segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Eleições

"Vitória, vitória, acabou-se a história!"

Quem apostou que iria haver um novo governo a meio da legislatura, perdeu. E perdeu bem! 

Numa altura em que todo o país (e o mundo) ainda anda a braços com o malfadado vírus, que tem atazanado a vida a todos e criado problemas que trarão repercussões enormes no futuro, prevaleceu a ideia de que derrubar o governo era criar mais uma pandemia a juntar à outra. E por isso ...

Os portugueses que votaram, bem mais do que nas eleições anteriores, deram uma trepa naqueles que não tiveram calma e correram sem nexo. Não há bela sem senão e, na nova assembleia, sentar-se-ão doze "caramelos" que  lá não pertencem, mas que se há-de fazer ... são os custos do sistema. Não sendo perfeito, é o melhor que se pode arranjar e, confirmou-se uma vez mais, permite punir e premiar, desde que as pessoas se interessem e se dêem ao trabalho de colocar a cruz no sítio certo.

Desta vez, a legislatura deverá durar os quatro anos previstos na lei e depois ... se verá!

domingo, 30 de janeiro de 2022

Actualidade

Esta manhã passei os olhos pelo número 320 da Exame Informática, correspondente ao mês de Fevereiro deste ano, que vai começar na próxima terça-feira. Confesso que a minha dificuldade em ler já é muita, não por a revista ser editada em alguma língua que não domine mas antes pela minha estranheza, dificuldade e ignorância de uma grande parte dos temas nela tratados.

Os tempos mudaram. E muito. Não sendo um info-excluído, dominando razoavelmente Excel, Word, Power Point e outros programas, sempre na óptica do utilizador, reconheço, todavia, que muitas das utilidades que hoje aparecem ligadas à informática me deixam perplexo e extasiado com os caminhos que se abrem todos os dias, alguns (poucos) dos quais ainda vou conseguindo trilhar sem dificuldades de maior, dada a sua "leveza".

Voltando à Exame Informática referida, surgiu-me um título que despertou a curiosidade, a qual, mesmo algo mitigada, ainda por mim vai escorrendo: "ESCOVAS DE DENTES INTELIGENTES". E, logo abaixo, a explicação: "a tecnologia ajuda-nos em tantas actividades ... porque não usá-la também na higiene oral? Além de eléctricas, são inteligentes!". De seguida, surgem cinco exemplos de escovas eléctricas, cujo preço vai de 39,99 € a 279,99 € e que apresentam um manancial de soluções e de informação que eu acho (sim, sou "achista") que devia ser obrigatório usar uma delas e não aquela coisa anacrónica que escova os dentes tal qual como no século passado.

1. "Executa 31 mil movimentos por minuto (...) e permite, através da app, analisar a escovagem."

2. "Tem um sensor de pressão que ajusta sozinho o número de movimentos para proteger as gengivas."

3. "A fusão entre os sensores e um algoritmo de IA alerta o utilizador caso se esqueça de escovar uma área específica."

4. "É como um assistente (...) até regista o nosso progresso de limpeza ao longo das semanas."

5. "É o Ferrari (...) tem elegância, desempenho e a capacidade de mapear em 3D os dentes."

Fiquei esclarecido e ainda estou a reflectir a decisão a tomar. 

Já não vale a pena alertar os partidos que hoje concorreram às eleições para o efeito que teria no resultado, se, no programa, incluíssem a possibilidade de oferecer uma destas escovas a cada português. Mas fica a indicação. Quem sabe se nas próximas (que não deverão tardar muito, digo eu, que sou "achista") não resultaria em pleno.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Reflectindo

A reflexão está a acontecer e não deixa margem para outra coisa que não seja reflectir porque hoje é o dia da reflexão e no dia da reflexão não se pode fazer outra coisa que não seja reflectir e por isso se exige a todos e a cada um que reflictam sobre como agir amanhã, perante a decisão que haverão de tomar frente ao boletim de voto que exige uma decisão reflectida, tomada como o resultado de uma reflexão de vinte e quatro horas, que há-de reflectir a escolha de cada um e lá para o final da noite, veremos, ouviremos e leremos sem podermos ignorar, como reflectia Sophia, o resultado de uma profunda reflexão reflectida por todos os que foram votar, com toda a segurança proporcionada pela reflectida reflexão de quem sobre o assunto muito reflectiu e votou, e também por aqueles cuja reflexão lhes determinou a reflectida decisão de não comparecerem por acharem que estas eleições resultam de uma não reflectida decisão tomada em plenário por deputados que não reflectiram o suficiente, apesar do aviso reflectido do Presidente da República que a todos disse, depois de reflectir por uns momentos, que a reflexão sobre o chumbo devia ser muito bem reflectida, mesmo que para isso fossem necessários vários dias de reflexão e não apenas o curto dia que nos é proporcionado para reflexão tão importante, escasso para que a reflectida decisão se torne clara e aponte o local da cruz que seja o resultado da reflexão tida e que não deixe qualquer dúvida por reflectir, proporcionando o resultado reflectido pela reflexão de todos os portugueses.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Gaivotas ...

... em terra, temporal no mar.

A rotunda tem uma fonte enorme, redonda, com azulejos a cobrir a parede da zona que armazena a água e de onde a mesma parte para criar efeitos incolores durante o dia e luminosos mal o sol se põe. Divide, ou une, dois bairros característicos da cidade - Ponte e Arneiros - e por ela muito trânsito flui, às vezes com bastante dificuldade, pelos diversos e estratégicos itinerários que proporciona.

Até há pouco tempo, os únicos visitantes alados eram alguns melros mais afoitos e um ou outro pardal que aproveitava a água para se dessedentar e a relva para penicar. Agora, porém, tem muitos habitantes fixos, emigrados da Foz do Arelho, que olvidaram ou não querem fazer o caminho de regresso. Dela fazem o seu mar e por ali se quedam, dormindo nos postes de iluminação. As inúmeras gaivotas exercitam a sua capacidade física por toda a cidade, acima dos telhados, e depois descansam na relva e na água da fonte.

