sábado, 31 de dezembro de 2022

Despedida

- Vou-me embora, gritou o Ano Velho, com alguma dificuldade em fazer-se ouvir, e em ouvir. Meio trôpego, a movimentar-se às arrecuas, bem longe da ligeireza que apresentava quando substituiu o seu antecessor e se apresentou carregado de projectos e cheio de esperança de os concretizar.

- Apresentei a minha demissão e, tal como outras recentes, foi aceite. Estou a esvaziar as gavetas e, daqui a pouco mais de meia dúzia de horas parto para o limbo do esquecimento. Não regressarei à actividade, por muito que me custe. Durante dois ou três dias ainda aparecerei nos orgãos de comunicação social, que recordarão acontecimentos de que não fui protagonista mas sucederam enquanto "reinei". Nos anais da história, limitar-me-ei a ser uma data de registo, um situar no tempo, um clarificador de ocasião. Serei esquecido pelo comum dos mortais e apenas lembrado quando os historiadores se dedicarem ao estudo do que se passou, e foi muito, durante os 365 dias do meu reinado.

Não me tinha apercebido que esta coisa de abandonar o posto tem que se lhe diga. Estou afadigado com as tarefas da despedida, os arrumos, os balanços. Resta-me a consolação de que farei as malas e partirei, sorrateiro, com toda a gente preocupada com a contagem decrescente, os desejos das passas, o gás do champagne, o descasque dos camarões, as pernas das sapateiras e as presas das lagostas, os doces e os salgados, os aperitivos e o vinho. No fundo, repete-se o que aconteceu ao coitado do 2021, quando eu cheguei, ufano e eufórico, ao som do estralejar dos foguetes e dos hip-hip. Vinha eu preparado para ser protagonista de uma grande festa e corresponder a todos os desejos que foram formulados e, afinal, não aconteceu ...

Surgiu a invasão russa à Ucrânia, crime que o meu sucessor há-de continuar a gramar, bem como às respectivas consequências. E serão muitas ... 

Talvez ainda não seja em 2023 que tenhamos comboios em condições, que a saúde deixe de ser palco de desavenças quotidianas e alvo de interesses obscuros, que os menos favorecidos não continuem a esforçar-se por passar entre os intervalos da chuva, sem conseguirem, ao menos, comprar um chapéu que os resguarde. Deixemos as previsões. É melhor cingirmo-nos à verdade irrefutável, como dizia o outro, de que "prognósticos, só no fim do jogo" ou, aqui, no final do ano que se vai iniciar.

Cá estaremos para ver, sem resistir à formulação dos votos que, hoje, verdadeiramente interessam: era óptimo que 2023 nos trouxesse paz, saúde, respeito e uns trocos para gastar.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

PELÉ

Quase 9 anos depois da partida de um - Eusébio - faleceu ontem o outro ídolo futebolístico da minha juventude e o melhor jogador do mundo de sempre.

Recordar hoje algumas das grandes jogadas que protagonizou e também "meia dúzia" dos golos lindos que marcou é a homenagem possível e prova como o futebol é um jogo bonito, mesmo que, por vezes, alguns o estraguem.

Obrigado, Pelé!

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Passagem do ano

O Inverno tem destas coisas. Tão depressa chove desalmadamente como, de repente, o Sol brilha e corre com todas as nuvens do céu, o frio obriga a procurar os agasalhos, o vento fustiga as orelhas e a ponta do nariz e determina que as mãos andem nos bolsos ou protegidas com boas luvas. Nunca se está preparado para o que esta inquietante estação do ano nos oferece, sempre com imprevisibilidade e surpresa. Até no Governo, aconteceram coisas que ninguém, na Primavera, pensava serem possíveis surgir.

Ao contrário, o calendário repete-se fastidiosamente, sem quaisquer alterações, com os meses a seguirem-se uns aos outros, sempre da mesma maneira e com o final de cada ano a chegar, inevitavelmente, no último dia deste mês de Dezembro, sem surpresa para ninguém e com a rotina a impor as suas regras.

2022 está a chegar ao fim, tal como aconteceu com os seus antecessores, e irá dar lugar ao Novo Ano, que surgirá, a julgar pelos votos que abundam por todo o lado, com o melhor dos mundos embrulhado em papel de lustre, uma fitinha e um laço enorme, a paz e a harmonia em quantidades imensas. Ocorrerá o fim das desigualdades e da exploração, a julgar pelas vontades bem expressas nas formulações.

2023 surgirá ao som dos foguetes e à luz do fogo de artifício, comer-se-ão as passas dos desejos, beber-se-á a flute de champagne da Anadia, bater-se-ão as tampas das panelas e dos tachos, gritar-se-ão vivas e urras, tudo serão rosas sem um único espinho, nem sequer na formulação.

