quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Carta de despedida

Vou-me embora!

Estou farto de ser vilipendiado por toda a gente, que se revela torpe e mal educada, enxovalhando-me na via pública, nas conversas mais restritas, nas rádios, nas televisões, nos jornais, nas redes ditas sociais e, vejam só, até nas novas plataformas de conteúdos televisivos e/ou cinematográficos. Estou cansado. Ninguém tem uma palavrinha de conforto, um afago, um carinho, nada.

Depois de por cá ter permanecido 366 dias (sim, porque eu sou bissexto) a tentar cumprir os objectivos que me foram traçados, eis-me a chegar ao fim sem uma única pessoa a reconhecer o esforço que fiz, mesmo que esse esforço tenha sido inglório, improdutivo e, nalguns casos até, infame. Novos e velhos, crianças e adultos, ninguém, mas mesmo ninguém, deseja sequer olhar para mim a direito. E todos fazem votos para que o meu substituto seja melhor do que eu e me faça desaparecer rapidamente do calendário, refrescando-o como o Marcelo fez ao Palácio de Belém.

Estou triste, mas compreendo. Não tive culpa nem tenho problemas de consciência. Fiz o que pude. Quis o destino que me calhasse a mim, eu que até tinha um nome giro - dois mil e vinte para uns, vinte vinte para outros - e me preparava para ficar na história da terra de Camões como o ano em que o calote do país tinha diminuído e que os horizontes da melhoria se consolidariam, acabo a ser corrido por indecente e má figura, com tachos e panelas a bater, gritos e ralhos, escritos e esconjuros, tudo dentro de casa, e a ser completamente varrido dos pensamentos positivos que, em alguns, ainda possam existir.

É triste chegar ao fim de um ano de trabalho e constatar que, quando a história me recordar, escreverá, com letras bem grandes, que fui um ano para esquecer!

Desculpem. Ainda me resta alguma força e um mínimo de dignidade, essa coisa tão arredia que muitos desconhecem, para desejar que o meu sucessor 2021, apesar de não ter um nome tão bonito quanto o meu, seja melhor e vos dê o bem-estar e o sossego que eu não fui capaz.

Até nunca mais e votos de melhores dias. 

O vosso odiado 2020.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

Num ano tão difícil como foi o que agora está a acabar, é bom que não esqueçamos  de como éramos e o que tínhamos até Abril de 1974, evitando algumas tentações que por aí abundam e para as quais vão aparecendo algumas câmaras de eco.

Estou a acabar o último livro das leituras, muitas, que 2020 me ofereceu. Talvez ainda hoje ou, no máximo, amanhã, chegue à última página. Hei-de lembrar-me dele, com toda a certeza, e é de um autor que nem sequer conhecia. Conta a história dessa prisão sinistra que o Botas instalou em Cabo Verde, onde muitos sofreram, e morreram, às mãos de muitos "animais" sem um pingo de dignidade.

(...)Nessas coisas pensamos para não pensarmos noutras.

O ano de 1945 começou em Abril, logo seguiu para Agosto e terminou abruptamente em Outubro.

Em Abril chegou o noivo director, David Prates, um capitão com ar de tenista. Tem uma voz pausada e grave e tempo para escutar. Caminha devagar e fala com os presos olhando nos olhos. A primeira vez que ele entrou na nossa caserna, apressámo-nos a esconder debaixo da cama todas as nossas tralhas, um monte de cangalhada que os presos guardam com desmedido interesse. Eu tinha um pedaço de uma sola, dois pregos enferrujados, catorze botões, um chifre de cabra, metade de uma tesoura, uma moeda de 1886, um bico de biberão, seis pêlos de vassoura, uma mola, dois pedaços de papel de cimento, um osso, uma manga de camisa e um bocado de rapé.

Ele perguntou-nos:

- Porque não têm mantas?
- Virou trapo, respondemos. 
- E casacos?
- Virou farrapo.
- Prato?
- Furou.
- Colher?
- Quebrou.
- Botas?
- Acabaram.
- E? ...
- Nunca tivemos,  
respondemos em coro.

Ele ficou pensativo, pediu licença e saiu. No dia seguinte, ofereceu-nos um aparelhinho de rádio. Muito inteligente. A oferta do rádio não foi uma benfeitoria, mas, sim, uma forma raposa para entendermos a situação.