Estão de tal forma habituadas ao novo poiso que terão perdido o sabor salgado da água do mar, a sensação da areia debaixo das patas e o prazer gastronómico dos peixes que os seus bicos surripiavam à lagoa e ao mar. Agora, de acordo com os novos tempos, vão-se abastecendo no takeaway dos benfeitores dos gatinhos, que deixam as bolinhas de ração em sítios estratégicos, sendo que grande parte delas, bolinhas, nunca chegam a descer pela goela dos bichanos a quem eram destinadas. As gaivotas, em voo picado, encarregam-se de, rapidamente, fazerem desaparecer o pitéu que mãos e corações preocupados queriam que alimentasse os gatos sem abrigo.

"Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma - Lavoisier"

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) A ideia de uma peregrinação a Roma, empreendida por uma viúva alemã em era de turbulência religiosa, poderá desafiar um narrador de histórias de qualquer época e local. E se se aduzir que nos achávamos no fim da Primavera de mil quinhentos e trinta e quatro, e que Martinho Lutero afixara as suas negregadas teses dezassete anos antes no portal da Igreja do Castelo de Wittenberg, núcleo donde eu, a referida senhora, iria partir, obteremos um quadro em que se revelará tarefa simultaneamente árdua e fascinante introduzir alguma acção.

Eis que o Reformador continuava entretanto, e tal e qual como hoje, a exprimir a sua arrogância, quer contra o Papado inamovível, quer contra os fanáticos anabaptistas.

Seriam várias as semanas de preparativos aturados, visando a bem dizer uma quase mudança de residência para um país diferente, na qual eu acabaria por investir aquilo que me assistia ainda de meios de fortuna, e de energias do corpo. E naquela loucura senil, ou naquele ímpeto redentor, sentia-me por vezes à beira da assinatura de uma sentença de morte. Recrutei quanto consegui de batedores, criados e guardas, reuni os animais de tiro e carga indispensáveis, e acumulei arcazes sobre arcazes, de mantimentos e roupas, de armas de ataque e defesa, de peças de mobiliário, e de artigos de botica. E convidei a querida Susanna, amiga de sempre, para me acompanhar na expedição em que figuraríamos como as únicas mulheres. Quanto às relíquias que me cumpriria negociar, tendo obtido para o efeito a promessa de mediação do cardeal Cajetan, distribuí-as pelos falsos engenhosamente praticados nos múltiplos caixões de transporte da bagagem.(...)"

Tríptico da Salvação
Mário Cláudio
D. Quixote (2019)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Século passado

Um salto a Torres Vedras para "tratar de assuntos do seu interesse", como rezaria qualquer convocatória do antigamente. Pelo caminho, como sempre, o rádio do carro sintonizado ora na Antena 1 ora na Antena 2. Calhou a sorte à Antena 1 ou, melhor, a mim.

- Passam hoje 40 anos do lançamento de um EP de Amália Rodrigues, onde figurava "O Senhor Extraterrestre", de Carlos Paião.

Lembrava-me bem da música. Fui ouvindo a emissão especial e sonhando ... Há quarenta anos, ainda eu não tinha chegado aos trinta e dava os primeiros passos como quadro bancário, em Peniche. E a música era, como sempre foi, a companhia no caminho feito diariamente, sem auto-estradas nem IP's, com paralelo escorregadio na Serra D'El Rei e na Coimbrã, e um pobre homem, cujo nome já não recordo, a dar orientações ao trânsito no centro da Atouguia da Baleia, onde a rua, enforcada, não dava espaço para dois carros cruzarem.

E, nesse tempo, havia mais de cinquenta traineiras dedicadas à pesca da sardinha, com as companhas pagas à quinzena, a dinheiro, na maioria das vezes às mulheres dos pescadores que delas faziam parte,  mais uns quantos barcos que se aventuravam longe, ao peixe mais grosso, e davam os primeiros passos as sociedades mistas com a Mauritânia, tal como os plafonds de crédito que abririam as portas à intervenção do FMI.

Desse tempo ficaram muitas e boas recordações e "O senhor extraterrestre" faz parte delas ...

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Sondagens

De acordo com as sondagens que têm sido divulgadas, os resultados das eleições do próximo domingo darão a vitória ao PS ou ao PSD, sendo claro que, para chegar a estas conclusões, foram necessários estudos aprofundados e trabalhos de campo de enorme rigor, executados por quem sabe e bem domina os desígnios daqueles que já começaram a votar e dos que o irão fazer no dia 30.

Esses trabalhos são, por lei, publicitados referindo o número de pessoas contactadas, o meio utilizado e mais uns quantos itens que elucidam e credibilizam o resultado divulgado. Até hoje, nunca tive a sorte de ser inquirido, o que, julgo, apenas sucedeu por, tal como na lotaria, o prémio que me devia ser destinado calha sempre a outros.

As conclusões, tão brilhantes quão difíceis, dão primeiras páginas de jornais e aberturas de noticiários televisivos, benefício único, julga-se, usufruído por quem paga. Longe de mim a ideia, estapafúrdia, de que poderá haver outros interesses que não a análise, fria e científica, das intenções de voto.

Aqui, na sossegada rua oestina, sem estudos nem trabalhos de campo, desde a queda do governo que se vaticina, sem margem para dúvidas, que o vencedor das eleições será o PS ou o PSD.

Na próxima segunda-feira vamos poder anunciar aos sete ventos que a nossa previsão estava certa e que, tal como tínhamos previsto, a vitória sorriu ao PS ou ao PSD. E é tão certo como dois e dois não serem cinco!

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

domingo, 23 de janeiro de 2022

Canhão

Não, não é de Navarone e, apesar do seu aspecto bélico, expele apenas muita da porcaria que, há anos, a lagoa vem acumulando no seu fundo, impedindo que o mar cumpra a sua função na plenitude, levando a água salgada mais longe, na maré alta, e trazendo-a de novo ao seu regaço, na vaza.

Cumpre a determinação divina e ao domingo não trabalha. Descanso merecido, para quem labuta de segunda a sábado, sem pausas. Poder-se-á dizer que viola regras antigas, não aproveitando o descanso dominical para ir à missa. Mas isso são contas de outro rosário ...

Não sai do lugar onde o instalaram, com os pedregulhos que o envolvem a garantirem que o mar não lhe torna a fazer estragos, como aconteceu logo no início da sua estadia.

A água está escura e notam-se perfeitamente os detritos a deslocarem-se para sul. Em princípio, não deverão chegar ao Algarve, mas o Baleal e Peniche vão tendo dificuldade em visualizar a transparência tão característica do oceano oestino.

Tudo indica que os trabalhos de desassoreamento da Lagoa de Óbidos deverão ficar concluídos em Abril. Nessa altura, o canhão e as pedras que o amparam deverão abandonar o local e ir pregar para outra freguesia ...

A Lagoa ficará mais limpa e as guelras dos peixes que lá têm a sua morada permanente ou esporádica ficarão mais limpas.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Batota

A esclerose anquilosante fazia com que os óculos, fundo de garrafa, se aproximassem cada vez mais dos joelhos. A dificuldade em mover-se era enorme e, para se sentar à mesa do café onde passava a maior parte do dia, era necessário um apoio, de modo a que as pernas ficassem quase na vertical. Uma posição tão difícil de descrever quanto deveria ser de manter.

Tinha sido saudável, possante e brincalhão até aos vinte anos. A partir daí, das três características, apenas a brincalhona se mantinha e somente na conversa. A degradação era visível dia a dia mas não lhe retirava o sentido de humor, a língua verrinosa, a anedota pronta. Fazia crer aos outros que nada doía e aquilo que parecia a todos um doloroso infortúnio, para ele era como se não existisse.

Jogador de cartas exímio, trazia sempre consigo dois baralhos, que retirava do bolso com dificuldade. Da lerpa à sueca, da bisca lambida ao sete-e-meio, volta e meia o montinho, e era tão difícil ganhar-lhe como trepar ao cimo de um eucalipto.

- Só jogo com as minhas cartas!

E ganhava sempre. Na maior parte do dia não tinha parceiros, cada um ocupado com a sua vida, o que não acontecia com ele, a quem a vida já não oferecia qualquer ocupação. Quando era possível juntar mais dois, era a bisca lambida a rainha até que mais um chegasse e permitisse a suecada. Os jogos corriam (quase) com normalidade, sendo evidente que a sorte ficaria sempre do mesmo lado quando se iniciasse a lerpa, o sete-e-meio ou o montinho. À volta da mesa juntava-se muita gente, apesar de nem todos jogarem. Havia sempre um ou dois voluntários para controlarem a eventual chegada de alguém estranho, nomeadamente algum representante da autoridade ou ela própria, a dita.

A satisfação dele subia com o número de jogadores envolvidos e todos fechavam os olhos aos pequenos cortes nos cantos de algumas cartas ou ao pó de talco com que outras tinham sido bafejadas. Tudo isso fazia parte da encenação de uma peça que, para ele, acabou cedo, levando ao encerramento do "casino".

Que se saiba, há muitos anos que o A. não faz um joguito que seja ...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Partida

Já não há Elza Soares. Partiu ontem, aos 91 anos, reservando para si uma página gloriosa na história da música e do povo brasileiro.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Uma editora nova, um autor desconhecido e a vontade, sempre presente, de desvendar e ser surpreendido. Comprei dois livros, de autores diferentes e a editora ainda me ofereceu um terceiro, de um outro escritor que também não conhecia.

Os contos que estão a ser lidos a grande velocidade são uma delícia e a prova provada de que o português é uma língua maravilhosa e não tem fim. Já perdi a conta às palavras que nunca tinha lido ou ouvido e para as quais foi inevitável o recurso ao dicionário.

"(...) No Bodo do Espírito Santo, manhã cedo, Calistra foi para a cozinha e preparou um cento daquelas maravilhantes guloseimas. Queria que todas as irmãs também fossem contagiadas por aquela paixão que o pastor lhe despertara.

Aparelharam-se as mesas no refeitório para receber os doces e as confeiteiras rivais. De um lado ficava a comitiva do Mosteiro de Estevães e diante o Convento de Sant'Ana. Nos topos as respectivas madres. Pouco depois, a irmã Francelina e a irmã Calistra começaram a colocar sobre a mesa as suas culinárias engenhosidades, cobertas com panos da mais fina cambraia, para que os olhos não começassem cobiçosos a sua avaliação.

Por fim, quando as travessas foram destapadas, logo as presentes perceberam a avultada diferença existente entre as iguarias apresentadas a julgamento. Irmã Francelina ostentava vários pudins de ovos, firmes, luzidios e morenos, com um tamanho superior aos pequenos, frágeis e modestos doces da irmã Calistra. Logo ali principiaram os alvitres e, olhando para Calistra, a madre Ermelinda carregou o sobrolho, revelando a desilusão e o desagrado que aquele cenário de hecatombe lhe provocava.

As irmãs de ambas as trincheiras deram início à gulosa contenda, degustando à vez um e outro pitéu e, todas à uma, renderam-se aos humildes e enjeitados doces de Calistra. Faltava, porém, o veredicto da abadessa de Estevães que, em êxtase, se deliciava a cada pequena dentada, lambisqueira,  entregue de corpo e alma ao culinário engenho de Calistra. Sumo pecado. 

Quando finalmente ditou a sua sentença ouviram-se vivas ao génio da irmã confeiteira de Sant'Ana. Conquistara a palma, pertenciam-lhe os louros.

- Como foi baptizado este pequeno prodígio?- questionou a abadessa do Mosteiro de Estevães. - Por muitos anos que viva nunca irei esquecer.

Calistra não o crismara ainda, não pensara nisso. Só o belo pastor tinha lugar no seu pensamento. 

- Brisas - disse, soluçando. - Brisas do Lis.