No dia seguinte, surgirão as lamentações, as realidades, o tudo e o nada, o calor e o frio, o vento e a chuva, o gelo e a ebulição. Mais do mesmo, num eco que se vai repetindo e para cuja melhoria muito poucos dão alguns passos.

Uma boa passagem de ano e um 2023 cheio de coisas óptimas e de sonhos concretizados!

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Saída

A Secretaria de Estado do Tesouro perdeu, como se esperava, a sua titular, que mal teve tempo para conhecer os cantos à casa.

Desta vez, foi exonerada a seu pedido e por decisão do seu superior hierárquico - Fernando Medina -, não sendo necessário que os advogados das partes reúnam para calcular a indemnização a receber. O Presidente Marcelo já está informado da situação, já a foi comentando, a seu belo prazer e com a graça que lhe é peculiar nos subentendidos.

A passagem, efémera, da senhora pelas funções governativas, ficará a constar, com o relevo que lhe é devido, no currículo brilhante, com a omissão, por desnecessária, das razões que a motivaram.

Não é de estranhar: porque haveriam de ser "curriculadas" as razões da saída se também o não foram as da entrada. São ambas o resultado do mérito, indiscutível, mas de compreensão difícil.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Será?

A actual Secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, exerce (ainda) uma função cuja designação lhe assenta como uma luva. É forçoso que ela seja um tesouro, importantíssimo, de valor incalculável e daqueles que, de tão raros, têm apenas lugar nos grandes museus e sob alta segurança. É para lá o caminho que lhe está destinado ...

A competência da senhora deve estar tão nos píncaros que pairará bem acima da altitude normal dos aviões que bem conhece e sem dar qualquer hipótese de detecção pelos vulgares radares. Nasceu no meu distrito, no ano da liberdade, e licenciou-se em Engenharia Electrónica e Telecomunicações na Universidade de Aveiro, quase de certeza com 20 valores, por ser nesse número que termina a escala.

De acordo com o currículo público, a sua vertiginosa carreira de sucesso começou em 1998 (24 anos) como Technical Account Manager, na empresa Alcatel. Dos muitos cargos que ocupou à medida que foi subindo na idade, ressalta apenas uma "fraquinha" directora de compras do Grupo REN, cargo desempenhado em meia dúzia de anos e que não atingiu a almejada designação inglesa. Foi pena, mas acidentes de percurso, quem os não tem?

Saiu do Conselho de Administração da TAP, por vontade própria, segundo a empresa, por imposição desta, de acordo com a própria. Talvez tenha sido este desencontro que motivou o meio milhão de euros de indemnização que lhe foi outorgado, por acordo estabelecido entre as duas partes: entidade patronal e empregado que se despediu ou foi despedido. Tal qual como acontece com qualquer trabalhador e, por isso, a senhora afirma não aceitaria aquela "ridícula" indemnização se ela não tivesse o respaldo da Lei, como é do conhecimento de toda a gente. Aliás, e apenas como nota de passagem, refira-se que o desconhecimento da Lei não impede a condenação de quem a viola. Que grande guitarra!

Cinco meses depois de sair da TAP e antes de o Fundo de Desemprego ter tempo para despachar o necessário processo, a senhora foi nomeada para Presidente do CA da NAV, de onde saiu seis meses depois, para ocupar o tal cargo para que estava destinada e tinha competência. Um Tesouro ... Esta nomeação deve ter-lhe custado uma elevada perda no rendimento mensal, tendo em conta que o vencimento, legal, de um Secretário de Estado é manifestamente inferior ao de um membro do CA de uma qualquer empresa, pública ou privada. Resta saber se, por alguma excepção legal não conhecida, a senhora não terá direito a uma indemnização por perdas e danos.

Mas, sejamos claros: tudo isto há-de ter uma douta explicação, acessível apenas a quem tem na cabeça um tesouro e não a um qualquer vulgar cidadão que apenas ostenta a mioleira no interior da sua moleirinha.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

António Mega Ferreira

Nasceu em 1949, em Lisboa, e foi de lá que partiu hoje, para sempre. Quem o leu no Expresso, no Jornal de Letras ou nos seus muitos livros, não pode deixar de ficar pesaroso com o cumprimento inexorável da lei da vida. 

António Mega Ferreira foi o grande responsável pela Expo 98, deu muito do seu saber ao Centro Cultural de Belém, uma "mãozinha" na Orquestra Metropolitana de Lisboa, uma grande contribuição à RTP 2, entre muitas outras coisas que conheço e, quase de certeza, muitas mais que ignoro.

Em sua memória, estendi o braço à estante, tirei um dos livros "ao calhas" e abri. Fica aqui um pequeno extracto da página que o acaso exibiu.