Pois, em Abril mesmo, ouvimos que Salazar decretou luto nacional pela morte de Mussolini e Hitler, num espaço de dois dias.

Em Agosto, escutámos pelo mesmo rádio a bomba atómica. E depois: "A Guerra acabou", alto e bom som.

Em Setembro, assistimos em directo às manifestações em Lisboa. Nunca imaginei que, na minha modesta condição de ainda vivo, sentiria os ombros a crescerem, a coluna a ficar erecta, e em mim um efémero direito a ter vaidade.

Em Outubro, escutámos o mais surpreendente comunicado do governo português, dizendo para todo o mundo que em Portugal não havia presos políticos. Alguém atirou o rádio contra a parede. Tenho as pilhas guardadas.

No mês em que nada quiseram que soubéssemos do mundo, aqui morreu, no dia 03 de Junho de 1945, Manuel da Costa, o nosso pedreiro de 58 anos de idade.(...)

O diabo foi meu padeiro
Mário Lúcio Sousa
Dom Quixote (2019)

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Jogo de meninos

Chegou a hora do recreio!

Ao contrário do que é costume, as duas salas marcaram o período de lazer para a mesma hora e todos os meninos correm para ocupar os melhores lugares.

Os da sala GNR chegaram primeiro, fizeram o círculo no chão de terra, tiraram dos bolsos os piões e as cordinas, e preparam-se para iniciar o jogo, combinado há já três dias. Mas, de surpresa, eis que surge um problema: os da sala PSP reivindicam para si aquele espaço e o jogo não pode iniciar-se. Transmitem aos da sala GNR que sempre foi ali que brincaram e que o direito consuetudinário lhes assegura a legalidade da situação. A sala GNR que vá brincar para outro lado, que aqui não brinca.

Todos os alunos discutem, aduzem razões, esgrimem argumentos, gritam, barafustam, evidenciam as virtudes do diálogo e o acordo não chega.

- Que se passa aqui?, grita o professor Cabrita, alertado pelo barulho.

- Os meninos da sala GNR ocuparam o nosso espaço. Aqui é e sempre foi o nosso campo.

- Jogam os dois! Quem manda sou eu! Amanhem-se! Vou já mandar abrir um rigoroso inquérito, para determinar quem tem razão. Preparem-se que eu vou ser duro. Olhem o exemplo da sala do SEF!

Qualquer semelhança entre esta estória e a "guerra" travada ontem, em Évora, entre a GNR e a PSP para a escolta das viaturas de transporte das vacinas não é mera coincidência.

É garotice de quem parece não ter mais com que se preocupar ou a (in)disciplina das chamadas forças da ordem. 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Expressões

As expressões, tal como as pessoas, mudam com o tempo, mesmo que mantenham a mesma terminologia.

- Fui à lenha e vim com os bofes à boca!

Foi o que aconteceu hoje. Mas não fui ao pinhal ou a qualquer outro sítio onde haja árvores. Fui ao comerciante, um "rapaz" da minha idade, que a compra, manda cortar e rachar, e a guarda nos barracões, enormes, que tem no quintal.

Conversámos, recordando tempos passados e antevendo um futuro que se afigura ser (é mesmo) mais curto do que o passado, contrariando o que sabíamos, de ciência certa, quando brincávamos na mesma escola e antevíamos uma vida cheia, sem fim nem no horizonte.

Carregávamos o carro quando a chuva nos visitou. Apressámos o trabalho e a conversa acabou. O corpo (já) não suporta água caída do céu, ao contrário do que acontecia em miúdos, e já vai sendo difícil falar e trabalhar ao mesmo tempo, quando o que se está a fazer  exige algum esforço físico.

Ainda bem que a bagageira do carro não é um atrelado e muito menos a carroçaria de um camião. Acho que demoraríamos toda a vida e mais seis meses a concluir o trabalho.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Hino da Alegria

Iniciou-se hoje, por toda a Europa, a vacinação contra esse malfadado invasor que nos transtornou a vida sem pedir licença nem respeitar ninguém. Por enquanto, apenas contempla os profissionais de saúde mas, em breve, contemplar-nos-á a todos.

A esperança é enorme e a alegria imensa.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Natal e futuro

Não foi igual, foi o possível.

Já passou. Vamos esperar que a vacina ajude e que, para o ano, cá estejamos para conviver, festejar e lembrar um 2020 que traiu todas as previsões "catedráticas" e "astrológicas", foi cheio de surpresas atípicas e desconcertantes, massacrou toda a gente e vai figurar na memória futura.

As vacinas já chegaram e amanhã iniciar-se-á a vacinação da "linha da frente" dos profissionais de saúde. Vamos esperar que toda a logística corra bem, que não haja oportunismos nem habilidades, que quem manda, ordene sem peias nem medos.

António Costa dizia, na sua mensagem de Natal, que "só não erra quem não faz", verdade antiga que tem implícita a preocupação de errar o mínimo. Neste assunto, tão melindroso, a máxima aplica-se inteiramente.

A partir de amanhã, prosseguindo uma saga que já se arrasta há semanas, as televisões ilustrarão todas as notícias com um braço nu, a ser espetado por uma agulha, com a imagem bem nítida e aproximada, para que não haja dúvidas do espetanço.

Uma imagem vale mais que mil palavras, mas há nexessidade?

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Palavras bonitas

NADA / NATAL

Este lume que já não nos aquece
Este medo do nada que nos contem
Esta névoa de nata em vez de neve
E a nossa vida cada vez mais ontem

Este Sol que não rompe sob os cactos
Estes mortos de novo hoje tão perto
É no búzio dos crânios exumados
que melhor nós ouvimos o deserto

Estas folhas de plátano  Estas mãos
que o fogo vai torcendo lentamente
Esta cinza no fim de uma oração
Este sino  Este céu sobrevivente

Mas soa a meia-noite  E logo o nada
deixa de estar em tudo como estava

Obra Poética
David Mourão-Ferreira
Editorial Presença (1997)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Palavras bonitas

ECLIPSE

Pela primeira vez
Não vieste ao poema,
Sol do eterno retorno
Da inspiração.
E foi esta prosaica desolação
Num quarto de hospital
A ouvir versos profanos
Na lembrança.
Pobre dessa fiança
Tutelar.
Sem te poder louvar
Devidamente,
Menino Jesus eternamente
Oculto e manifesto,
Aqui lavro o protesto
De poeta traído
Que descrê
Da própria vocação,
Perdida a graça da iluminação
De quem sonha o que vê.

Diário XVI (24/12/1991)
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1995)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Palavras bonitas

CANÇÃO

Clara uma canção
Rente à noite calada
Cismo sem atenção
Com a alma velada

A vida encontrei-a
Tão desencontrada
Embora a lua cheia 
E a noite extasiada

A vida mostrou-se
Caminho de nada
Embora brilhasse
Lua sobre a estrada

Como se a beleza
Da lua ou do mar
Nada mais quisesse
Que o próprio brilhar

Por esta razão
Sem riso nem pranto
Neste sem sentido
Se rompe o encanto

Ilhas
Sophia de Mello Breyner Andresen
Caminho (2004)

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Palavras bonitas

ALGUMAS IMAGENS DO INVERNO

Chega mais cedo;
conheço-lhe os passos:
já muita vez aqueceu as mãos
ao lume das minhas.
Vai demorar-se;
sacudir a lama, remendar
os sapatos, tirar o sal
que se juntou em redor dos lábios.
Entre o silêncio e o falar
não há senão
espaço para anoitecer.
Tão pesadas, as folhas do ar.

Poesia
Eugénio de Andrade
Fundação Eugénio de Andrade (2000)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Palavras bonitas