E assim, de um amor nunca declarado, nasceu esta especialidade culinária de Leiria, para benção do nosso corpo e leveza do espírito." 

O caminho do burro
Paulo Moreiras
Visgarolho (2021)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Dúvida

Um pequeno sinal de humidade, apenas umas pintas acastanhadas ao cimo da parede, junto ao tecto. Há qualquer coisa lá fora, no telhado, que está a provocar isto e só pode ser o jacarandá. Está enorme, bem acima da casa e, nesta altura, solta umas folhinhas pequeninas que tudo tapam, da calçada aos canteiros de flores, e que devem encher o algeroz onde os olhos não vêem e a vassoura não chega.

É bem provável que a água da chuva, não de hoje que está um dia de sol lindo, por lá estabeleça uma pasta, que entope e impede que cumpra a função que lhe foi dada com a instalação que, apesar dos anos, tem todo o aspecto de estar ali para as curvas.

Noutros tempos subiria ao telhado, iria verificar e desentupir, se fosse necessário. Agora, já não dou oportunidade às alturas de me causarem vertigens nem aos pés de escorregarem nas telhas. Era o que faltava. São tarefas demasiado fáceis para a minha condição de veterano e que poderiam macular a minha veia de alpinista, se porventura algo acontecesse ou o trabalho não resultasse em pleno.

Daqui a pouco, alguém que bem sabe e sobe, galgará o telhado, analisará o conteúdo, limpará o algeroz e resolverá o problema, espero. Não à borla, claro. Mas que importância têm meia dúzia de euros ou algumas dezenas, quando comparadas com o alívio do trabalho realizado e do problema resolvido.

E se mandasse cortar o jacarandá?

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Magnólia

Antes de ser instalada no jardim vivia num vaso, apertado, que parecia não reunir o mínimo de condições para crescer e desenvolver-se, sem interferências externas. O problema foi percebido e procurou-se com afinco a melhor solução.

Apesar de o Carlinhos já ter demonstrado que a lógica não existe, parecia que a solução era dar-lhe uma nova vida, com vistas largas e companhia a condizer. Perfilhando o princípio de que vale mais tomar dez decisões ainda que nove sejam erradas a não tomar nenhuma, a magnólia saltou do vaso, instalou-se no relvado, num espaço arejado, novo e que, até ali, nunca tinha sido usado para aquele fim.

No início deu sinais de melhoria evidente, parecia querer e conseguir um futuro diferente, ser bonita e capaz de cumprir a função de alegrar as hostes e tornar mais aprazível o jardim. Foi sol de pouca dura ...

Depressa voltou ao marasmo, sem se perceber a razão que a levou a isso. Naturalmente que há sempre razões que a razão desconhece, ainda para mais quando envolvem plantas e jardins.

- Deve ter sido o calor do Verão. Talvez seja como algumas pessoas quando apanham sol na moleirinha ...

- E o Outono parece que agravou. Outubro então foi terrível ...

Está a chegar mais uma Primavera e, apesar de haver indícios de que a situação não irá evoluir, ainda assim permanece viva a esperança que a magnólia recupere e possa trazer alegria e flores ao jardim.

Dizem as pessoas entendidas em jardins que o dia 30 é a chave!

 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Santo Antão

O monte é bastante alto, quase tanto como a torre de menagem do castelo de Óbidos que, sobranceiro, o olha com algum desprezo durante todo o ano e se rende à sua importância no dia de hoje. No cimo existe uma pequena capela, dedicada a Santo Antão, protector dos animais.

A 17 de Janeiro muita gente sobe o monte, para pedir e/ou agradecer ao Santo as benesses ou milagres que lhe foram proporcionados ou que anseia desfrutar, ou simplesmente para se deliciar com o chouriço assado e as pingas que o acompanham.

O casal, de pequenos agricultores, fazia a caminhada anual pela vertente da encosta e, lá em cima, assentava arraiais junto a uma pedra que protegesse a fogueira do vento norte e permitisse a assadura sem problemas do chouriço caseiro, embrulhado em prata para não se queimar. Enquanto o marido providenciava a lenha para a fogueira, a mulher arrumava o espaço, montava as duas cadeiras que lhes tinham feito companhia pelo monte acima e iriam oferecer-lhes o conforto imprescindível para saborear o petisco. 

Assim que o homem começava a acender a fogueira, a mulher dirigia-se à capela para depositar as miniaturas do porco ou da vaca, ou dos dois, feitas de cera, lembrando ou prevenindo as doenças que tinham vindo ou podiam vir.

- Eu não acredito em nada disso, mas é melhor ires lá dar isso ao Santo. Não custa nada ...

Promessa cumprida, chouriço comido, vinho bebido, o sol a pôr-se, dia terminado, regresso a casa pelo monte abaixo, com muito cuidado não vão as pernas trair o equilíbrio e os corpos chegarem lá abaixo sem ninguém os conseguir parar. Hoje seria o dia da romaria do Santo Antão e, mais coisa menos coisa, aconteceria algo parecido com isto.

Não aconteceu e o ano passado sucedeu o mesmo. Talvez para o ano ...

domingo, 16 de janeiro de 2022

Burros

Se não fosse a baixa temperatura que se faz sentir, poderia dizer-se que a Primavera estava a chegar, trazendo as flores, o sol, a luz do dia até mais tarde, o prenúncio do Verão e dos banhos de mar, enfim, um sinal de que esta "coisa" que nos acompanha há dois anos poderia estar a tirar bilhete para apanhar algum transporte que a levasse para nenhures, onde se afogasse, sem hipóteses de alguém lhe deitar a mão.

Nada disso. Os números continuam altíssimos e, apesar da dita benignidade da actual variante, os que partem não podem nem são irrelevantes. Apesar de tudo isto, continuam a ter peso os que negam as evidências, que se apresentam como heróis da liberdade e paladinos do discurso do "contra", e que, digo eu sem qualquer base científica, são daqueles que, à mínima dorzita, correm a mata-cavalos para a primeira porta de urgência hospitalar que lhes apareça pela frente, ou de lado, tanto faz.

E não têm um pingo de vergonha de se exibirem, como aquele rapazinho que é só o melhor jogador mundial de ténis da actualidade e deve ter imaginado (ou alguém lhe soprou) que isso do cumprimento das regras é só para os outros, estando as pessoas importantes acima dessas minudências.

Para esta gente, lembro-me sempre de uma frase de uma antiga professora da minha escola:

"Ora valha-lhes um burro aos coices e três aos pontapés" 

sábado, 15 de janeiro de 2022

Malabarismos

Numa época em que toda a gente faz contas, apresenta cálculos, clarifica custos, refere receitas, tudo suportado por uma enorme certeza de coisa nenhuma, veio-me à ideia um episódio dos muitos que vivi na minha longa (e já esquecida) carreira profissional.

O homem apresentava-se como empreendedor cheio de experiência, com negócios de sucesso em vários países da Europa e trazia consigo um estudo económico para suportar a certeza de que não só o investimento previsto era altamente rentável como importantíssimo para a economia nacional. O banco não correria qualquer risco e seria um parceiro a lucrar imenso com a participação. Só tinha que aprovar o crédito e esperar pela rentabilidade e pelo impacto positivo que um financiamento deste calibre teria na sociedade.

- Com a sua experiência, saberá que não há investimentos de risco zero e também percebe que o banco tem de analisar muito bem o que pretende. Não estamos a falar de trocos e o dinheiro é dos clientes que em nós confiam.

-  Claro que compreendo. Mas, ao ler o estudo económico, verá todas as suas dúvidas esclarecidas.

O crédito destinava-se a financiar a construção de um restaurante "completamente diferente do que existe por aí", a cerca de dez quilómetros da cidade, numa zona despovoada, onde já nem sequer existia agricultura de subsistência. Mas isso era de somenos ...

Se tivesse qualidade, as pessoas iriam. Era referido na introdução do estudo: "pretende-se construir um restaurante único, que desperte a curiosidade, capriche na comida e seja pólo de atracção para a região e para o país."

Analisada a longa dissertação que instruía e fundamentava o pedido de crédito e os números que lhe davam suporte, nova conversa com o empreendedor.

- Gostava de perceber como é que o senhor conseguirá, numa sala de 100 lugares, servir 400 refeições por dia, 365 dias por ano.

- Simples: rodamos a lotação duas vezes em cada refeição.

Fiquei esclarecido. O crédito não foi autorizado e o local ainda hoje está disponível para qualquer empreendedor com vistas largas.

A matemática é uma ciência exacta e, em cenários, proporciona brincadeiras até à exaustão.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Remédio

Para desanuviar uma sexta-feira agreste e a adivinhar chuva, ficamos com uma companhia de nível superior interpretando uma música soberba.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Debates e conclusões

Pelo conteúdo e pela forma como hoje se têm processado as notícias nos canais de televisão que a elas se dedicam, parece que, logo à noite, se irá disputar uma grande final, que determinará quem vai levantar a taça, para gáudio dos espectadores delirantes que estarão sentados na bancada dos seus sofás. Ao vivo, muito provavelmente, apenas estarão as claques dos clubes envolvidos e os "técnicos" da operação.

Os treinadores de bancada têm passado o dia a antecipar o que vai acontecer, muitos deles já devidamente instalados no "campo", para não perderem pitada dos preliminares, da relva aos holofotes, ao ângulo ao assento.

Serei um dos que vão assistir ao debate entre António Costa e Rui Rio, que acontecerá às 20H30 no Teatro Capitólio, sem a presença de Vasco Santana, António Silva, Beatriz Costa ou Laura Alves, ausentes por força das circunstâncias, embora decerto exultantes por verem um teatro que tantas vezes foi deles ser palco duma peça deste calibre. Haverá transmissão em directo pelos três canais generalistas - RTP 1, SIC e TVI, para que a audiência de alguma telenovela não fique prejudicada pelo acontecimento.

O espectáculo terá a duração estimada de 90 minutos, tempo normal de um jogo de futebol. Os árbitros serão três jornalistas, um de cada canal, que decerto não regatearão esforços no sentido de se presenciar um desafio equilibrado e sem faltas. Mais à frente ou mais atrás, estará atenta ao que se irá passar uma quantidade enorme de comentadores, sabedores, os quais se encarregarão não do rescaldo do acontecido mas do esmiuçamento do que não foi dito pelos dois protagonistas. As cabeças pensantes e muito iluminadas determinarão o que foi e o que devia ter sido dito, o texto da peça, a táctica do desafio, a estratégia da batalha.

Já estou a imaginar a programação dos canais noticiosos do cabo, logo após o apito final, a cingir-se à tarefa ciclópica de ouvir gente importante e opiniosa, analisando o jogo e antevendo o resultado que os detentores do verdadeiro poder determinarão no próximo dia 30.

A ver vamos ... 

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Remoinhos

Por este rio acima encontram-se escolhos, pedras, águas revoltas, cachoeiras, pegos, charcas, canas e troncos, pescadores furtivos, outros encartados, num percurso que leva até à foz, onde o rio por vezes espraia, noutras encurta. Fica claro que a nossa influência e o nosso comportamento não são determinantes, ajudam o trajecto, mas não o conseguem controlar totalmente.

Apesar disso, o caminho é e será sempre por este rio acima, nadando com vigor para ultrapassar os remoinhos da vida e usufruir do peixinho fresco que ela, por vezes, também oferece.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Mudanças

Hoje, dia em que me dediquei à actividade social de conviver com três amigos muito chegados ainda que afastados, num almoço que não foi lauto na quantidade, por opção própria, mas foi grandioso em conversas, recordações, futuro, crise, opinião, tudo o que está presente quando nos encontramos, assim que é dado "o tiro de partida".

A porcaria do bicho tem tirado a possibilidade do convívio, do diálogo, de ver, de abraçar, criando sensações estranhas e dificuldades no reconhecimento e resumindo tudo às redes ditas sociais e às notícias, sempre de última hora. 

