sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Livros lidos (ou em vias disso)

Já por aqui disse que não subscrevo nem aplico o novo Acordo Ortográfico, por teimosia ou capricho, por não me apetecer reaprender a escrever ou por me parecer que a língua, enquanto entidade viva, do que menos precisa é de regras rígidas para aplicar a milhões de pessoas espalhadas por vários continentes. Por vezes irrita-me a facilidade com que os correctores informáticos me sublinham palavras a vermelho para, logo a seguir, ver surgir em comunicações respeitáveis o "á" sem trazer o seu companheiro "h", quando este é imprescindível. Mas isto são embirrações de velho ...
A língua portuguesa pode e deve estar sujeita à variedade dos seus falantes e não deixa de ser a mesma quer seja conversada no bonde, no autocarro, no trem ou no comboio. E por mais gente que venha de terno ou de fato, o facto é que me mantenho na minha, recorrendo ao Houaiss sempre que as palavras me escapam, venham elas de Portugal, do Brasil, de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Moçambique.
Estou a ler (mais) um livro de Milton Hatoum, escritor que já aqui referi, considerado um dos melhores escritores brasileiros vivos. A beleza do português do Brasil, que ele tão bem explicita, fica aqui reproduzida neste pequeno excerto:
"(...) Todos se reuniam na copa do casarão rosado, com a exceção do meu pai, que se ilhava no quarto ou ia passear na Cidade Flutuante, onde ele entrava nas palafitas para conversar com os compadres conhecidos, com os caboclos recém-chegados do interior, e depois caminhando até o porto para visitar armazéns e navios.
Antes do amanhecer, Emilie me acordava para colhermos as flores do jardim; depois tirávamos Samara da rede e íamos de bonde ao bairro dos franceses para comprar buquês de jasmim-porcelana e cansarias róseas. Com linha amarela e agulha de madeira fazíamos colares e adornos para serem oferecidos aos convivas, e em cada taça de porcelana Emilie arrumava uma pétala branca e espalhava jasmins-do-mato no assoalho da alcova. As mulheres da vizinhança ajudavam na cozinha, preparando e esticando a massa dos pastéis e folheados. Eram finos lençóis de trigo estendidos por toda a casa, panos translúcidos que formavam cavernas de sombra onde brincávamos de adivinhar a silhueta do outro ou de colar o rosto nas superfícies que se moldavam à pele ou cobriam a cabeça como uma máscara ou um capuz. Tio Emílio fazia as compras, matava e destrinchava os carneiros, torcia o pescoço das aves e passava-lhes a lâmina no gogó para que o sangue esguichasse com abundância, como exigia meu pai.(...)"
Milton  Hatoum
Relato de um certo Oriente
Companhia das Letras

domingo, 22 de dezembro de 2019

BOAS FESTAS

Com a simplicidade que deve ser característica nesta Quadra (e no resto do ano), ficam por aqui os votos de um BOM NATAL  e de um ÓPTIMO ANO NOVO. 
Neste registo insere-se a animação apropriada do Coro de Santo Amaro de Oeiras (actuou recentemente nas Caldas, a convite do Grupo Coral das Caldas da Rainha), e a "brincadeira" do costume, com palavras da maior poeta portuguesa e a visão, parcial, da iluminação da cidade, a qual, dizem, é a maior (ou a melhor?) de Portugal.
BOAS FESTAS


quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Patxi Andion

De acordo com as notícias de há pouco, um acidente de viação vitimou hoje Patxi Andion, mais um dos ídolos cuja voz me habituei a ouvir há muitos anos e com bastante regularidade.
Ficam os discos, ainda em vinil e a sua voz inconfundível para ser ouvida quando apetecer recordar um grande amigo de Portugal.
Fica, também, a mágoa de me não ter sido possível assistir ao concerto (foi o último cá) que deu em Setembro passado, na Aula Magna, durante o qual apresentou o seu último disco - La hora lubican.
Mas, por aqui, fica o Maestro.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Livros lidos (ou em vias disso)