"(...) Parece que não há, na língua portuguesa, palavra adequada para descrever um oásis desagradável. Se houvesse, coisa ruim inesperadamente revelada no meio do paraíso, mão fatal do Homem a romper o exuberante equilíbrio da Natureza envolvente, talvez devesse aplicar-se com propriedade à pequena cidade de Nazaré das Farinhas, em pleno Recôncavo Baiano, a uns cento e tal quilómetros de Salvador.

Chega-se a Nazaré por um descuido da estrada, os olhos imersos na quase exaustiva diversidade do verde rasgado por pequenos veios de água, pela via que une a capital da Bahia ao sul, a caminho de Valença e de Ilhéus. Atravessa-se uma rua estreita de casas baixas e poeirentas e desagua-se numa praça tosca, descambada sobre a margem esquerda do Jaguaripe, que aqui, em vez de água ameno e límpido, é esgoto a céu aberto, lamacento e castanho. À volta, os morros verdejantes quase asfixiam a terra; cá em baixo, os burros, carrocinhas e caminhões atrapalham-se uns aos outros, na pressa de chegarem ao mercado instalado nas ruas da outra margem. 

E, flutuando sobre tudo, o cheiro acre e inevitável do jenipapo a pôr verniz num ar lento, húmido, doentio, feito de urina e de excrementos, a dar pasto às moscas e à doença. (...)"

Hotel Locarno
António Mega Ferreira
Sextante Editora (2015)

domingo, 25 de dezembro de 2022

Poesia de Natal

NATAL

Um anjo imaginado
Um anjo dialéctico, actual,
Ergueu a mão e disse: - É noite de Natal,
Paz à imaginação!
E todo o ritual
Que antecede o milagre habitual
Perdeu a exaltação.

Diário IX
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1977)

sábado, 24 de dezembro de 2022

Poesia de Natal

VOTO DE NATAL

Acenda-se de novo o Presépio no Mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida ...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas!
Ó calor destas mãos nos meus dedos tão frios!
Acende-se de novo o Presépio nas almas,
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.

Obra Poética (1948-1988)
David Mourão-Ferreira
Editorial Presença (1997)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Poesia de Natal

NATIVIDADE

Arde no coração da noite
A ritual fogueira que anuncia
O eterno milagre
Do nascimento.
Batida pelo vento, 
Que da cinza das brasas faz semente,
É um sol sem firmamento,
Directamente
Aceso
E preso
À terra
Por mãos humanas.
De raízes profanas, 
Lume de vida a bafejar a vida,
O seu calor aquece
A única certeza que merece
Ser aquecida ...

Diário VII
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1976) 
 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Poesia de Natal

O NATAL DA INFÂNCIA

Ah como se alongava a província Natal
com distritos de luz dentro do Novo Ano
Vinha já de mais longe um perfume lunar
Começava em Novembro a toilette dos Anjos

No mapa da Europa a Suíça a Suécia
ganhavam posições de repente invejáveis
Andava-se na rua à procura de neve
A neve dos postais arquivava-se em casa

E brincava connosco o menino Jesus
mesmo antes da noite em que tinha nascido
Mas ninguém se atrevia a tratá-lo por tu
Era de todos nós o menino mais rico

As prendas que nos dava  E fingia-se pobre
Adorávamos nele o amor do teatro
o dom de liberdade e da metamorfose
Sorríamos de quem nos dissesse o contrário

Obra Poética (1948-1988)
David Mourão- Ferreira
Editorial Presença (1997)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Poesia de Natal

NATAL

Natal fora da casa de meu Pai,
Longe da manjedoira onde nasci.
Neve branca também, mas que não cai
Na telha-vã da infância que perdi.

Filosofias sobre a eternidade;
Lareiras de salão, civilizadas;
E eu a tremer de frio e de saudade
Por memórias em mim quase apagadas ...

Diário VI
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1978)

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Poesia de Natal

NATAL À BEIRA RIO

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado ...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia ...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

Obra Poética (19481988)
David Mourão-Ferreira
Editorial Presença (1997)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Poesia de Natal

NATAL

Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.

Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.

Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário ...
E Deus não representou.

Diário V
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1974)

domingo, 18 de dezembro de 2022

Poesia de Natal

PRELÚDIO DE NATAL

Tudo principiava
pela cúmplice neblina
que vinha perfumada
de lenha e tangerinas

Só depois se rasgava
a primeira cortina
E dispersa e dourada
no palco das vitrinas

a festa começava
entre odor a resina
e gosto a noz-moscada
e vozes femininas

A cidade ficava
sob a luz vespertina
pelas montras cercada
de paisagens alpinas

E a multidão passava
E a chuva era tão fina
que parecia filtrada
de taças clandestinas

Finalmente chegava
triunfal   em surdina
a noite convocada
em todas as esquinas

Mas não se derramava
como tinta-da-china
Na cidade acordada
já se ouviam matinas

Obra Poética (1948-1988)
David Mourão-Ferreira
Editorial Presença (1997)

sábado, 17 de dezembro de 2022

Natal

O Natal está quase a chegar, sem contemplações para todos aqueles que prefeririam um pouco mais de demora nesta corrida desenfreada que os dias empreendem, sem se vislumbrar qualquer ideia de abrandarem a velocidade. 

Não há radares que os assustem nem pontos na carta que os façam "levantar o pé". A velocidade vertiginosa a que circulam impede que se possa apreciar a paisagem ou dar dois dedos de conversa séria. Tudo é rápido e efémero. Mal se sai das comemorações da entrada no novo ano, aparece o Carnaval, comem-se umas amêndoas na Páscoa, tomam-se uns banhos no titubeante Verão, começa a cair a folha e eis-nos, de novo, a pensar nas prendas, na reunião de família, nos males do mundo, nos que padecem e nesta altura aparecem na boca de muitos distraídos pela vertigem.

A partir de amanhã e até ao Natal, "cessa tudo quanto a antiga musa canta, que outro valor mais alto se alevanta", como escreveu Camões. A Poesia é esse valor que por aqui se irá levantar até que as filhós (ou filhoses?) desapareçam, as rabanadas sejam deglutidas e os sonhos sejam saboreados e se mantenham vivos. 

NATAL

Devia ser neve humana
A que caía no mundo
Nessa noite de amargura
Que se foi fazendo doce ...
Um frio que nos pedia
Calor irmão, nem que fosse
De bichos de estrabaria.

Miguel Torga
Diário IV
Gráfica de Coimbra (1973)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Tempo e paciência

Na actividade profissional que desenvolvi durante muitos (e alguns) bons anos e da qual já só recordo as coisas boas, constatei, bem cedo, que o Direito tem linguagem própria, tempo único, urgência calma e sempre, pelo menos, duas interpretações para o mesmo acontecimento.

Seja a Lei que tem uma vírgula a mais ou a menos, seja a interpretação literal do que está escrito ou aquilo que é o seu espírito, há sempre possibilidades de recurso à leitura que mais convém à "dama" que é a nossa, com argumentação poderosa e convincente, mesmo que os factos aparentem ser tão evidentes que ao leigo pareçam não ter contestação. 

Aprendi, também bem cedo, que a Matemática era a ciência exacta, não havendo dúvidas para ninguém de que dois e dois são quatro. Todavia, um acontecimento desta semana veio provar que até aí pode haver duas interpretações e que ambas estarão correctas e poderão ser defensáveis.

Não por ter dado milho aos pombos mas por, alegadamente, ter recebido uns "trocos" indevidamente, Manuel Pinho, antigo Ministro de José Sócrates, está em prisão domiciliária há um ano, a aguardar que o Ministério Público produzisse, formalmente, a acusação, para a qual tinha o prazo de um ano. Para o Ministério Público, o prazo de um ano foi cumprido e a acusação entregue na data legalmente exigida. A defesa alega que o ano tinha acabado um dia antes e que, por isso, o arguido deve ser libertado.

A discórdia, como é fácil de perceber, encontra-se num dia a mais ou a menos, na contagem dos dias do ano, contagem extremamente difícil e que deverá ser aclarada por um orgão de decisão superior e que, como o sargento da companhia de antigamente, saiba contar bem. Após ser decidido o pleito, ocorrerá, naturalmente, um prazo para apresentação do conveniente e convincente recurso, para que outro orgão ainda mais superior decida, sempre analisando a argumentação de peso e a clarividência das razões que suportam mais uma interpretação.

Não há pachorra!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Palavras bonitas

COM FÚRIA E RAIVA

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se faz com o trigo e com a terra
Junho de 1974

O nome das coisas
Sophia de Mello Breyner Andresen
Caminho (2004)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Relatório

Se alguém tivesse de elaborar um relatório sobre a tarefa de deglutir hoje levada a cabo, escreveria, de certeza, que a estona foi efectuada quase, quase, até ao fim, e que os restos mortais do cabrito tenderam para zero quando se pretendeu concluir o inventário.

Havia a tentação de pedir para que as sobras realizassem uma viagem até à capital, mas foi sol de pouca dura. Coitados dos restinhos, pequenos e com mais osso que chicha, não aguentariam a turbulenta viagem e, talvez até acabassem por enjoar no caminho ou serem imersos na chuva que fez companhia aos visitantes, na viagem que empreenderam à província. 

Fazendo jus à sua hospitalidade, o S. Pedro oestino absteve-se de mandar chuva no durante, presenteando os ilustres apenas na viagem até cá e na de regresso. Ainda que S. Pedro não seja vingativo, não deixa de ser curioso que tenha permitido aos visitantes andar sem umbrela na visita, encontrando mais alguns motivos para invejarem a sorte de quem, não usufruindo da imensidão da oferta que a capital disponibiliza, vai por aqui convivendo com um tempo bem mais suave do que aquele que o lisboeta tem apanhado nos últimos dias.

E foi um bocado bem passado, com boas conversas pelo meio e algumas "entrelinhas" tão saborosas do nosso vocabulário, para recordar tempos idos, refrescar a memória e confirmar que a velha pode ir a estender cordões e a encolher cordões pela serra acima e que a obra-prima do mestre não chega nem aos calcanhares da prima do mestre de obras.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Inverno triste

Por mais difíceis que sejam as situações que se nos deparam, mesmo que não consigamos convencer S. Pedro a fechar as torneiras e clamemos que a culpa é das alterações climáticas e não da falta de planeamento de que falava Gonçalo Ribeiro Telles, há sempre uma música que se adequa e nos enche de satisfação.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Estonar

Estonar: 1. tirar a tona, a casca de; descascar. 2. tirar a pele de; pelar. 3. chamuscar, queimar. 4. raspar superficialmente (a terra). 5. cobrir (rego de semente) com terra do rego vizinho. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)

Os trabalhos agrícolas efectuados na quinta eram, na altura, ainda pouco mecanizados, sendo necessário recorrer a muito trabalho braçal, por vezes violento, recompensado com pouco e extremamente exigente, fosse qual fosse o ângulo que se encarasse.

Para cerca de trezentos hectares, dos quais apenas talvez uma dezena fosse de floresta, havia três tractores de pneus e dois de rastos, e eram suficientes para o trabalho que executavam. Todos os operadores destas máquinas tinham outras tarefas e mais de metade dos dias do ano elas não saíam das garagens, ou melhor, dos telheiros onde se encontravam. 

Estavam ainda longe os tempos das máquinas de semear, plantar, podar, cortar, vindimar, pulverizar e até de regar. Hoje, os automatismos lideram a actividade agrícola, os computadores controlam e dão informação e seria impensável voltar aos tempos idos. Basta olhar para as plantações de alho francês que acontecem aqui bem perto, para verificar que uma extensão enorme daquele vegetal, que cresce e é colhido em pouco mais de um mês, tem intervenção de duas, três pessoas na plantação e de quatro ou cinco para colher, encaixotar e carregar. A forma como aquilo cresce e se apanha em tão pouco tempo não vem ao caso e é melhor nem pensar nela.

A estona era uma tarefa pouco exigente do ponto de vista físico e consistia em cortar as ervas e enterrá-las para fertilização das terras. A sua "brandura" permitia que fosse executada maioritariamente por mulheres, equipadas com sacholas mais pequenas do que as enxadas tradicionais.

E porque me lembrei eu, velho, destas coisas de antanho? 

Depois de amanhã, vou almoçar com umas amigas e uns amigos (assim fica bem mais bonito) e está previsto que a iguaria seja cabrito estonado. Todos saberão que a estona do cabrito não é feita com sachola e muito menos com enxada, e calcularão que este arrazoado todo apenas serve para comprovar que a língua portuguesa é muito bonita e extraordinariamente rica, ao contrário do país, que continua pobre, ainda que mecanizado.

domingo, 11 de dezembro de 2022

Encontros

- Bom dia. Já não me conhece?

Ia completamente distraído, a pensar em tanta coisa, que os olhos não cumpriram a função que lhes está destinada e a pessoa passaria completamente ao lado se não se tivesse manifestado.

De máscara, bem mais magro do que (já) estava na última vez que tínhamos falado, há alguns meses. Fiquei sem jeito, mas lá me consegui recompor. 

- Desculpe. Ia a pensar ... não o vi. Como é que vai?

- Mal. O raio do bicho parece que agora me está a atacar as pernas. As veias estão entupidas e só vou ter consulta do especialista em Abril.

Era um homem danado. Sempre com pressa, que o trabalho fugia e não havia mãos a medir. Mal havia tempo para um café e o cigarro que se lhe seguia era acendido já na despedida. O bicho não teve contemplações nem foi sensível à importância para a sua pequena empresa e para os que nela trabalhavam. Não eram muitos - três ou quatro - mas passaram a gente desempregada. Talvez, entretanto, tenham arranjado outro emprego. Afinal de contas, eram bons operários, para lhe aturarem a exigência e o ritmo.

Arrasta-se com dificuldade. Tem vontade de conversar mas a respiração, difícil, não ajuda muito. Já não tem pressa ... o que tem a fazer pode esperar.