Um dos convivas, dizia-me, a dada altura:

- Já reparaste que as conversas de agora são, na sua maioria, réplicas do que ouvem na televisão? Parece que cada vez há menos gente a pensar e a ter ideias ...

Retorqui:

- Se calhar somos nós que já não entendemos os novos tempos, que elaboramos muito, talvez demais ...

E é capaz de ser!  A velocidade da vida de hoje é supersónica, mesmo em teletrabalho. A vertigem do dedo no telemóvel faz com que as notícias sejam como a pescada: antes de o ser já o era.

No regresso, o encontro com um outro amigo que, mascarado, não foi reconhecido e teve a inversa também verdadeira. Queria tratar de um assunto com um dos convivas e, deste, ouvi:

- Estás bom, Zé V.?

Como é possível não nos havermos reconhecido mutuamente? Lá nos justificámos, com a desculpa da máscara e do tempo passado desde a última vez em que nos tínhamos encontrado.

- Há mais de dois anos que não nos víamos ...

Era verdade, mas em circunstâncias normais e noutros tempos, a cinquenta metros já estaríamos a levantar a mão um para o outro.

Mudou tudo!

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

O impulso tido e aqui referido deu-se em boa hora. Valeu a pena ler um relato de viagens romanceado, do século XIX, de autor pouco referenciado, que escrevia maravilhosamente.

"(...)Pois este?! Este é o padre <<galopino>> e chamam-lhe assim porque passa o seu tempo todo a galopar, a correr por todos os sítios onde há jantar de bodas ou enterro, e oferecendo-se para dizer missa barata contanto que vá depois para a mesa. À noite está ele sempre à porta de algum botequim ou ao pé do correio com outros amigalhaços de igual feição, indagando o que há de novo a respeito de consórcios e de exéquias, e perguntando à sua gente:

- Então amanhã que patuscada temos?

E aquele, aquele?! Isso é que é um reinadio. Não há vivalma que o não conheça, e ele também paga na mesma moeda ao género humano porque conhece toda a gente. É quem preside nas reuniões dos padres da província, que vão à cidade tratar dos seus negócios, e quem agenceia que eles jantam nalguma casa conhecida onde se coma bem. É a alma de uma função, este reverendo! Aquilo tem graça às pilhas, e fala pelos cotovelos. Sabe tudo. É um regalo ouvi-lo discorrer a respeito da lotaria, dos sonhos que teve a noite passada, dos números maus e dos números bons, e de muitas outras coisas não menos edificantes. Até já de uma vez quis fundar uma academia cabalística, que tratasse de elevar o livro dos sonhos à altura dos progressos da ciência!...

A mim explicou-me isto tudo um homem com quem eu me encontrava frequentemente a jantar na casa de pasto <<Isola bella>>, e dizendo-lhe eu pasmado:

- Como sabe o senhor tanta coisa a respeito dos padres?

- Não adivinha! - respondeu-me ele.

- Não.

- É que eu mesmo, que lhe estou falando, também já fui padre!

- Ah! 

Uma coisa, em todo o caso, têm eles de bom, que é não se oporem a que cada um ame à sua vontade. Podem repreender tudo, mas não consta que acusassem nunca o amor.(...)" 

Do Chiado a Veneza
Júlio César Machado
Tinta da China - 2021- Edição original - 1867 

domingo, 9 de janeiro de 2022

Presunção

É raro tratar o meu neto Gil pelo nome próprio. O cumprimento, sempre efusivo, é antecedido de "olha o meu neto Grande" e ele sorri, delicado e, julgo, deliciado. E é grande por ser o mais velho dos quatro, já ser maior do que o avô e por ser um excelente aluno, um óptimo atleta e uma pessoa excepcional. 

Não fica bem estar a dizer isto mas quem confessa a verdade não merece castigo e presunção e água benta, cada um toma a que quer.

Nesta altura, o meu neto deverá estar a fazer o percurso de Málaga até ao Jamor, dentro de uma carrinha da Federação Portuguesa de Natação, que o levou na quinta-feira passada até Espanha. Pela primeira vez, o meu neto Grande foi representar o país, integrado na Selecção Nacional de Natação da sua categoria (Pré-Júnior). Foi o corolário de um trabalho diário, difícil, agravado pelas vicissitudes da pandemia e o prémio para uma dedicação sem limites.

É um fim-de-semana que se deseja ver repetido no futuro e que lhe ficará na memória para sempre. O avô adora vê-lo nadar, mas só em treinos ou em vídeo. Em competição, ao vivo, ele sabe bem que a emoção me trairia e dispensa-me.

Parabéns, meu neto GRANDE. Foste ENORME!

sábado, 8 de janeiro de 2022

Palavras bonitas

GUERRA

Quando Francisco Charrua
chegou ao largo gritando:
- Eh! gente, estalou a guerra!
Zé Gaio de alvoroçado
pôs-se a bater o fandango.

Os outros só pelos olhos
falavam surpresa, esperança:
- Será agora? Talvez ...!
Mas Zé Gaio tinha a certeza:
estava a bater o fandango!...

Já lá vão dois anos passados.
Agora a telefonia
da venda, à esquina do largo,
informa todas as noites:
"Uma esquadrilha inimiga
bombardeou a cidade:
morreram trinta mulheres
e vinte e sete crianças."
Agora a telefonia
informa todas as noites,
dias, meses, anos ... noites:
"Morreram trinta mulheres
e vinte e sete crianças."

... E lá num canto do largo
coberto de noite e raiva,
Zé Gaio abriu a navalha.
Zé Gaio espetou a navalha
no grosso tronco da faia.

Lá num canto do largo.
A faia toda dobrada
- será do peso da noite
ou do vento da desgraça
que sai da telefonia?

Poemas Completos
Manuel da Fonseca
Forja (1978)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Expresso - 49 anos

O primeiro número do Expresso saiu em 6 de Janeiro de 1973 e eu, quase no final dos vinte anos, comprei-o. Nessa altura ganhava uns tostões razoáveis (cerca de doze euros e meio mensais) e a mesada que me era dispensada já permitia alguns excessos. O jornal foi um deles, emancipação normal para quem lia o Jornal de Notícias desde o começo da junção das letras. E o vício manteve-se até hoje. Do formato enorme ao actual, a preto e branco ou a cores, sem saco, com saco de plástico ou de papel, tem sido companhia semanal nestes 49 anos. Já referi isso em vários textos aqui deixados e, neste tempo todo, devo ter falhado a compra meia dúzia de vezes. 

Há uns meses, talvez mesmo um ano, que o tempo agora voa mais rápido que o melro que visita o meu jardim todos os dias, recebi um telefonema propondo a assinatura digital, cheia de vantagens, permitia o acesso mais cedo e mais barato, em qualquer sítio e sem carregar o peso do papel. Até era mais verde , protegendo o ambiente. Respondi que, enquanto houvesse papel, era dessa forma que continuaria a ler, como fazia há tantos anos. Conservador! 

O interlocutor quis saber há quanto tempo.

- Desde o número um e olhe que falhei poucas vezes.

- Nem vale a pena continuar a conversa. Obrigado e muito boa tarde.

Nos últimos tempos, o Expresso permite-me aceder ao formato digital, com o código da Revista. Durante a semana vou espreitando, lendo qualquer coisa, desatento, que me falta o toque do papel e o exercício dos braços.

Esta semana o "meu" Expresso foi alvo de um ataque de piratas informáticos, que invadiram os servidores do jornal, da SIC e de outras empresas do grupo. É provável que os meus dados também tenham sido "raptados" pelos piratas e isso faz-me sentir importante, por terem perdido tempo e espaço comigo, que nada valho e estou quase fora de uso. Mas para quê? O que move aquela gente? As novas tecnologias são seguras? O desenvolvimento dos meios e a celeridade das notícias fazem "macaquinhos" na cabeça de muitos? A formatação das mentes é o objectivo? A liberdade assusta e há que a engavetar?

Não concordo com tudo o que sai no Expresso. O jornal tem tido, como todos nós, fases boas, outras nem tanto, algumas para esquecer. Todavia, tanto quanto me apercebo deste provinciano lugar oestino, a pluralidade e a liberdade dos "escrevinhadores" estão e estiveram sempre presentes, mesmo quando o lápis azul imperava e era difícil. 

Honra ao Expresso e à sua força para manter viva a chama, contra ventos, marés e ... piratas.

A edição de hoje vem tão bem feita!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Careca

Mais uma ida ao barbeiro, ou melhor, à Barber Shop, para o corte regular que os cabelos necessitam. Agora, com a marcação antecipada, até o tempo de espera desapareceu. A cadeira, desinfectada, como ele faz questão de referir, aguarda-me.

- É o costume, claro.

A pergunta já tem muitos anos, a resposta é sempre sim, o trabalho é cada vez mais reduzido. A careca, que o espelho estrategicamente suportado pela mão do barbeiro projecta no frontal, é cada vez maior. O que falta naquela área já devia dar lugar a desconto ...

- Hoje não falamos do nosso Benfica. Já estamos quase como os de Alvalade: para o ano é que é!

As máscaras de um e outro não permitem que a conversa flua com naturalidade. Torna-se fastidiosa, cansativa, as palavras têm dificuldade em sair, parece até que as ideias se atropelam e optam por se esconderem nos interstícios do cérebro, com o medo a reduzir-lhes o discernimento.

- Tantos infectados ... eu já me convenci que, mais dia menos dia, me vai calhar. A lidar com tanta gente ...

- Pois ...

- Ainda ontem cortei o cabelo a um cliente, que tem 74 anos, e já apanhou duas vezes. Desta segunda, segundo ele, foi parecido com uma gripe, mas da primeira viu-se aflito. E já tinha as vacinas todas.

Serviço terminado. Regresso a casa, seguindo o conselho/solução da "bióloga" do vídeo que o meu amigo ADS me enviou.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Fisgada

A vida tinha-lhe sido madrasta, a comissão na guerra colonial agravara a situação, a solidão fizera o resto.  

"Batia" mal e ninguém lhe dedicava um mínimo de atenção.

- Está maluco. Não lhe ligues.

A doença foi-se agravando, começaram a surgir actos de violência, destruições sem qualquer razão, comportamentos não tolerados pela sociedade. Foi internado. Passou meses no hospital psiquiátrico e fez progressos notórios. Delicado e dedicado, fazia o que lhe ordenavam, sem resmunguices nem trombas.

Toda a gente elogiava o seu comportamento e, sempre que lhe era dirigida palavra, os seus olhos brilhavam de gratidão. A rotina do hospital estava assumida, o seu horizonte era curto e a ambição, pouca, morria por ali. Sentia-se bem. Os passeios pelo jardim deliciavam-no, a satisfação na execução das tarefas era visível, as saudades da vida anterior não existiam. Talvez nem se lembrasse dela, se a tivera.

Os relatórios médicos registavam os progressos e, como era previsível, um dia foi chamado ao director. Podia dar lugar a outro, que as vagas eram poucas e as necessidades, muitas.

- Estamos muito satisfeitos consigo e queremos dar-lhe alta.

- Ó senhor doutor, eu estou tão bem aqui ...

- Só queremos saber o que vai fazer quando sair.

Pensou, meditou durante uns minutos que pareceram, ao médico, uma eternidade.

- Vou arranjar uma fisgazinha e vou aos pássaros.

O médico não apreciou a resposta e mandou-o regressar à enfermaria e às rotinas. Satisfez-lhe o desejo encoberto. Passado um mês, nova tentativa.

- Já pensou melhor? O que pensa fazer se sair daqui?

O "se" da pergunta já revelava incerteza, insegurança e dúvida sobre a resposta que iria ser obtida, e também sobre o estado mental do doente.

- Vou arranjar uma fisga e vou aos pássaros.

Antes que o caldo entornasse, o médico, ríspido, ordenou-lhe a retirada. Passou mais de um ano. A rotina manteve-se. O comportamento irrepreensível. As conversas com nexo. Tudo normal, como se os neurónios estivessem na cabeça de um motor que o mecânico alisou e pôs como nova.

