segunda-feira, 18 de março de 2024

Incómodos

Faltam quinze minutos para a hora prevista. A sala, antiga mas sempre bonita, está bem composta, apesar de ser meio da tarde de Domingo. Na fila reservada, apenas estão sentadas duas "jovens", nos dois primeiros lugares da coxia. Devem ter vindo "de véspera", que a idade acentua a pressa e o receio de chegar atrasado. Nenhuma é "A senhora de Dubuque", que só aparecerá daí a pouco, em cima do palco.

Pede-se licença, antecedida das desculpas devidas pelo incómodo. Recebe-se, em troca, um ar enfatuado, acompanhado pelos raios de dois olhares faíscantes, como quem diz:

- Olha que chatos. Não podiam ter vindo mais cedo?

Não se levantam. Rodam um pouco as pernas, devagar, dando mostras do desagrado que a situação lhes causa. Nas mãos de ambas está o utensílio indispensável para qualquer pessoa de "bom gosto" e com necessidade premente de não perder pitada do que vai acontecendo no mundo. Já sentado, reparo melhor: afinal não são mensagens, notícias ou redes sociais; as cartas evoluem no ecrã e o jogo desenrola-se com bastante rapidez. Os dedos são ágeis e denotam bastante prática.

A instalação sonora do teatro anuncia que o espectáculo vai começar, que é proibido gravar ou fotografar e que os telemóveis deverão ser desligados. O jogo prossegue e termina com uma vitória, premiada com foguetes no visor.

- Consegui! Mas foi difícil ...

A interlocutora não faz comentários. Talvez o tempo não lhe tenha permitido chegar ao fim e o seu mau humor volta a mostrar-se.

As luzes apagam e os aparelhos são guardados na mala já com tudo escuro.

A peça, felizmente, não foi incomodada e valeu bem a deslocação.

sábado, 16 de março de 2024

Não esquecer

Passam hoje 50 anos em que uma manhã surpreendente para muitos e atribulada para alguns deu lugar a uma declaração oficial do regime, emitida já no final do dia: "Reina a ordem em todo o país".

Foi o levantamento do "meu" Regimento de Infantaria 5, que levou muita gente conhecida à "grelha" e apressou a "madrugada que eu esperava". Esta, levada a cabo pelos militares sem medo e imortalizada pela pena de Sophia de Mello Breyner Andresen, viria a surgir, esplendorosa, exactamente 40 dias depois, no dia dos meus 22 aninhos. 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

Surpresa!

Ao fim de tantos anos, descobri que, afinal, o apodo de Águas Mornas para os habitantes das Caldas da Rainha não é exclusivo. Há mais gente, pelo menos em Trás-os-Montes, que também é assim "catalogada".

Se dúvidas houvera, basta ler!

"(...) Este apaziguamento geral saltava tanto aos olhos que Soutelinho não podia escapar sem um apodo que o consagrasse. Como se sabe, raras são as povoações desta província nortenha sobre as quais não pese o fardo dum apodo. O apodo é uma alcunha que normalmente castiga um pecadilho, aleijão ou costume próprio das gentes do lugar. Mas enquanto a alcunha é individual, o apodo é colectivo. Há apodos e apodos. Algumas vezes nada têm de depreciativo, e são pacificamente aceites. Outras vezes, porém, os apodos são irritantes, porque nascem de um qualquer vício ou aleijão de que os habitantes padeçam e de que não gostem de ser lembrados.

Não é irritante o apodo das gentes de Soutelinho, que é Águas Mornas - e não sei que outra forma assentaria melhor aos seus modos cordatos do que Águas Mornas. Águas mornas estão longe do ponto de ebulição e por isso não escaldam ninguém, e não dão portanto azo a confrontos, litígios, guerras. Quando, noutra aldeia qualquer das redondezas, alguém quer intimidar alguém, diz-lhe com arreganho:

- Olha que eu não sou nenhum Águas Mornas, ouviste? (...)"

A.M.Pires Cabral
Um cão chamado Pardal

terça-feira, 12 de março de 2024

Resultados

Eis que surgem os resultados das legislativas antecipadas, em consequência de um processo que há quatro meses continua a marinar no forno do segredo ... da justiça. Todos os prognósticos falharam, apesar de serem feitos por gente que sabe da poda e que, afinal, se engana como todos os mortais, ainda que, quando "prega", raramente exprima dúvidas.