Terminei ontem a leitura de um livro que o meu amigo ADS me emprestou, para que eu (re)lembrasse como era a vida no campo no século passado. Um conjunto de doze contos de José Amaro, publicados em 1973 sob o título genérico de Contos do Ribatejo.
Não conhecia o autor mas lembrei-me muitas vezes de estórias idênticas a que assisti ou tive conhecimento e que ele tão bem relata, procurando que esse relato seja pormenorizado e suficientemente descritivo, e que o leitor imagine a cena, o cenário e tenha pressa de chegar ao epílogo. Uma linguagem clara para quem é do século passado mas cuja clareza já será difícil de entender pelos jovens de hoje. A vida descrita, felizmente, alterou-se completamente e hoje já muito pouco do descrito acontece.
Fica por aqui um excerto do conto "O milagre da cabaça", no qual a "filosofia" de um bêbado é contada com um humor e um detalhe que vale a pena transcrever:
"(...)
- Eh Quirós, hoje é domingo, já foste à missa?
- Ninguém precisa d'ir à missa p'ra falar com Deus ... Se ele tá im toda a parte p'ra qu'é c'uma pessoa anda à prècura Dele?
- Mas na igreja o padre também dá conselhos.
- Mas p'ra qu'é que servem os conselhos se não há fé pr'ós seguir? De que há falta é de Deus não é de cunversa ... Lá na igreja o padre dizia-me logo ... Ó Quirós, tens de dêxar de ser bêbado! Obrigado! ... Isso já ê sabia antes dele me dezêri! ...Mas s'ê gosto mai do vinho que de Deus ... nã pode ser nada ... O qu'era preciso era ele pôr-me a amar a Deus acima de todas as coisas ... e tamém do vinho ... mas lá isso é c'o padre não é capaz ... e eu sê lá se Deus nã quer qu'ê seja bêbado? ... Ele tá a ouvir-me, tá sempre ò pé de mim e nunca me disse nada ... se calhar é por que no mundo tem que haver bêbados e calhou-me a mim ... fui escolhido por Deus ... ê valo mais c'àqueles que são iguais òs outros ... nim Deus s'alembrou deles pr'ós fazer diferentes ... Quando os gatunos vão roubar as caixas das esmolas às igrejas amam mais à melhér e òs filhos que tão com fome, do que amam os padres! ... E atão? Deus é que sabe quim precisa!...
E o Quirós ficava a dissertar horas e horas sobre o mesmo tema:
Dos que passavam uns diziam:
- Já tás como hades ir!
Mas outros guardavam para si:
- Quem sabe se tens razão! ...
Toda a gente na terra tinha ouvido dissertações do Quirós sobre a origem do Mundo, o dia do Juízo e a Paz Universal, mas um dia o Quirós deixou de se ouvir dos púlpitos populares, estava doente, já nem saía ...
O médico tinha dito que ele tinha o fígado queimado e "a barriga de água" e por isso já quase em coma queria continuar a beber vinho. Pudera, a água e o vinho sempre se misturaram bem ...
Desapareceu o Quirós das ruas da amargura, estava muito mal.
- Coitado ... Era assim mas nunca fez mal a ninguém ...
(...)

terça-feira, 19 de novembro de 2019

José Mário Branco

Partiu hoje mais um ... a pouco e pouco, os que viveram, e lutaram, contra a noite que nos apagou as luzes, nos cortou horizontes, nos quis fazer crer que o destino estava traçado, que era assim ... ou assim, nos vão deixando.
Fica a homenagem, singela mas sentida, e o desejo de que os meus netos nunca deixem de ter a possibilidade e a liberdade de fazer o que lhes aprouver.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Centenário

Passam hoje 100 anos do nascimento de Sophia de Mello Breyer Andresen.
Sophia, que tem tido lugar neste espaço por tudo e por nada, deixou uma obra ímpar, da poesia ao conto, sintetizando a beleza da paisagem, da terra, do amor, da realidade, da liberdade, da vida.
Fui à estante, peguei num dos vários livros que lá estão, abri sem olhar e surgiu esta maravilha, idêntica à que estará na página anterior e semelhante à que encontraria na página seguinte.
Que bom é ler Sophia sempre e quando nos apetece.

AS FONTES

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Poesia (5ª edição)
Caminho

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Actualidade em verso

Sigo o Blog "Duas ou três coisas", do Embaixador Francisco Seixas da Costa, e hoje fui surpreendido com um soneto de Luís Filipe Castro Mendes, antigo Ministro da Cultura no governo de António Costa, adaptando um soneto de Camões que, nos meus tempos idos de estudante, era dado como exemplo da cacofonia.
Aqui fica o soneto de saudação à "morte" da geringonça, que não produz cacofonia e se "rouba" com a devida vénia. O outro, o antigo, já não precisa de vénia por estar no domínio público e fazer parte daqueles que ainda sei de cor.

Alma minha gentil que te partiste                                  Geringonça infiel que te partiste
tão cedo desta vida descontente,                                    tão cedo desta vida, de repente,
repousa lá no Céu eternamente,                                     faz reviver em nós o amor ardente
e viva eu cá na terra sempre triste.                                do fulgor que nos deste e a que fugiste.


Se lá no assento etéreo onde subiste,                             Se dos paços perdidos que correste
memória desta vida se consente,                                    os passos refizeres, novos, frementes,
não te esqueças daquele amor ardente                           não esqueças que a nós já não consentes
que já nos olhos meus tão puro viste.                             o calor da esp’rança que acendeste.

E se vires que pode merecer-te                                       E se achas que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou                                   alguma coisa o eco que ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te                            desta voz que pudemos of’recer-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,                             vê que tudo o que o teu brilho nos deixou
que tão cedo de cá me leve a ver-te,                               durará mais que o tempo de perder-te,
quão cedo de meus olhos te levou.                                  pois no nosso futuro já pousou.

Luís Vaz de Camões                                                                              Luís Filipe Castro Mendes
(Séc. XVI)                                                                                              (Séc. XXI)

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Eleições e abstenções

No passado domingo, como sempre fiz em todas as eleições desde que "a liberdade está a passar por aqui", cumpri o meu dever e exerci o meu direito de ir votar.
Pouco passava das onze da manhã e, no caminho, não me pareceu que o movimento fosse mais do que o habitual em situações idênticas nos últimos anos. 
Longe vai o tempo em que as ruas estavam cheias de gente ...
Chegado à escola do Bairro da Ponte, verifiquei que a minha mesa não estava, pela primeira vez, no primeiro andar e que, com ela, todas as outras tinham sido deslocadas para o rés-do-chão. Excelente medida, não por as escadas serem um obstáculo para mim (por enquanto) mas já o mesmo não poderão dizer muitos outros.
Lá me encaminhei para o novo local e confirmei: a fila era enorme. Pensei: talvez haja mais gente a votar, por ter sido sensível aos apelos, nomeadamente do Presidente da República. 
Quando já estava com o local da votação no horizonte, pareceu-me que a descarga nos cadernos demorava mais do que o habitual. Confirmei quando chegou a minha vez: tive tempo para verificar que havia  apenas três eleitores com o primeiro nome igual ao meu mas, mesmo assim, a "descoberta" do meu demorou uma "eternidade". Se era assim com um nome "invulgar", o que seria com os "Zés" e as "Marias".
No final da votação confirmou-se que a abstenção permanece muito elevada e que as filas não resultavam de maior número de pessoas a votar. A dificuldade está na prática do alfabeto ...

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Livros lidos (ou em vias disso)

Ninguém escreve como António Lobo Antunes!
E, para quem gosta, é um prazer enorme ter mais um livro para saborear. Editado este mês, chegou à Casa na passada terça-feira e já leva umas boas dezenas de páginas lidas.
A beleza da forma como Lobo Antunes descreve uma paisagem, uma personalidade, um acto, é deliciosa e única.

(...) não assim, ao contrário, Larouco primeiro Falperra depois, por favor não me troquem a ordem das recordações na prateleira da memória que depois me vejo grego para alinhá-las como deve ser, qual o sítio do meu pai, qual o sítio do sarampo que me dão ideia de faltarem, mesmo antes da primeira pequena com quem estive o incisivo quebrado por uma diferença de opinião aos dezasseis anos, a amiga do general de ligas pretas e anéis a brilharem pertíssimo de mim quando me prendeu o queixo
      - Maroto
      comigo a segurar-me sabe Deus com que dificuldade, no caso da minha mulher demoro séculos a pegar fogo, com a amiga do general nem risquei o fósforo e já ardo que é uma beleza, estávamos nesta vidinha quando principiaram as maçadas na Baixa do Cassange, os pretos e os plantadores de algodão às turras e desafios e ameaças e pontes destruídas e sanzalas desertas e os armazéns em chamas e os brancos a amontoarem-se em Malanje, a seguir à serra da Falperra a serra do Gerês, o professor
      - E depois e depois?
       eu vazio a folhear a memória enquanto a trégua crescia (...)

