quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Quotidiano

O meu amigo ADS deu-me a oportunidade de, ontem à noite, confraternizar com o grande (até na altura) escritor cabo-verdiano Germano Almeida, que não conhecia pessoalmente e com quem apenas havia estado nos seus livros que, há muito, me habituei a ler.
Foi uma noite bem passada, saboreando uma excelente cabidela de frango e provando um digestivo caseiro, oferecido e feito por um dos convivas presentes. Fomos catorze afortunados que se sentaram à mesa, com a companhia, extremamente agradável, do escritor e da irmã.
Para além de o físico de Germano Almeida impressionar (deve medir mais de um metro e noventa), surpreendeu-me a afabilidade do escritor - apesar da gripe, forte, que o afectava - e os autógrafos pessoais que fez o favor de colocar nos vários livros que comigo viajaram, alguns já com mais de vinte anos de "casa".
Foi um privilégio e uma noite para não esquecer.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Racismo

O que se passou há dias no Estádio do Guimarães com o futebolista Marega, do FCP, deu lugar a muitas conversas, debates, opiniões, comunicados, manifestos, tomadas de posição, aberturas de telejornal, editoriais, etc.
Com miseráveis excepções, todos consideram que os insultos proferidos naquele campo, como noutros, são racismo puro, execrável e do qual todos nós temos, também, alguma culpa. 
Acontece que, por estranho que possa parecer, não é um acto isolado nem fora do comum, e apenas teve este alarido pela coragem de Moussa Marega. Não fosse a sua saída do campo e não se teria passado nada ... houve gente que estava no estádio e não ouviu nadinha!
Hoje, no carro, ouvi alguém (que não identifiquei), dizer que toda a gente que profere este tipo de insultos, sob a cobertura de multidões ou em expressões "banais" como "trabalhar é bom pró preto" ou "vai para a tua terra", devia ter, para além da responsabilidade criminal que o acto implica, a obrigação de pedir, e pagar, a pesquisa do seu ADN, para poder verificar de onde vieram e por onde andaram os seus antepassados.
Lembrei-me! Em tempos idos, a minha filha ofereceu-me o historial dos meus, as origens e os percursos de quem me antecedeu, obtidos a partir da análise e estudo do meu ADN.
Fui à procura e encontrei: data de Agosto de 2008 (como o tempo passa) e lá está registado, para que conste, um percurso que vai da África do Sul ao norte de Moçambique, passa pela Turquia e pela Ucrânia, pelo Egipto e pelo Paquistão, entre muitas outras rotas.
Qual será, afinal, a minha terra?


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Netos

"... Fica a cepa a sonhar outra aventura ..."

- Vô, vamos lá abaixo à ga_agem!
- Cuidado com as escadas, é melhor dares-me a mão.
- Não p_eciso, já sou g_ande!

- P_imeiro vamos no teu, ao pa_que.
- V_um, V_um, V_um!

Liga o carro, mexe o volante, simula meter mudanças, apita ...

- P_onto! Ago_a vamos no da avó.

A mesma coisa, com a particularidade de, neste, o cuidado ter de ser maior. Ao contrário do outro, este trabalha só com o ligar da chave e sem necessidade de carregar na embraiagem.

- P_onto! Já chega! Podes ir pa_a cima que eu fico a b_incar aqui ...

O meu Miguel faz hoje 4 anos e está cheio de confiança.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

Sem comentários porque o que por lá se passou foi tão mau, tão horrível, tão estúpido, tão cruel, que não merece outra coisa que não seja a lembrança bem viva e atenção redobrada para quaisquer instintos que possam ter a veleidade de branquear a memória. E não passaram (e ficaram) por lá apenas judeus.

(...) Correr. Ao longo do arame farpado. Não lhe tocar. As lâmpadas estão no encarnado.

Passar outra vez pelo portão para entrar. A passagem é estreita. É preciso correr ainda mais depressa. Não importa as que caem, são espezinhadas.

Correr. Schneller. Correr.

Voltar outra vez para diante dos homens que tornam a encher o avental de terra.

Têm de fazê-lo depressa, estão a levar pancada. Pazadas bem cheias, batem-lhes, batem-nos.

Uma vez o avental cheio, pauladas. Schneller.

Correr para o portão, passar sob as correias e os chicotes, correr em cima da tábua que balança e se verga. Atenção à bengala do chefe SS na extremidade da tábua. Esvaziar o avental em cima de um ancinho, correr, atravessar o portão pela passagem cada vez mais estreita - é aí que os bastões se acumulam -, correr em direcção aos homens para voltar a apanhar duas pazadas de terra, correr para o portão, num circuito ininterrupto.

Querem fazer um jardim à entrada do campo.

Duas pazadas de terra até que não são muito pesadas. Mas vão-se tornando. Pesam mais e tornam o braço anquilosado. Atrevemo-nos a segurar mal os cantos do avental para deixar cair um bocado de terra. Se uma fúria vê, bate-nos. E, no entanto, fazêmo-lo, porque é peso de mais.

Há um francês. Aldrabamos e calculamos a corrida para ser ele a abastecer-nos. Tentamos trocar algumas palavras. Fala sem mexer os lábios, sem levantar os olhos, é assim que se aprende a falar na prisão. São precisas três voltas para uma frase.

A ronda não gira suficientemente depressa. As fúrias berram mais alto, batem com mais força. Há congestionamentos porque há mulheres a cair e porque as companheiras as ajudam a levantar, enquanto as outras, atrás, empurradas pela pancada, querem continuar a correr. (...)

Auschwitz e depois
BCF Editores (2018)