O "jogo" ainda está no período de compensação. No entanto, toda a gente acha que o resultado final não sofrerá qualquer alteração, apesar de os votos dos emigrantes só chegarem lá para o dia 20. A AD venceu, o PS ficou pertinho e o outro  chegou ao 3º. lugar, com mais de um milhão de apaniguados.

Parece estar um caldinho armado, de digestão difícil e futuro incerto. Em Belém, devem fazer-se preces fervorosas para que tudo se resolva e haja Governo para ... 6 meses. Já não será mau, cumprir-se-á a Constituição e, findo esse tempo, podemos ir de novo colocar a cruz, aproveitando-se a ocasião para imprimir um boletim de voto onde todos os partidos concorrentes exibam a mesma configuração, sem a amálgama deste, com maiúsculas para uns, minúsculas para outros, sem que se perceba a razão de tal diferença.

E se, porventura, surge outro milhão? A ver vamos ...

domingo, 10 de março de 2024

Prognósticos

Só no fim do jogo, disse, num momento de grande inspiração e há já alguns anos, o jogador João Pinto, à época capitão do FCP. 

Aquela certeza aplica-se completamente ao resultado das eleições que estão hoje a decorrer, após terem sido anunciadas pelo Presidente da República há tanto tempo que já nem recordo bem quando foi. Por mim, que já fui a jogo, aguardo com toda a confiança que os eleitores (ainda) não tenham perdido a cabeça e votem de forma a assegurar que o continuarão a fazer no futuro.

Os que viveram no tempo da escuridão são cada vez menos e, naturalmente, o futuro não passa por eles, por muito que isso custe a alguns. Cabe-lhes (nos), contudo, a obrigação de dizer, em voz clara e bem alta, que não há preço para a liberdade e que não temos necessidade de manipuladores, gurus ou predestinados. Nascemos todos iguais em direitos e em deveres, independentemente do berço, do QI, da cor ou do feitio.

Cabe-nos a difícil tarefa de contribuir para que o país (e o mundo) seja cada vez mais justo, mais inclusivo,  que esbata as desigualdades e crie oportunidades iguais para todos.

À noite logo se vê!

sábado, 9 de março de 2024

Velocidade

E cá está mais um, a caminho do meio século que não tarda nada aí. Quase não se dá por isso. O tempo não corre devagar, ao contrário do que alguns afirmam.

Passa hoje mais um aniversário do dia em que um (então) jovem foi pai pela primeira vez. E gostou! Passados três anos repetiu a proeza e colheu o segundo fruto, tornando o cabaz ainda mais atraente.

A minha menina faz hoje anos e merece todo o carinho que os dois netos grandes lhe dedicam e também o que os "velhotes" lhe manifestam sempre, ainda que sem a exuberância que ela merece.

Vamos em frente, que "a vida é feita de pequenos nadas"!

quinta-feira, 7 de março de 2024

Palavras bonitas

... Para a minha irmã, que hoje faz anos, mas não quer que se diga quantos. "Era só o que faltava!".

DE RAMO EM RAMO

Não queiras transformar
em nostalgia
o que foi exaltação,
em lixo o que foi cristal!
A velhice,
o primeiro sinal
de doença da alma, 
às vezes contamina o corpo.
Nenhum pássaro
permite à morte dominar
o azul do seu canto.
Faz como eles: dança de ramo 
em ramo.

Eugénio de Andrade
Poesia
Fund. Eugénio de Andrade (2000)

terça-feira, 5 de março de 2024

Prazeres

Para quem gosta muito de ler e também de comprar livros, é sempre um grande prazer ouvir a campainha e, pela janela, verificar que o carteiro quer entregar uma encomenda. Foi o que aconteceu hoje e a caixa trazia três livros de Manuel S. Fonseca ou da sua coordenação. Dois deles haviam sido pagos, o terceiro era oferta, como reconhecimento da "qualidade" do cliente. "25 de Abril, no princípio era o verbo", com ilustrações de Nuno Saraiva; "O pequeno livro dos grandes insultos" e "Que Salazar era o Salazar de Fernando Pessoa", todos da Editora Guerra  Paz.

Apenas folheei o "Salazar", personagem que, nunca o esquecerei, partiu na véspera do dia em que tirei a carta de condução e cujo enterro por pouco não impedia a realização do exame. A personagem não me desperta qualquer entusiasmo, mesmo "interpretado" por Fernando Pessoa. Os outros dois, li-os de um fôlego, que quem espera, desespera. Diverti-me "imeeenso", como diria se vivesse lá para os lados de Cascais. 

De "O pequeno livro dos grandes insultos" não me atrevo a comentar e muito menos a transcrever. Ficaria tão corado quanto as camisolas do Benfica (antes da goleada nas Antas). 

Vamos ao que importa: o livro sobre o 25 de Abril faz uma breve cronologia dos factos do dia da revolução (com precisão, diga-se) e depois transcreve muitos dos escritos, ditos, cenas, slogans, a maior parte dos quais foram "escarrapachados" nas paredes de Lisboa pela irreverência anarquista da época. E são tantos, tantos, muitos que a memória já tinha arquivado. Eis apenas alguns exemplos: "Não aos organismos de cúpula, sim aos orgasmos de cópula", "A terra a quem a trabalha, mortos fora dos cemitérios, já!", "Abaixo o sabão amarelo, abaixo a tinta da China, independência nacional", "Abaixo a reacção, viva o motor a hélice", "Se Deus existe, porque não se recenseou?", "Nem mais um anticiclone para os Açores, nem mais um faroleiro para as Berlengas", "Cimbalino ao poder, abaixo o café de saco, morte à cevada reaccionária", "Abaixo a exploração sexual da galinha. Cada um ponha os ovos de que precisa", "Inter 2 - Sindical 0", "Abaixo a foice e o martelo, viva o Black and Decker".

Por mais que apareçam uns quantos "inteligentes" a quererem eliminar, quem viveu nunca esquecerá. 

sábado, 2 de março de 2024

Mãe

02.03.2004, terça-feira.
Seria igual a tantas outras?
Diferente, tão diferente.
- Vou ali a casa, volto já.
- Não tenhas pressa. Não vale a pena.

Como sempre, tinhas a razão do teu lado.
E ficou tanto por dizer.
E por fazer.
Vinte anos passaram.
Continua a parecer que foi ontem.
E todos os dias o diálogo acontece,
sem mágoas. O amor permanece.

TUDO É FOI

Fecho os olhos por instantes.
Abro os olhos novamente.
Neste abrir e fechar de olhos
já todo o mundo é diferente.

Já outro ar me rodeia;
outros lábios o respiram;
outros aléns se tingiram
de outro Sol que os incendeia.

Outras árvores se floriram;
outro vento as despenteia;
outras ondas invadiram
outros recantos de areia.

Momento, tempo esgotado,
fluidez sem transparência.
Presença, espectro da ausência,
cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria.
Corpo que a arder arrefece.
Incandescência sombria.
Tudo é foi. Nada acontece.

António Gedeão
Poesias completas (1956-1967)
Portugália (1975)

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

29 de Fevereiro

Julgo que não estarei equivocado. Desde que há eleições livres em Portugal, nunca o dia 29 de Fevereiro havia participado em qualquer campanha eleitoral. Era uma pena!

O dia só tem algum protagonismo de quatro em quatro anos, abandonando os que nele nasceram e esquecendo os que morreram, aceitando apenas comemorações tão espaçadas que ficam esquecidas no fundo da gaveta. Ora, as eleições que se realizam em Portugal desde 1975 são consequência desse dia memorável que foi o 25 de Abril de 1974, sempre lembrado por aqueles que o viveram e cada vez mais ignorado pelos que pouco sabem ou fingem desconhecer o que se viveu em Portugal até àquela data gloriosa.

Aos olhos de quem vê de longe e ouve quando lhe apetece, os "sabões" dizem que tudo se encaminha para uma solução que nenhum arrisca vaticinar. E se...? E se...? E se...? Prognósticos só no fim ...

No dia 10 do próximo mês saberemos tudo o que os eleitores decidiram e veremos o que é extraído desses resultados pelos partidos concorrentes e por quem determinou a realização do acto. 

Por enquanto (longe vá o agoiro) são os resultados expressos nas urnas que contam e não os ditados pelo Facebook e quejandos.