António Lobo Antunes
A outra margem do mar
Dom Quixote (Set. 2019)

domingo, 22 de setembro de 2019

Música

Hoje apeteceu-me colocar aqui esta maravilha, feita por um ENORME que, já septuagenário, mantém viva a chama que me acompanha desde que "a banda passou", em 1966.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Palavras bonitas

 Já passam hoje 4 anos da partida do meu pai e ainda parece que foi ontem.

VOZ

Era uma voz que doía, 
Mas ensinava.
Descobria,
Mal o seu timbre se ouvia
No silêncio que escutava.

Paraísos, não havia.
Purgatórios, não mostrava.
Limbos, sim, é que dizia
Que os sentia,
Pesados de covardia,
Lá na terra onde morava.

E morava neste mundo
Aquela voz.
Morava mesmo no fundo
Dum poço dentro de nós.

Libertação
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1978)

sábado, 20 de julho de 2019

Netos

Esta semana foi mais pródiga em visita de netos, que por cá passaram mais algum tempo do que é normal, com direito a almoço e tudo.
Num dos dias, à chegada, cumprimentei:

- Olh'ós meus netos!
Com o ar malandro que o caracteriza e a ironia costumeira, recebi o troco:

- My name is Vasco.

Faz hoje 8 anos e por isso, happy birthday for him.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Pôr do Sol

Há finais de dia em que o Sol tem aquela cor indefinível, muito bela, que nos obriga a prestar atenção e a tecer elogios com todo o vocabulário que sabemos e se adequa à situação.
- É um vermelho maravilhoso! Ou será amarelo torrado, doirado, mistura de todo o arco-íris, castanho-avermelhado, cor de mel com laivos de framboesa, lindo!
A incapacidade para a definição matemática da cor que o Sol apresenta trouxe-me à memória uma história que não recordo se foi lida, ouvida ou contada. 
Aclarou-se-me a memória: era uma história que meu pai contava, à laia de adivinha ...
A gaveta memorialística, por vezes e sem razão aparente, abre-se  e deita cá para fora algo que, se o nosso cérebro funcionasse como uma máquina insensível, nem à porta assomaria.

"Era uma vez um rei com uma grande barriguinha ..."
Nada disso. O rei era um homem de grande porte, elegante, venerado e considerado pelos seus súbditos, que não se cansavam de elogiar o seu carácter e a sua inteligência.
Acontece que o rei apenas tinha uma filha, o que não agradava à corte, que preferia um varão que assegurasse a sucessão com clareza e sem intervenções terceiras.
A princesa era de uma beleza ímpar (como são todas as princesas) e todos os nobres, novos e velhos, ambicionavam com ela casar. Todavia, os seus olhos de esmeralda não se fixavam na nobreza, antes se perdiam na vastidão da corte.
Nas suas deambulações, a princesa percorria todas as terras e contactava com toda a gente do reino e, consequência inevitável, os amores surgiram e chegaram aos ouvidos da preocupada rainha, que já se apercebera do alheamento que a princesa devotava à vida na corte.
Confrontada pela mãe, a princesa confirmou que só tinha olhos para um plebeu, de seu nome Afonso, que descreveu como belo, meigo, inteligente, terno e bonito, e que só a ele uniria o seu destino.
A rainha pensou, pensou, e resolveu aproveitar um momento mais íntimo para partilhar as suas preocupações com o rei e pedir-lhe que recebesse o plebeu e desse o seu consentimento ao noivado.
- Está bem, fidelíssima rainha. Mas só com três condições cumpridas, que me permitirão medir a inteligência desse tal Afonso e aquilatar se tem condições para integrar a casa real. Ele que se apresente amanhã no castelo mas:

      - Nem de noite nem de dia;
      - Nem a pé nem a cavalo;
      - Nem nu nem vestido.

A rainha ficou em pânico por não conseguir imaginar como poderia Afonso cumprir as ordens do rei. Apesar disso, chamou a aia de confiança e ordenou-lhe que transmitisse ao pretendente as exigências do rei.

No dia seguinte, Afonso apresentou-se na corte após o Sol ter desaparecido no horizonte mas antes de a noite ter caído; vinha com um pé num estribo do cavalo e o outro mancando pela estrada de acesso ao castelo; trazia uma rede que lhe cobria todo o corpo, sem uma única peça de vestuário.

Moral da história: não há problema sem solução!

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Netos

O neto Duarte faz hoje 7 anos, já anda na escola a sério, já faz testes de matemática e estudo do meio e lê muito bem!

- Ó vô, quantas páginas tem esse livro?
- Vê o número da última e ficas a saber.
- 468! São muitas! Não sou capaz de ler isso tudo, demora muito tempo.
- Vais ler qualquer dia.

Será?

domingo, 26 de maio de 2019

Futuro

" ... e livres habitamos a substância do tempo."


Nesta semana, a "substância do tempo" trouxe-me mais três razões para que eu sinta sempre saudades do futuro e nunca mais do que recordações de um passado que é bom de lembrar para não ser esquecido. Vamos a elas, às razões que me levam a hoje, em dia de eleições para a Europa e depois de cumprido o meu direito / dever, vir por aqui deixar umas notas tão agradáveis quanto garantias de que as novas gerações trarão e terão um mundo melhor, mais solidário, mais amigo e, quero eu, mais justo.

Primeira: Na sexta-feira, logo pela manhã, os netos mais novos - Duarte e Miguel - brindaram-me com um vídeo contendo uma lição de reciclagem, que evidencia preocupação e saber, e me dá a convicção que, talvez já na geração deles, se deixe de cuspir para o chão;
Segunda: Na tarde do mesmo dia fui convidado para a festa dos avós, promovida pela escola do Vasco e assisti a uma peça teatral na qual o meu neto fazia de mim, que digo eu, fazia de avô e dizia para a avó, a propósito do queixume desta sobre as suas rugas:
- ... Não digas isso! A tua pele é como uma noz maravilhosa! ...
Terceira: Ontem, o neto mais velho colocou a cereja em cima do bolo: ele e um colega fizeram um trabalho sobre o 16 de Março de 1974 que me encheu de orgulho e me mostrou como a nova geração tem capacidades infinitamente maiores do que as dos velhos do Restelo que ainda dizem "no meu tempo".

O Gil e o colega ainda não têm 13 anos e fizeram isto:




quarta-feira, 8 de maio de 2019

Dia da Mãe

Hoje é (era) o Dia da minha mãe. 
Faria 96 anos, se ainda por cá estivesse,

CANTO ROUCO

Antes que perca a memória
das pedras do adro,
antes do corpo ser
um sopro e quebrado
ramo sem água,
devolvei-me o canto
rouco
e desamparado
do harmónio da noite.

Mãe!,
desamparado na noite.

Eugénio de Andrade
Poesia
Fundação Eugénio de Andrade (2000)

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Coisas de velho ...

Já estou sentado a aguardar o início do espectáculo. A senhora, vistosa, chega acompanhada pelo puto, que parece ser seu filho e ter doze, treze anos. Tem cabelos loiros, bonitos, com a raiz pintada de castanho (ou será o contrário?). O puto traz uns auscultadores, enormes, nas orelhas, e um telemóvel na mão. De vez em quando liberta uma das orelhas e ouve o que a mãe diz. Volta a colocar o auscultador no lugar e não retira os olhos do telemóvel, que exibe o que me parece ser um combate de boxe.
A minha ignorância garantia que aqueles afazeres terminariam quando começasse o espectáculo, afinal a razão única que tinha levado à sala as pessoas que enchiam por completo a plateia. 
Ilusão minha! O puto permanecia deliciado a ver o boxe, auscultadores nas orelhas e um desprezo olímpico por tudo quanto se passava à sua volta.
O espectáculo terminou, o público aplaudiu de pé e o puto, continuou, sereno, sentado na cadeira que lhe coubera em sorte cerca de duas horas antes.
Quando os aplausos cessaram e o público começou a abandonar a sala, a mãe pegou-lhe na mão e fez-lhe sinal que eram horas de partir.
E lá foram ambos, ela com os cabelos loiros de raiz castanha, ele de auscultadores vermelhos unidos por uma correia preta, de telefone na mão e concentrado em absoluto no combate de boxe.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

25 de Abril

REVOLUÇÃO

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

27 de Abril de 1974

Sophia de Mello Breyer Andresen
O Nome das Coisas
Editorial Caminho

terça-feira, 23 de abril de 2019

Dia Mundial do Livro

Hoje celebra-se o Dia Mundial do Livro. 
Quem puder vá à manifestação referida aqui, mas sobretudo leiam, não pelo dia em si mas porque faz bem à saúde, e dizem até que mantém a linha.
Pelo sim, pelo não, eu continuo a ler, cada vez com mais prazer e com a certeza de que o tempo não me chegará para ler tudo quanto gostaria.
Hoje terminarei o último de Mário de Carvalho - O que eu ouvi na barrica dos maçãs - e tem sido uma delícia ler (nalguns casos, reler) crónicas cheias de humor e de actualidade.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Carnaval em Torres Vedras

Ao Presidente da Câmara Municipal da capital do Carnaval - Torres Vedras - foi retirado o doutoramento, por a Universidade que o tinha outorgado ter confirmado que a respectiva tese continha várias dezenas de plágios.
E o homem não se demitiu! 
Sendo legítimo concluir que os cidadãos torreenses o terão eleito com base nas suas ideias,  não será difícil especular que estas também poderão ter sido plagiadas.
Viva o Carnaval, sem populismos ou demagogias, e apenas a pedir algum decoro. 
Que diabo, todos temos direito a alguns devaneios, mas há limites ...
  

domingo, 21 de abril de 2019

Dia Mundial do Livro

Na próxima terça-feira celebra-se o Dia Mundial do Livro!
Não posso estar na manifestação, mas serei solidário, lendo, diariamente, como faço há mais de 50 anos. Parabéns aos promotores da iniciativa, sempre importante para se valorizar o livro.


sexta-feira, 19 de abril de 2019

Quotidiano

Hoje plantei uma árvore!
Num sítio público, onde muitas vezes brinquei quando não havia calçada e se jogava ao berlinde e ao pião, para além da bola de meia e da bilharda.
Com o calcetamento da zona, foi criado um espaço, redondo, regado, que recebeu uma bem bonita magnólia, que por ali deu flores lindas durante algum tempo.
Uma festa de "comes e bebes" queimou as folhas e as flores da bonita planta e sentenciou-lhe a morte, há já uns bons anos. O espaço por lá permanecia sem ocupação ...
Hoje transpirei para retirar a raiz da magnólia, bem enterrada e bem grande e, no seu lugar, plantei um limoeiro que, espero, consiga viver o tempo suficiente para dar limões a quem deles gostar e não os tenha em sua casa.
Importante: obtive a autorização, verbal, de quem superintende no espaço público e suei com os exercícios ditados pela enxada.
Coisas de velhos ... 

quarta-feira, 27 de março de 2019

Livros lidos (ou em vias disso)

O meu amigo ADS, preocupado com a hipótese de eu ter poucos (?) livros para ler, resolveu enviar-me 2, de José Rodrigues Miguéis, para que eu me deleitasse com a escrita de um homem nascido no início do século XX (1901). 
"Léah e outras histórias" é um deles, o outro é o romance "A escola do paraíso". Comecei pelo primeiro, porque é sempre pelo primeiro que se começa, seja ele qual for. Já não consigo precisar se tinha apenas a ideia do título ou se, em tempos idos, o teria chegado a ler. Dúvidas que a memória, cada vez mais diluída, vai deixando em aberto como que esburacando a parede que até parecia ter reboco de boa qualidade. Gaba-te cesto ...
Deixemo-nos de metáforas e vamos ao que interessa: a história da francesa Léah (que dá nome ao livro) é divertida, bem contada e com pormenores deliciosos; contudo, "Uma viagem na nossa terra" é, para mim, ainda mais conseguida e retrata o que éramos nos anos 50/60 do século passado (o livro foi editado pela primeira vez em 1958) mas, por estranho que possa parecer, o retrato está cheio de actualidade, apenas diferindo nos meios de transporte e nas vias de comunicação. O comportamento das personagens mantém-se intacto ...
(...)
Quando saí para ir enfim dormir, ainda ela me gritou do quarto andar, pelo caracol da escada: "Então sem falta, Artur! Esteja cá em sendo um quarto para as sete! Olhe que a gente não espera!" E eu, descendo nos bicos dos pés, agarrado cá em baixo ao corrimão, num sopro, num silvo, com este meu horror burguês de incomodar os vizinhos que dormem: "Sch, sch! Já sei, já sei ... Vão para dentro. Boa noite!" E comigo:"Não esperam? Mas que desfaçatez!" A porta dos Fonsecas bateu, abalando o prédio até aos alicerces. (...)
"Ora que necessidade tenho eu", pensei, "de ir agora para o Porto, para Paredes ou lá o que é, não me dirão? Com um sossego destes aqui!" (...)
Mas ainda é cedo, seis horas, tenho tempo. É só saltar da cama abaixo, enfiar os chinelos, correr à banheira e zás. Dez minutos para a barba, enquanto no fogão chia a água para o café - meia hora, três quartos de hora, e estou pronto. (...)
Aconcheguei-me melhor nos lençóis (...) "Diacho, dez para as sete! Caramba! então não tornei eu a adormecer? Já estava a sonhar que ia pela escada abaixo de chapéu na cabeça!" (...)

E a vontade de transcrever é enorme ... mas fico por aqui. A viagem, que estava prevista terminar no 
Porto ou melhor, em Paredes, com o jantar em casa dos amigos anfitriões, começou cerca das dez e meia da manhã, apesar dos avisos de que se não esperaria por ninguém.

(...) Já tínhamos engolido Óbidos e trespassado as Caldas, e o Fonseca, sem consultar ninguém, resolveu que fôssemos almoçar em Alcobaça. (...)
Chegámos pela meia tarde à quintarola de Paredes, depois de termos andado às apalpadelas por aqueles caminhos que o Fonseca conhecia "de olhos fechados". (...) Esfomeados, empoeirados e sinistros, abancámos para devorar os restos lautos do jantar da véspera, contando todos ao mesmo tempo os pormenores e as maravilhas da excursão: "Nem um pneu rebentado! Nem um desvio!! Tínhamos vindo pelo nosso vagar, explicou o Fonseca, pela fresca, parando, gozando, admirando "esta nossa paisagem tão linda, e tão mal empregada, este nosso Portugal que não tem nada que se lhe compare lá fora!". Enfim, cá estávamos. Só então apareceu uma garota descalça e com olhos de fome, trazendo o telegrama expedido na véspera à noite do Porto, e de que nos tínhamos esquecido completamente.
A redacção era do mano Arnaldo:

                             Retidos Porto desarranjo motor
                             passamos noite hotel arrasados via-
                             gem chegamos amanhã hora almoço
                             sendo possível.

José Rodrigues Miguéis
Léah e outras histórias
Editorial Estampa (6ª Edição) 

terça-feira, 19 de março de 2019

Dia do Pai

Dia do Pai.
O meu, se ainda por cá estivesse, faria hoje 97 anos.

CLARO - ESCURO 

Dia da vida,
Noite da morte ...
O verso
E o reverso
Da medalha.
E não há desespero que nos valha,
Nem crença,
Nem descrença,
Nem filosofia.
Esta brutalidade, e nada mais:
Sol e sombra - o binómio dos mortais.
Só que o sol vem primeiro,
E a sombra depois ...
E à luz do sol é tudo o que sabemos:
Juventude,
Beleza,
Poesia,
E amor
- Amargo fruto que na sepultura,
Em vez de apodrecer, ganha doçura

Miguel Torga
Orfeu Rebelde
Coimbra Editora (1992)

sábado, 16 de março de 2019

16 de Março

Há 45 anos, um jovem militar de 21 anos (faria 22 no dia 25 de Abril de 1974) veio passar o fim de semana a casa e estava dormindo descansado, esperando que a tranquilidade da manhã só fosse interrompida lá pela hora de almoço, quando minha mãe achasse que já chegava. Porém, ainda não eram 10 da "madrugada" e a porta do quarto abriu-se:

     - Há qualquer coisa no quartel!

Saltei da cama. Afinal o quartel tinha sido meu no ano anterior (Abril a Junho/1973), enquanto instruendo da 4ª. Companhia comandada pelo (então) Tenente Virgílio Canísio Vieira da Luz Varela. Nessa altura já se vislumbrava a contestação que viria a culminar na revolução de Abril. Servi de dactilógrafo ao meu Comandante de Companhia para uns artigos que se destinavam à revista Observador dirigida, se bem me lembro, por Artur Anselmo, e que procuravam refutar os "escritos" que o General Sá Viana Rebelo, antigo Ministro do Exército, por lá publicava. Durante a estadia no RI5, entrei à civil em várias manhãs de sábado, sentei-me à máquina de escrever (Messa?) da secretaria da Companhia e dactilografei o que me ia sendo ditado, com uma pronúncia madeirense bem acentuada e, de quando em vez:

     - Despacha-te "mecerico", que não temos o dia todo!

Voltando ao meu 16 de Março: depois de várias tentativas, pelo Moinho Saloio e pelo Avenal, consegui chegar quase à frente do quartel, ainda a tempo de ouvir a voz de "cana rachada" do Brigadeiro Pedro Serrano, do alto da sua pequena estatura, a pedir ao gritos a rendição.
(...)
     - Abra o portão, em nome da autoridade!
     - Autoridade talvez tenha, mas na nossa terra a autoridade está muito mal constituída!
     - Tem um quarto de hora para abrir o portão, sob pena de haver sangue!
     - Não é o senhor que me leva a abrir o portão. Só recebemos ordens do nosso general Spínola!
(...)
O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril
Avelino Rodrigues, Cesário Borga e Mário Cardoso
Moraes Editores (Novembro, 1974)

No final do dia e durante a noite, todos os graduados envolvidos foram levados para presídios militares.
As notícias que deram conta (?) ao país do acontecido ficaram para a história e podem ser vistas aqui e aqui.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Quotidiano

As notícias trazem-nos a morte de quarenta e nove pessoas, assassinadas em dois templos da Nova Zelândia.
Referem "um caso de violência gratuita" e a minha ignorância interroga-se: Gratuita? Caríssima, de valor incalculável, sem preço e sem nada que a possa desculpar. Um bandalho pega numa arma, liquida quase meia centena de seres humanos, filma-se e filma o seu crime, e "justifica-se" com a "supremacia branca" de tão má memória.
Como se alguma supremacia, se existisse, pudesse branquear crimes contra qualquer cidadão do mundo!

sábado, 2 de março de 2019

Mãe

Já lá vão 15 anos e parece que foi ontem ...

DIA DE HOJE

Ó dia de hoje, ó dia de horas claras
Florindo nas ondas, cantando nas florestas,
No teu ar brilham transparentes festas
E o fantasma das maravilhas raras
Visita, uma por uma, as tuas horas
Em que há por vezes súbitas demoras
Plenas como as pausas dum verso.

Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
Bailando na doçura
E na amargura
De serem perfeitas e de serem breves.

Sophia de Mello Breyer Andresen
Dia do Mar
Caminho

sexta-feira, 1 de março de 2019

Palavras bonitas

A NECESSÁRIA COMPLEXIDADE DA SEMENTE

Este mar que nos divide
constrói-se no pensamento
que tudo sabe mas finge
ser a paisagem que ignora
num porto que não atinge.

Unir o mar que divide
só com desentendimento:
almas opostas que ponho
na causa duma harmonia
se tem de nascer o sonho
para ter de haver poesia
e o que no sonho anuncia
muito mais do que nomeio.
A natureza a transpor-se
com dor sentida no meio.

Natália Correia
O sol nas nas noites e o luar nos dias
Círculo de Leitores (1993)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Netos

O meu "homem" mais novo faz hoje 3 anos!
Dotado de uma forte personalidade (teimoso é o avô) tem, em simultâneo, um "mel" na voz e nas atitudes que encanta qualquer um, mesmo o mais insensível. Adora carros, sabe as marcas todas, questiona para que servem botões e comandos, senta-se ao colo, "conduz" a saída da garagem e sorri, matreiro, quando lhe digo que tem de acabar.
E, logo a seguir, ei-lo que sobe as escadas, corre lesto ao quarto, e pega no carro que, esse sim, domina sem dificuldade e conduz por toda a casa. 
O meu Miguel regista, para que se saiba: "tês anos e não tenho falda nem chucha!"

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Balanço 2018

A tradição é, nesta altura, um tema dúbio, que promove discórdia e é tratado consoante os interesses de quem mais procura protagonismo, populismo ou parvoíce. 
Uns, como os "Bolsonaros" brasileiros, clamam que "menino veste azul e menina cor-de-rosa; outros pretendem que "atirei o pau ao gato ou matar dois coelhos com uma cajadada" são adágios que vão contra o respeito devido aos animais; outros, felizmente poucos, acham que o Botas devia voltar, para gáudio de alguns marialvas que por aí ainda pululam. Tradições ...
Por aqui, a tradição mantém-se no balanço dos livros lidos no ano anterior, para que os "meus homens", já todos falantes mas ainda nem todos leitores, possam amanhã ver quais foram os livros que o avô foi lendo enquanto eles cresciam.