- Veja lá ... só para Abril!

sábado, 10 de dezembro de 2022

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Água

Nos últimos dois dias, as nuvens foram inclementes e despejaram milhões de litros de água, talvez para responderem aos inúmeros apelos de chuva efectuados no Verão passado. Todavia, não levaram em linha de conta que os campos há muito desapareceram das grandes cidades e foram substituídos pelo betão e pelo alcatrão. A água deixou de ter espaço para se infiltrar e passou a encaminhar-se para nenhures. Na época das chuvas, as vielas passaram a ser riachos, as ruas, ribeiros e as avenidas rios caudalosos, com apertados leitos entre os prédios construídos a eito.

Naturalmente e como é costume por cá, a "desgraceira" antecipou-se e surgiu logo na altura em que os projectos para resolver o problema, há muito pensados, estavam praticamente prontos e em vias de serem concretizados a breve trecho. Há anos que as autoridades vêm dando o seu melhor na busca das soluções e tinha de ser agora, quando tudo estava a postos para ser ... bem estudado durante mais uns tempos.

Os prejuízos são incalculáveis e foram relatados por pressurosos repórteres televisivos, com a clarividência do costume, em entrevistas feitas a muita gente que nada presenciou e sabe tudo ... de ouvir dizer. Os estragos são visíveis e tudo aconteceu por falta de limpeza das sarjetas e por os alertas terem chegado depois de a intempérie se ter desencadeado. 

O Ministério Público, sempre atento a tudo o que se passa, aguarda a conclusão do rigoroso inquérito que entretanto será aberto, com vista ao apuramento das responsabilidades criminais que, alegadamente, deverão existir numa situação destas e que, claro, serão devidamente punidas.

Alegadamente, todos apontam para a responsabilidade total de S. Pedro. A vontade de o incriminar por estes desmandos é inabalável, sendo grande a azáfama no recolhimento das provas, irrefutáveis, mas difíceis de concretizar a curto prazo, dada a escassez de meios humanos e a exigência do trabalho a desenvolver.

Entretanto, alguns estudiosos comentadores ou comentadores estudiosos, já expressaram as suas grandes preocupações e avançam com as dificuldades que irão surgir na concretização do julgamento. Não deverá ser possível conseguir a apresentação em Tribunal do, sempre alegadamente, responsável por tudo o que aconteceu, o que inviabilizará a sua condenação.

Razão para mais uma impossibilidade da justiça: S. Pedro está em todo o lado mas não tem morada certa. Não deverá ser possível ao Tribunal conseguir notificá-lo e dias e dias de imenso trabalho serão deitados ao lixo ou à água que correrá pelas ruas, assim que surgirem mais umas nuvens com chuva a sério. Dizem os experimentados nestas coisas que o processo que seguirá para o Tejo terá sempre mais de 5.000 páginas e 100 dossiers.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Palavras bonitas

Ouvi hoje, neste podcast, uma excelente conversa com uma mulher que não conheço pessoalmente, tenho presente na minha estante com vários livros e cuja liberdade e coragem aprecio muito e há muito tempo.

Em sua homenagem ( que palavra ridícula), ficam uns versos de Cesário Verde - sobre quem ela escreveu uma excelente biografia - dedicados a uma loira que bem podia ser Maria Filomena Mónica.

LOIRA

Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irónica e insolente,
Mal poisando no chão os pés ligeiros.

O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um loiro de cerveja.

E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me esse contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.

Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.

Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.

E pensava de longe, triste e pobre,
(Desciam pela rua umas varinas)
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.

E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágoa
De um tecido ligeiro e violeta.

Adorável! Na ideia de que agora
A branda anágoa a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
Cada vez caminhava mais atento.

Mas súbito parei, sentindo bem
Ser loucura seguir-te com empenho,
A ti que és nobre e rica, que és alguém,
Eu que de nada valho e nada tenho.

Correu-me pelo corpo um calafrio,
E tive para o teu perfil ligeiro
Esse olhar resignado do vadio
Que fita a exposição de um confeiteiro.

Vi perder-se na turba que passava
O teu cabelo de oiro que faz mal;
Não achei essa rima que buscava,
Mas compus este quadro natural.

O livro de Cesário Verde
Cesário Verde
Editorial Minerva

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Máquinas

O automóvel era uma maravilha. Pintura metalizada, estofos em pele, tablier em mogno, instrumentos modernos, alavanca de velocidades catita, motor silencioso, aceleração rapidíssima, velocidade quase supersónica, automatismos vários e perfeitos.

Teve anos de utilização contínua, sempre na máxima força e parecendo que o tempo não deixava marcas nem diminuía capacidades. Era um Rolls Royce, quer rolasse em autoestradas, subisse montanhas ou descesse aos infernos. Não existia nenhum outro que se lhe assemelhasse.

O tempo foi passando. Apareceram os primeiros riscos na pintura, o brilho foi-se desvanecendo, nos estofos surgiram algumas nódoas e, vendo bem, iam aparecendo alguns buracos, embora pequenos. O motor deixou o quase silêncio e elevou o ruído, por vezes parecendo que se iria desconjuntar em breve. As ultrapassagens tornaram-se lentas e mais difíceis, ainda que a velocidade se mantivesse em alta, quando comparada com a maioria dos outros veículos em circulação.

Apareceram máquinas novas, algumas com GPS incorporado, garantindo segurança, velocidade, automatismo, e, veja-se só, passaram a ultrapassá-lo com facilidade e alguma desfaçatez.

Chegou a altura de recolher à garagem e de limitar cada vez mais as saídas e, sobretudo, as viagens longas. Mantém-se um carro excelente, que fica na história, marcando um período de ouro. Nunca será esquecido por quem gosta de automóveis e, até, por quem não tem grande admiração por eles.

As condições para grandes viagens desapareceram. Vai continuar a proporcionar pequenos passeios, com elegância discreta, que é a forma de todos lhe renderem a admiração que merece.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

A adesão ao Clube Tinta da China, efectuada no seu início e no começo do ano que está, agora, prestes a terminar, tem-se revelado uma óptima decisão e tem trazido, mensalmente, um livro novo. Todos se têm revelado muito bons e diferentes, com alguns autores que não conhecia nem de nome, e temas diversos e interessantes.

Este último, chegado na passada semana e cuja leitura ainda não está concluída, versa a vida de Alexandre Yersin, cientista que descobriu o bacilo da peste negra. É uma viagem romanceada sobre a ciência e o mundo nos finais do século XIX, início do século XX, demonstrando, se necessário fosse, que "quanto mais sei, maior é a minha ignorância".

"(...) A chegada de Calmette a Saigão surpreende Yersin. Os dois homens vêem-se pela primeira vez. Foi Roux, a partir de Paris, e a conselho de Pasteur, que organizou o encontro.

Os dois homens nasceram no mesmo ano, mas os seus trajectos foram opostos. Depois de estudar Medicina na Escola de Saúde Naval, em Brest, Albert Calmette foi incorporado na campanha da China do almirante Courbet, na qual também participou Pierre Loti. Médico da marinha, passou uma temporada em Hong Kong, seis meses no Gabão, onde encontrou Brazza, mais dois anos na Terra Nova, de onde seguiu para Saint-Pierre-et-Miquelon. Concluiu há pouco o curso sobre micróbios do Instituto Pasteur, cujos responsáveis o enviam para a Cochinchina. É o caloiro dos pasteurianos.

Yersin aceita o convite para o encontro por um misto de cortesia e curiosidade. O outro representa a sua antiga vida. Como uma passagem de testemunho entre a navegação e a pesquisa científica. Quando Calmette entrou nos serviços de saúde da marinha, com 20 anos, Yersin estava em Marburgo e ainda não vira o mar. Neste momento, é ele o marinheiro. Há um ano que viaja de cá para lá no Volga. Os dois homens sentam-se num salão do Majestic, o palácio branco que fica ao fundo da rua Catinat. Agora, rua Dong Khoi.

Cadeirões estilo império, com dourados, e empregados de libré. Vista para a Riviera e para os juncos, como ainda hoje acontece, em 2012, passados 120 anos. Procuremos um cadeirão para o invisível fantasma do futuro, o escriba do caderno com capa de pele de toupeira que andava atrás do rasto de Yersin no Zur Sonne de Marburgo. Ele estica a orelha, espia e regista nas suas notas a conversa dos dois homens de 28 anos, ambos com uma barba negra bem aparada. Tomando precauções dignas de conspiradores tímidos, evocam o seu gosto comum pela geografia, por Loti e pela pesca do bacalhau. Convocam, em Saigão, o frio e o gelo de Miquelon. É o militar que está vestido à paisana e o civil que enverga um uniforme branco com cinco galões dourados.(...)"

Peste e Cólera
Patrick Deville

domingo, 4 de dezembro de 2022

As habitações e o tempo

Habitava num pequeno anexo da moradia do padre N., que, estou convicto, lho cedia gratuitamente. Não tinha emprego fixo. Vivia de "bico", fazendo pequenos trabalhos para quem necessitasse, os quais lhe iam garantindo a subsistência. Nos intervalos desse afã, bebia. E muito! 

A fala estava sempre entaramelada, mesmo quando ainda não tinham sido bebidos copos que o justificassem. Teria cinquenta anos, talvez um pouco mais. Magro, quase escanzelado, por ali andava comentando o que via ou ouvia, quase sempre para si próprio, raramente se dirigindo a alguém que não ele.

A construção da casa tinha começado há pouco tempo e, naquele dia do enchimento da primeira placa, a azáfama era muita e a paciência pouca. Assistiu a todos os trabalhos e, enquanto eles decorreram, não bebeu. Parecia muito interessado no que estava a acontecer e a curiosidade (ou seria a cusquice?) levava-o a percorrer toda a obra, sem dizer uma palavra. Até que ...

- Para que queres tu uma casa tão grande?

A resposta deve ter revelado algum enfado e ele não tornou a dirigir a palavra a ninguém até à noite. Porém, não deixou de por ali permanecer sempre atento e "momando" a sua opinião sobre a forma como se trabalhava.

Passados quase cinquenta anos, vem a confirmação: a casa é enorme! E o ditado mantém plena actualidade; "o beberrão diz o que lhe vai no coração". 

sábado, 3 de dezembro de 2022

Memória

Comecei a ler muito cedo, bem antes da entrada na escola primária, como então se chamava à que, actualmente, surge após o jardim de infância, na altura ainda inexistente. A minha irmã, nascida três anos antes, foi a grande responsável, despertando em mim o gosto pela descoberta e a sensação, estranha mas intensa, de perceber a junção das letras, os sons que daí resultavam, a imensidão de coisas novas que era possível aprender. O Jornal de Notícias que o meu pai trazia, com frequência quase diária, das suas viagens ao Porto, fez o resto. Lembro-me de o ler (talvez soletrar)  de joelhos, na cozinha, e de a minha mãe, nas suas deambulações de labuta doméstica, muitas vezes lhe passar por cima, sem ter o cuidado que o "leitor" achava ser imprescindível ter para aquele papel enorme, que trazia "tudo" o que era desconhecido e ia acontecendo pelo país e pelo mundo e, ainda por cima, sujava as mãos de tinta negra.

Os livros vieram bem mais tarde, com a escola, depois com a Biblioteca itinerante da Gulbenkian, onde um senhor, alto, cujo nome já não recordo, escolhia os livros que eu devia ler e entregou nas minhas mãos, depois de todo o Júlio Dinis, de dois ou três do Camilo, e vários do Eça, desde O Primo Basílio aos Maias, passando pelo Crime do Padre Amaro, um exemplar de A Relíquia, retirado da prateleira lá do fundo e com uma cinta vermelha à volta.

- Já podes ler, mas evita mostrar.

Depois, ainda da Gulbenkian, a Biblioteca fixa do Parque, com a senhora, simpática, a fazer crochet na secretária e a interrompê-lo para anotar os livros trazidos depois de "assentar" os que tinham sido entregues e confirmavam o "saldo" zero. As bibliotecas foram as "livrarias" que frequentei até ir para a tropa. 

O primeiro livro por mim comprado foi "Sábado à noite e Domingo de manhã", de Alan Sillitoe. Mais de meio século passado, ainda se encontra na estante, com uma estória para contar, para além daquela que contém. Foi metido no saco que transportava os, poucos, pertences que me acompanharam no ingresso no serviço militar obrigatório e não passou na revista, rigorosa, que um militar consciente e zeloso nas suas obrigações, fez ao saco logo na entrada, para se perceber claramente quem mandava.

- Um livro? Aqui não há tempo para ler! Ainda por cima subversivo. Fica cá.

- É só um romance. Nada de especial ...

Não adiantou a observação. Foi "arquivado". Só voltou ao dono duas ou três semanas depois, quando a timidez e o medo foram vencidos e alguma convivência com o comandante da companhia - Tenente (na altura) Virgílio Varela, já falecido - me permitiu ter a "lata" de lhe contar o sucedido.

- O "mecerico" vai voltar a ter o livro. Vou tratar disso ...

E tratou. Não faço ideia como o foi descobrir e onde se encontrava, mas regressou ao proprietário.

- O "mecerico" leva-o para casa e não o traz mais. Tenho esperança que os livros deixem, um dia, de ter o rótulo que este apanhou.

Aconteceu daí a pouco mais de um ano, não sem antes o meu comandante de companhia ter sido preso pela participação activa no levantamento do 16 de Março de 1974. 

E queria eu falar de um livro em concreto, que ontem me chegou em mais uma entrega do Clube Tinta da China ...

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Mundial 2022

 Hoje foi dia abençoado para Paulo Bento. A condizer com o apelido ...


PORTUGAL - 1 / Coreia do Sul - 2

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Sol e mar

Sempre o mar, para desencascar o corpo, quando a sujidade o visita.

Até o sol, que por cá anda desde que o mundo é mundo, sabe isso na perfeição e não perde nunca o ensejo de o demonstrar.