terça-feira, 30 de outubro de 2018

Livros (lidos ou em vias disso)

Depois do crime o remorso a pesar, o pensamento sem sossego, as noites sem sono, os dias, as coisas, as pessoas, as memórias, a vida ... de quem se dedica a cobranças difíceis e, nos intervalos, joga bilhar.

(...) Precisava de concentrar-me antes de começar a partida mas a cabeça fugia-me sempre para o homem, o doutor, o ervanário e os outros, a moer tudo aquilo que se tem passado nos últimos tempos enquanto um pedaço de cesto, meio submerso, se afastava de mim rio abaixo, detendo-se por vezes a observar-me sobre a asa de plástico, igualzinho a essas pessoas, já distantes, que de repente nos olham por cima do ombro antes de desaparecerem de vez comigo a pensar
     - Conheço-te?
     porque com o meu tipo de trabalho temos de ser atentos, nunca se sabe de onde vem uma ameaça, um problema, não há maneira dos outros compreenderem que apenas faço o que me compete, também necessito de comer, interessa-me lá a vidinha deles e como se trata de um encargo somente até podíamos, palavra de honra, ficar amigos depois, de quando em quando, por exemplo, aparecem-me inclusive caras com as quais simpatizo mas que me vejo obrigado a amarrotar um bocadinho, com elas já de gatas, até conseguir o dinheiro e gostava que percebessem que o sofrimento alheio não me dá prazer, resolvida a questão deixo-os na paz do Senhor, numa ou duas ocasiões ajudei-os a levantarem-se e cheguei a indicar onde fica a farmácia mais próxima onde além de tratar os dói dóis podem verificar na balança de cursor
     (são giros os cursores)
     se o peso aumentou ou tirar as medidas ao colesterol evitando tromboses, se calhar, vai na volta, salvei vidas e portanto até não foi mau de todo conhecerem-me, no que diz respeito a gratidão, não haja infelizmente muitas pessoas que a sintam e é pena, (...)

A última porta antes da noite
António Lobo Antunes
D. Quixote (2018)

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Livros (lidos ou em vias disso)

Apesar do grande poder que a vida lhe ofertou (ou ele tomou), de ter sempre uma multidão a seus pés, de lhe bastar um mero olhar para ser obedecido e venerado, o presidente morreu e, em vez do funeral de estado que se preparava, vai ser escondido na lixeira. Apesar de bem morto e bem pregado no caixão, ele ainda filosofa:

(...) Vão me enterrar numa lixeira. Um presidente soterrado por lixo, deve ser uma metáfora que não entendo, com as faculdades já diminuídas.

Mas adivinho as piadas a surgir se me descobrirem o caixão aqui no meio da merda. O que pode acontecer por causa do desespero. Ninguém sabe quanto cava uma pessoa quase morta de fome e que espera encontrar qualquer coisa para comer, mesmo podre, ou para vender, mesmo estragada. Algum jornal satírico põe logo em título: <>, o que deve ter mesmo piada, porque não estou propriamente enterrado, mas sim, enlixado mesmo. E bem lixado. Talvez não tenha sido a melhor ideia dos meus familiares e amigos, mas até compreendo, a rapidez da manobra não permitia olhar ao sítio, este era o melhor entre os próximos. Ou o menos mau. Como se tivessem a intenção de me impedirem de pensar com os meus botões de punho em ouro puro, atiraram mais entulho para cima, o qual foi abafando todo o som do mundo vivo e do inerte, se este tem alguma voz.

O manto do silêncio me cobria finalmente. (...)

Sua Excelência, de corpo presente
Pepetela
D. Quixote (2018)

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Peixeiro

Era M. da Nazaré, revelando o apelido a origem da vila piscatória a que voltava, duas, três vezes por semana, sempre que lhe "cheirava" haver peixe. Utilizava o burro para fazer cerca de trinta quilómetros e trazia a mercadoria nos dois alforges que o asinino carregava, para além do peso do dono. O peixe era adquirido vá lá saber-se como porque, na altura, não havia lota nem ASAE.
Chegado ao poiso, enchia duas canastras ligadas por um pau grosso, que lhe permitia carregá-las ao ombro, sem grande esforço aparente. O peixe maiorzinho - chicharro, carapau, talvez um goraz - ficava na canastra da frente; a da traseira era cheia com as petingas, os carapaus do gato, as cavalas, algumas sardas. 
E. a pé, lá corria ele toda a aldeia, bem cedo, anunciando a sua presença com o roncar de um búzio, enorme, que se ouvia bem longe. Vendido o peixe, era tempo de desfrutar dos lucros. Arrumado o "veículo", a corrida para a taberna era imediata, que os cobres ganhos já pesavam na algibeira e chegavam para a bebedeira que começava à hora a que havia de almoçar e se prolongava até àquela a que devia jantar.
A companheira aguardava-o na soleira da casa (barraco) e, à distância, avaliava se havia condições para ali permanecer ou era melhor arranjar onde passar a noite, para que a tempestade de estalo e pontapé não lhe fizesse mais negras do que as que trazia sempre. 
Os vizinhos, mais afoitos, questionavam de vez em quando:

- Você, quando está são, até nem é má pessoa, mas bêbado ... até a desgraçada da mulher tem de fugir para não comer pela medida grossa.