- Já pensou bem naquilo que vai fazer quando daqui sair?

- Já sim, senhor doutor. Vou arranjar uma mulher ...

- Boa! E para quê?

- Para namorar e depois casar com ela.

- Muito bem! E o que faz na noite do casamento?

Seguiu-se a descrição, exaustiva, do caminho até ao quarto, da cerimoniosa cena do despir de toda a fatiota, sublimada pela retirada das cuecas. O médico, já com alguma excitação, não resistiu e interrompeu:

- E depois?

- Ainda não pensei muito bem mas, se calhar, tiro o elástico das cuecas, faço uma fisgazinha e vou aos pássaros.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Organização e método

Terminei, há pouco, uma conversa telefónica com uma senhora muito simpática (podia ser um senhor mas, neste caso, pela voz, era mesmo uma senhora) que não me resolveu o problema mas evidenciou uma organização incrível e perfeita.

- Ligou para XXX. Se pretende informações sobre a sua conta, marque 1; se pretende informações sobre facturação, marque 2; se pretende apoio técnico, marque 3; se pretende ser atendido pelo operador, marque 9.

Opção escolhida, música no ouvido, roufenha sem ser desagradável.

- A sua chamada encontra-se em lista de espera. Por favor, aguarde.

Com uma interlocutora tão educada e gentil, ninguém tem coragem para desligar. Aguardemos, então.

- Encontra-se à espera há cerca de dois minutos. Se pretender, podemos ligar-lhe de volta. Para que isso aconteça, marque 8.

Acedo à sugestão. Marcado o 8, de novo a voz simpática.

- Indique o número de telefone para o qual lhe devemos ligar.

Para quem sabe de cor e ainda tem alguma capacidade de dedilhar, digitar nove números é tarefa de somenos.

 - Indique o período em que o devemos contactar. Se pretende logo que possível, marque 1; se prefere que o contacto se efectue amanhã, marque 2.

Marquei 1, satisfeitíssimo com o atendimento simpático, personalizado, educado e eficiente. Todas as hipóteses de resolução do problema foram contempladas e mencionadas.

Estou a aguardar o contacto, que será efectuado logo que possível, tenho a certeza. Quando? Não faço a menor ideia, mas não deve faltar muito.

Pelo sim, pelo não, sentei-me e aguardo serenamente.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Balanço 2021

Noutros tempos esta era a altura para olhar custos e proveitos, activo e passivo, cumprimento de objectivos, início da preparação para o parto das reuniões que analisariam com rigor os números, os quais, mesmo atingidos, seriam sempre insuficientes e o "filho" nado poderia ter sido muito melhor.

"Este ano temos de crescer mais, já sabem! Aproveitem o balanço. Vai ser fácil! Na próxima semana terão os números definitivos."

Era a vida, por vezes a esgotar a paciência e a trazer à ponta da língua uma vontade louca de os mandar a todos àquela parte.

Agora, o balanço é uma brincadeira sobre as leituras do ano, em formato livro. As outras, dos jornais e revistas, não têm por aqui cabimento. Neste balanço, não há análise aos números, não foram fixados objectivos, nem há reunião de apreciação. Há alguns custos, que já se diluíram e provam a sensatez do ditado: "dinheiro gasto não faz falta a ninguém". Na antítese, os proveitos são de tal forma significativos que nem se conseguem contabilizar.



domingo, 2 de janeiro de 2022

Progresso

"Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma"
Lavoisier (1743-1794)

O alho francês ocupava uma extensão bem grande, talvez um hectare, se não mais. Foi plantado à máquina, depois de o terreno ter sido preparado, estrumado e canalizado, talvez há uns três, quatro meses, não consigo precisar e não vou perguntar ao dono. É perfeitamente irrelevante para o meu estado de espírito, não aumenta a minha (pouca) sapiência, nem contribui para que a minha personalidade seja mais vincada. Apesar disso, vi-o crescer, sempre alinhado nas faixas que a plantação lhe determinou, fazendo os tubos da rega serem "engolidos" pela sua desenvoltura.

No Natal parecia já estar em condições de ser colhido e cumprir a função para que estava destinado. Não aconteceu. Na semana seguinte, um tractor, uma camioneta, duas pessoas, várias caixas e, num ápice, colheita efectuada.

Se as coisas funcionam como se imagina, deve ter-se seguido a ida para o armazém, a lavagem para retirar a terra, a embalagem e o caminho para o supermercado. A vista do passeante não alcança estes pormenores mas conclui que, num instante, quatro braços e duas máquinas fizeram o trabalho que, em tempos idos, exigiria muitas mãos e muitos dias.

Falso! Nesse tempo, o alho francês não fazia parte dos produtos agrícolas nacionais.

sábado, 1 de janeiro de 2022

Ano Novo

O mar enrola na areia,
ninguém sabe o que ele diz.
Bate na areia, desmaia,
porque se sente feliz!
 
Não há alteração. O novo ano, afinal, não trouxe nada de novo. 
Tudo permanece igual e bonito, como  sempre. Até o tempo fez questão de transmitir, na sua linguagem clara de voz omnipotente:

- Contem comigo. Vou ser melhor, podem ter a certeza. Ofereço azul e temperatura amena ... nos dias em que não carregar o céu de cinzento, abrir as portas ao vento e der ordens para que lágrimas fortes ou meiguinhas caiam nesta terra abençoada.

O Baleal mantém-se lá ao longe, talvez à distância de uma vintena de quilómetros junto à costa. As Berlengas estão no sítio do ocaso, onde gostam de morar para usufruírem da beleza do sol a esconder-se, enrolando-se na noite.

E o mar? Bem, o mar tem a espuma do costume e a cor de sempre, que os meus olhos nunca conseguem determinar se é verde azulado ou azul esverdeado. A dúvida é resultado do mau funcionamento dos meus olhos, não do oceano que é atlântico e sublime.