presidência de Miguel Alves que, actualmente desempenha as funções de Secretário Adjunto do Primeiro-Ministro, contratou com uma empresa a edificação de um centro de exposições, o qual, depois de concluído, seria alugado à autarquia por uma renda que deve ter sido determinada na altura devida mas cujo valor, que eu desse por isso, não foi divulgado.

Foi tornado público que a Câmara (de Caminha) adiantou trezentos mil euros por conta das rendas que, no futuro, iria pagar. Nada de anormal e tudo clarinho ...

A reduzida capacidade de discernimento impede-me de conseguir compreender as dúvidas que este processo, tão límpido, possa despertar e a necessidade de (mais) um rigoroso inquérito do Ministério Público ou da Procuradoria-Geral da República, que, por certo, irá consumir mais umas quantas resmas de papel que tanto escasseia nos tribunais.

Ora, para quem vê Caminha cá de baixo, tudo indica que a decisão foi tomada em sessão de Câmara, da qual se lavrou a competente acta, que é pública e onde constarão os pressupostos e os fundamentos da decisão; o contrato subscrito pelas partes foi elaborado pelos serviços jurídicos camarários, submetido ao Tribunal de Contas e por este aprovado; o Orçamento municipal contemplou as verbas necessárias e, provavelmente, a Comissão Europeia também deu o sim; o cabimento da verba paga foi sancionado pelos responsáveis financeiros da Câmara e pelo menos duas pessoas assinaram o cheque ou a ordem de transferência do carcanhol.

Apesar de tudo isto e da "clareza" da entrevista do responsável máximo pelo acontecido, ainda se afigura imprescindível o tal rigoroso inquérito, que terá em vista o apuramento das responsabilidades e o grau de culpabilidade de quem decidiu e assinou de cruz, sem detectar qualquer irregularidade ou conivência.

(lembrei-me agora que o Regulamento de Disciplina Militar do Conde de Lippe impunha que o Sargento da Companhia tinha de saber ler, escrever e contar por o Comandante poder ser nobre e assinar de cruz. Seguindo este preceito, todas as pessoas que exercem funções de governação no país deviam ter, pelo menos, as habilitações do Sargento da Companhia)

Cá por mim, sempre condicionado pela falta de discernimento já referida, parece-me que o inquérito não vai trazer conclusão nenhuma a não ser que, apesar de tudo ter sido pensado, decidido e concretizado de forma legal, o edifício nem sequer foi iniciado e muito menos concluído, mas que isso acontecerá em breve!

Por estas e por outras é que a desconfiança "chega" e o justo paga pelo pecador. 

domingo, 6 de novembro de 2022

Escola imaginária

Tudo parecia indicar tratar-se de uma aula normal, igual a tantas outras daquelas em que se fazem resumos da lição anterior, se esclarecem algumas dúvidas e se transmitem aos atentos alunos alguns conselhos e afirmações tendentes a despertar interesses, catapultar desejos, fomentar estudo e trabalho, em suma, uma conversa cheia de palavras e vazia de conteúdos. Ou, como diria o outro, "para cúmulo da chatice, tanto falou e nada disse".

Parecia, mas não aconteceu. O senhor professor teria almoçado mal, passado uma noite em claro ou estar toldado com algumas das muitas preocupações que lhe devem consumir quase todos os recursos cerebrais e, do alto da sua cátedra, esteve desastrado e muito pouco feliz na forma como, perante uma assistência de alto gabarito, se dirigiu à aluna, advertindo-a sem aviso, sem dó e nem uma pontinha de piedade. 

- A menina fique sabendo que eu não lhe perdoo se não souber, de cor, a tabuada dos oito e os afluentes do Douro. Espero que a menina tenha tudo na ponta da língua e que, no dia do exame, ele apareça resolvido com cem por cento de aproveitamento. Não há desculpas para não executar o seu trabalho, tanto mais que só veio para a escola porque quis, não foi obrigada. E deixe-me também dizer-lhe que, se assim não acontecer, abro a gaveta da secretária, saco a régua que por lá está sempre à espera e as suas mãos não mais a esquecerão. Recomendo-lhe juizinho e, fique sabendo, na próxima quarta-feira, na reunião com o seu encarregado de educação, vou transmitir-lhe, tim-tim por tim-tim o aviso que agora lhe deixo.

sábado, 5 de novembro de 2022

Soninho

O espectáculo começa dentro de momentos. Agradecemos que desliguem os telemóveis. Não é permitido filmar ou fotografar durante todo o espectáculo.

As luzes apagam-se. A conversa com o "vizinho" termina. Há ainda um pequeno sussurro na sala, que depressa desaparece. No palco, os projectores acendem, levando feixes de luz direccionados aos locais onde os artistas tomarão o lugar que lhes está destinado.

São quatro e formam o Júlio Resende Fado Jazz Ensemble que, na noite de ontem, deliciou (quase) todos os espectadores que foram ao CCC. Júlio Resende ao piano, acompanhado da guitarra portuguesa superiormente tocada por Bruno Chaveiro. André Rosinha ilustrou bem que o contrabaixo é um grande instrumento, não só no tamanho. Alexandre Frazão deu um espectáculo dentro do outro, ao mostrar que é possível tocar bateria e deixar para os outros o acompanhamento. Foi a evidência, para quem ainda tivesse dúvidas, que, quando se é bom e se sabe o que se está a fazer, não importa se o estilo é fado, jazz, blues ou outro qualquer. A música feita ou é boa, como foi o caso, ou não presta.

Pouco tempo depois de aquela maravilha estar em curso, "espreitei" o meu "vizinho", com quem tinha mantido um diálogo de circunstância enquanto se aguardava o início. Nada fazia prever o que viria a acontecer. A conversa tinha decorrido fresca e o "vizinho" estava esperançado em ter uma bela noite, embora fosse a primeira vez que ouvia aqueles músicos. 

O "canto do olho" tinha-me sugerido que a cabeça lhe estava a pender para o peito. Pois ... estava a dormitar, ou a dormir, ou a ferrar o galho, ou a descansar, ou a meditar, ou, mais simples, a fazer ó-ó. A música acabou, as palmas soaram fortes e o "vizinho" também aplaudiu com força, embora iniciasse os aplausos com algum atraso.

Foi apenas um descuido, talvez fruto do cansaço do dia ... de reformado. Por vezes, mesmo quem não tem nada que fazer, tem muito trabalho ...

Concentrei-me na qualidade do que vinha do palco, que era muita. Não tardou muito que o "canto do olho" se apercebesse do percurso "cabeçal" e do encerramento das pálpebras. E assim foi, até ao fim, ou quase. Dorme, bate palmas, dorme, bate palmas, ...

Quando se aplaudia a pedir "mais uma", desejou boa noite e saiu pela "esquerda baixa".

O sono apertava e era urgente chegar a caminha, não a do Minho mas a oestina.

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Fim de tarde

Do alto da colina onde se encontra o Hotel Inatel da Foz do Arelho desfruta-se uma vista soberba por toda a Lagoa e, perscrutando à direita, lá para o fundo, vêem-se surgir as Berlengas, hoje envoltas numa pequena mancha de nevoeiro. Em outros dias, a bruma aparece tão forte que as faz desaparecer da vista, mantendo-as no coração, naturalmente. 

Sossegadinhas, as ilhas aguardam que o sol nelas se vá esconder e sossegar.

Hoje ficamos por aqui.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Regras de brincar

Na época, os computadores não eram sequer uma miragem e telefones, fixos, apenas havia em algumas casas abastadas. Era um aparelho preto, com um disco para marcar o número pretendido, se a chamada fosse local. Se não, o zero era marcado e aguardava-se que a voz, simpática, de uma menina, ouvisse o número e estabelecesse a ligação.

Não era a época de D. Afonso Henriques mas, contado assim hoje, convenhamos que parece mesmo. Os jogos não eram de computador, de telemóvel, muito menos de consola. Não se brincava nem se jogava noutro sítio que não fosse a rua. Dos pontapés na bola de trapos à bilharda, do pião ao berlinde, do salto ao eixo à "carne sem osso", tudo se disputava no estádio ao ar livre.

Havia épocas para cada brincadeira e apenas a bola permanecia activa o ano inteiro. Os outros tinham a sua altura própria, que não constava do calendário, mas que todos sabiam e se adaptavam. Na época do berlinde, ninguém levava o pião ou a bilharda, por ser tempo perdido. Não haveria companheiros para a competição.

O pião exigia que não houvesse chuva, para que o chão estivesse seco, permitisse marcar bem a roda e o deixasse bailar. No bolso ia sempre um pião velho, para apanhar as ferroadas determinadas pelo jogo, evitando, desta forma, o desgaste do de competição.

Naquele dia, o bolso não trouxe o velho, e o pião de competição, lindo, com um bico bem grande e afiado, teve de sujeitar-se ao castigo imposto pelo falhanço. Eram cinco as ferroadas determinadas e, à terceira, já ele estava bem castigado e eram visíveis as mazelas. A quarta e a quinta foram ainda mais "dolorosas". O adversário, batoteiro, não dava mostras de querer parar. A mão esquerda não hesitou e foi lá abaixo retirar o desgraçado, que já nem beleza tinha. E conseguiu evitar a sexta ferroada que já ia a caminho. Não acertou no pião mas atravessou o indicador. Pânico na "bancada". O pião estava espetado e foi preciso alguma força para o retirar. A "torneira" abriu-se e o sangue jorrou em abundância. Alguém, mais expedito e talvez já com experiência em acidentes idênticos, atou um lenço e a "inundação" terminou.

Depois, bem, depois foi o cabo dos trabalhos para explicar em casa o acontecido,  e suportar a colocação da  gaze com tintura de iodo e o adesivo a segurar. Alguns dias depois, a boa carnadura fez o que lhe competia, embora a cicatriz ainda por cá permaneça.

O importante foi que o pião apenas apanhou as cinco ferroadas que lhe eram devidas.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Qual lado?

Agora que a "guerra" se instalou no Brasil, com muita gente a ocupar as estradas e a bradar pela intervenção do exército, o conflito da Ucrânia passou, não para segundo plano, mas para um degrauzito abaixo.

O cepticismo, característica própria e comum dos velhos, garante que as coisas só podem piorar e que os dias que se aproximam vão ser de inverno rigoroso, mesmo que a Protecção Civil não emita alerta de nenhuma cor. 

Para agravar a situação e esclarecer bem quem não saiba, as televisões apresentam-se diariamente nos mercados, fazendo reportagens sempre muito interessantes e esclarecedoras.

- Bom dia. Em directo para a TV X, diga-me: já está a comprar menos peixe, não é verdade?

- Claro. Tem aumentado tanto ... 

- E também diminuiu a compra da carne, não é verdade?

- Pois ... está tudo pela hora da morte.

A câmara faz um grande plano e seguem-se as despedidas.

- Foi a reportagem possível, com toda a gente - compradores e vendedores - a queixar-se dos aumentos de todos os bens. É opinião unânime que, a continuar assim, não vamos a lado nenhum. Devolve-se a emissão aos estúdios. Boa tarde.

Fico intrigado. Pelos vistos, alguém teria programado uma viagem para mim e, agora, sem qualquer aviso, a mesma é anulada. Não vamos a lado nenhum,  de acordo com as palavras, singelas, do repórter de serviço e eu, submisso, sento-me no meu canto, aguardando que a guerra acabe, a inflação diminua, o vencimento aumente, o tempo melhore e os juros façam a quadratura do círculo, aumentando para quem recebe e diminuindo para quem paga, e o repórter determine, com o seu saber da experiência feito, quando me poderei deslocar a qualquer lado.

O meu sexto sentido alertou-me agora que o burro sou eu. Não entendi que o não vamos a lado nenhum era apenas uma figura de estilo. Estou mesmo velho!

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Santos

Dia de Todos os Santos, sejam eles devotos ou incréus, Manéis ou Joões, Chicos ou Zéquinhas. São todos, eu incluído, o que não abona nada a comemoração nem a torna mais importante, antes pelo contrário, como diriam alguns opinadores se, sobre o tema, fossem questionados.

Portugal é um país de Santos, ambição de muitos mas de cuja concretização poucos se podem gabar. Na Europa, devemos ser únicos ou muito perto disso; na Ásia, talvez restem ainda alguns lá por Macau e Timor; em África existirá uma percentagem tão ínfima que tenderá para zero; na Oceânia, se houver meia dúzia, já é um pau e, na América, aparecerão uns quantos que não conseguirão esconder as marcas infligidas pelos portugas que por lá passaram e deixaram semente.

As razões aduzidas mais do que justificam a ausência ao trabalho que a comemoração proporciona. Dificilmente se encontrarão outras coisas, ou temas, ou actividades, onde sejamos tão significativamente importantes e quase únicos.

Há Santos da porta para dentro, da porta para fora, longe, perto, ali, acolá, no Minho e no Algarve, nas Berlengas e nas Beiras, em Trás-os-Montes ou no Ribatejo, na minha rua e, quase certo, na viela mais estreita de Alfama, talvez até nos Farilhões. 

Para cúmulo, ainda há, por todo o lado, os Santos da casa, os quais, por mais que tentem, não fazem, nunca fizeram e não vão fazer, quaisquer milagres.