- Desgraçada?! Tem sorte em estar comigo. Não presta para nada ... até lhe faltam bocados.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Crónica de uma morte anunciada

Provecto sexagenário, o poste tem os seus dias contados desde Julho. No início, teve alguma amargura com a notícia, por não se ter preparado com o devido tempo, como convém a quem vai contando os anos sabendo que a eternidade é apenas uma miragem.
Custa, sabemos que custa, chegar ao fim quando ainda damos luz, iluminamos, criamos sombras, mas ... chegou a altura de ser substituído por um outro, melhor colocado e, sobretudo, posto em lugar público porque a este se destina o serviço prestado.
O poste concluiu, assim, que o melhor era sair, tendo consciência que a sua hora chegara! E aguarda, serenamente, que os "gatos pingados" lhe prestem as devidas homenagens de forma digna, sem presunções nem discursos, mas condizentes com a luz que a todos deu, de forma desinteressada e sem olhar a estatuto, credo, cor ou género, como agora soe dizer-se. Mesmo nos anos do breu, procurou aclarar sempre as vistas a quem o visitava ou por ali viajava.
Eis senão quando se verifica que o A não o pode retirar sem o B; o B necessita de autorização do C, que está em reunião; o D garante que esta semana é que é e o E, que conhece o problema e já esteve no local, tem vontade de o resolver mas aguarda a decisão sobre a requalificação (bonita palavra) do local.
E o poste, periclitante, pensa um pouco e desabafa:

- Porque não caio eu do pedestal, já tão reduzido, sem intervenção destas mentes brilhantes?

Não, responde o bom senso. Vamos aguardar que a solução não tarda! É só uma questão de tempo!

sábado, 6 de outubro de 2018

Livros (lidos ou em vias disso)

Ler, dizia-se hoje em Óbidos, é uma actividade que exige um trabalho enorme do nosso cérebro. Esse trabalho é, na maioria das vezes, completamente inglório, por não se conseguir opinião igual nos leitores e, muito menos, que ela seja coincidente com a do respectivo autor. E, lugar comum, o mesmo livro provoca reacção diferente na mesma pessoa se lido (relido) em tempos diferentes.
Deixem-se as coisas sérias e as opiniões mais ou menos filosóficas e veja-se como é possível escrever verdades tão duras com um humor genial.

LUTA DE CLASSES VOCABULAR

"Certas palavras têm mais prestígio do que outras. A palavra desfalque olha de cima para a palavra roubo - e, por isso, o elegante autor de um desfalque distingue-se de um vulgar ladrão. As sentenças judiciais costumam ser bem mais pesadas para o segundo, por pouco que ele roube, do que para o primeiro, por mais que ele desfalque. Ora, a minha vida decorre inteiramente num universo lexical desprovido de prestígio. Tirando fugazes momentos em que, no entender de certos operadores de telemarketing, eu sou um cavalheiro, na esmagadora maioria do tempo eu sou um gajo. Todas as palavras usadas para me descrever a mim e ao meu mundo são triviais. Por exemplo, na última ceia, Nosso Senhor Jesus Cristo bebeu por um Graal. Nunca me aconteceu. Os meus amigos e eu, quando jantamos, bebemos sempre por copos. Nunca vamos tomar uns grais. São sempre vulgares - e, por vezes, plásticos - copos. Muito provavelmente, também não terei um solene leito de morte. Como é óbvio, durmo numa cama. Devo morrer lá. Outro exemplo: nos livros, as personagens retiram-se com muita frequência para os seus aposentos. Eu vou para o meu quarto. Quando os meus pais (quando eu era pequeno), ou a minha mulher (agora) me põem de castigo, é para o quarto que me mandam.
Sucede que as palavras determinam a qualidade das coisas. Às vezes vou a um desses novos restaurantes em que os pratos levam dez linhas a descrever. No meu tempo não era assim. Os pratos eram designados por uma palavra só. Feijoada. Chanfana. Cozido. Hoje sinto que me falta formação académica para almoçar lascas de bacalhau em azeite a baixa temperatura sobre cama de puré de grão de bico e espinafres baby com redução de balsâmico, alho e ervas finas. E, quando a comida chega à mesa, descubro sempre que desfrutei mais da descrição do que sua ingestão. As palavras são mais ricas do que a comida, mais suculentas do que a comida, mais saborosas do que a comida. E, neste tipo de restaurante, normalmente as palavras são mais do que a comida. O discurso sobre a comida é melhor do que a comida, faz a comida melhor do que ela é. Na minha vida isso é impossível. Palavras cruelmente banais descrevem a minha evidente banalidade. Não hei-de falecer no meu leito de morte após uma noite de graais. Vou morrer na cama depois de ter estado nos copos. E já será uma sorte."

Estar vivo aleija
Ricardo Araújo Pereira

Quotidiano

Está a chegar a noite num sábado de Outubro que mais parece de Julho, que teve uma manhã de praia e uma tarde de F(Ó)LIO - que também está a acabar - ouvindo João Pinto Coelho e Joel Neto falarem sobre o medo do desconhecido, moderados por Patrícia Portela. 
Ouvir falar de literatura por quem sabe o que diz causa-me sempre arrepios, agravados, desta vez, por virem à baila crimes do holocausto e as tremuras das ilhas, lindas, dos Açores. 
De regresso a casa, o melhor é ouvir música (boa) e com excelentes palavras, como esta: