A vida tinha-lhe sido madrasta, a comissão na guerra colonial agravara a situação, a solidão fizera o resto.
"Batia" mal e ninguém lhe dedicava um mínimo de atenção.
- Está maluco. Não lhe ligues.
A doença foi-se agravando, começaram a surgir actos de violência, destruições sem qualquer razão, comportamentos não tolerados pela sociedade. Foi internado. Passou meses no hospital psiquiátrico e fez progressos notórios. Delicado e dedicado, fazia o que lhe ordenavam, sem resmunguices nem trombas.
Toda a gente elogiava o seu comportamento e, sempre que lhe era dirigida palavra, os seus olhos brilhavam de gratidão. A rotina do hospital estava assumida, o seu horizonte era curto e a ambição, pouca, morria por ali. Sentia-se bem. Os passeios pelo jardim deliciavam-no, a satisfação na execução das tarefas era visível, as saudades da vida anterior não existiam. Talvez nem se lembrasse dela, se a tivera.
Os relatórios médicos registavam os progressos e, como era previsível, um dia foi chamado ao director. Podia dar lugar a outro, que as vagas eram poucas e as necessidades, muitas.
- Estamos muito satisfeitos consigo e queremos dar-lhe alta.
- Ó senhor doutor, eu estou tão bem aqui ...
- Só queremos saber o que vai fazer quando sair.
Pensou, meditou durante uns minutos que pareceram, ao médico, uma eternidade.
- Vou arranjar uma fisgazinha e vou aos pássaros.
O médico não apreciou a resposta e mandou-o regressar à enfermaria e às rotinas. Satisfez-lhe o desejo encoberto. Passado um mês, nova tentativa.
- Já pensou melhor? O que pensa fazer se sair daqui?
O "se" da pergunta já revelava incerteza, insegurança e dúvida sobre a resposta que iria ser obtida, e também sobre o estado mental do doente.
- Vou arranjar uma fisga e vou aos pássaros.
Antes que o caldo entornasse, o médico, ríspido, ordenou-lhe a retirada. Passou mais de um ano. A rotina manteve-se. O comportamento irrepreensível. As conversas com nexo. Tudo normal, como se os neurónios estivessem na cabeça de um motor que o mecânico alisou e pôs como nova.
- Já pensou bem naquilo que vai fazer quando daqui sair?
- Já sim, senhor doutor. Vou arranjar uma mulher ...
- Boa! E para quê?
- Para namorar e depois casar com ela.
- Muito bem! E o que faz na noite do casamento?
Seguiu-se a descrição, exaustiva, do caminho até ao quarto, da cerimoniosa cena do despir de toda a fatiota, sublimada pela retirada das cuecas. O médico, já com alguma excitação, não resistiu e interrompeu:
- E depois?
- Ainda não pensei muito bem mas, se calhar, tiro o elástico das cuecas, faço uma fisgazinha e vou aos pássaros.