 O JOGO DO CHINQUILHO

Renasce neste largo a minha infância
a minha vida tem aqui nova nascente
e jorra de repente com o ímpeto do início
O tempo não passou ou só a consciência
que provisoriamente sinto de voltar alguns anos atrás
a sensação que sei de reflectir sobre esse tempo
de ser um espectador de sucessivos sucedidos dias
de não viver apenas não viver sem sequer saber que vivo
num espaço demarcado onde as coisas e os homens
eram tanto que eram simplesmente
só essa consciência e sensação me fazem suspeitar
de que passou o tempo que nunca passou
O adro o fim da tarde o jogo do chinquilho
o ruído das malhas os paulitos
o sol poente sobre si redondo como simples
malha atirada por alguém pelo espaço do dia
e prestes a cair no mar como nas tábuas
o gesto perdulário e impensado de jogar
a malha como quem num gesto joga a vida
as silhuetas hirtas dos que assistem
de boné ou barrete na cabeça e mãos nos bolsos
tudo se passa aqui ali há trinta e cinco anos
como se aqui ninguém houvesse envelhecido
nem sofrido ou morrido ou suportado
toda a imensa fome requerida para produzir um rico
como se aqui ninguém tivesse demandado
longe de aqui o seu país noutros países
Tudo é o mesmo adro a mesma tarde o mesmo jogo
Até este café onde sentado olho e penso por olhar
é afinal o mesmo onde bebi a meias com meu pai
a primeira cerveja uma cerveja vinda
através do calor do dia de verão
nesse cesto de vime nesse poço mergulhado
É o mesmo o sabor que sempre sinto nesta boca
há muitos anos já mordendo o vinho o pão a vida
o sabor das mulheres das raparigas
inacessíveis sempre como um absoluto
sempre impossível tido no entanto por possível
o sabor da derrota ou o sabor da terra
sensível dia a dia nos meus dedos
e um dia susceptível de me encher a boca para sempre
Envelheci eu sei e só ganhei
o que perdi. Sou de uma adulta idade
E entretanto tudo a noite rodeou e o jogo acabou
e pelo céu do tempo houve um homem que passou
ou uma certa malha arremessada por acaso à vida
e viva na precária trajectória antes de caída.

Todos os Poemas
Rui Belo
Assírio & Alvim (2000)

domingo, 20 de dezembro de 2020

Renas

Os progressos que o mundo tem conhecido são inegáveis e impossíveis de descrever num grande livro, quanto mais em meia dúzia de linhas mal alinhavadas como estas. Mas, ainda assim, pouca gente se lembrará que os comboios já foram a carvão, que os automóveis tinham direcção assistida "a braço" e que viajar de avião não foi sempre seguro e confortável, de tal forma que ninguém questiona a sua utilização e necessidade.

Porém, mas ou todavia, qualquer destas palavras serviria para abrir o parágrafo; deixemo-nos de floreados e vamos ao que importa: ninguém se preocupa ou disso dá mostra pública com a situação do Pai Natal e das renas, ambos sacrificados e sem benefício algum dos progressos que são comuns, hoje, a qualquer situação, profissão ou mecanismo.

De facto, desde o início do século XIX que o Pai Natal cumpre a sua função utilizando um trenó puxado por renas, num trabalho ciclópico que apenas os fusos horários atenuam um pouco. Sair da Lapónia, correr o mundo inteiro entregando prendas, sem o conforto de um bom banco almofadado, sem um GPS que indique o caminho e avise das condições metereológicas, sem ar condicionado que proteja do frio e diminua o calor, é um trabalho heróico. E, nas pobres das renas, coitadas, o sofrimento ainda é maior. Presas, açoitadas, sem comer e sem beber, ninguém as protege ou lhe faz justiça, reconhecendo o seu esforço e, no mínimo, remunerando-as em função do seu desempenho. Tudo isto agravado por ser hoje possível, sem qualquer dificuldade e com toda a eficiência, utilizar um drone, vindo da Lapónia ou de qualquer outro canto do mundo e fazê-lo chegar ao destino, sem falhas, perdas ou enganos.

Pensei: vou desencadear uma petição online para forçar a resolução urgente deste problema urgente e candente. Terei, seguramente, muitos milhares de cidadãos preocupados a subscreverem-na e talvez até o PAN proponha, na Assembleia da República, uma Lei que salvaguarde e regule os direitos, liberdades e garantias das pobres renas. Num ápice, concluí: estás perturbado ou o vinho que não bebeste ao almoço toldou-te o raciocínio. O Pai Natal não existe e as renas estão lá no seu habitat, protegidas por quem com isso se preocupa.

A imaginação é insuperável e, mantendo as tradições, ajuda-nos a viver, simplesmente.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Espírito de Natal

O Natal é uma época onde enaltecemos o espírito de solidariedade, a necessidade de todos e cada um poderem ter uma mesa farta ou, pelo menos, composta. Fazemos votos que a sociedade seja capaz de acabar com as diferenças abissais que (ainda) existem, que a felicidade contemple todos, que o ano novo traga tudo de bom. E, neste ano, acrescentamos o voto que este malvado vírus desapareça.

E contribuímos, manifestamos a nossa angústia por não fazermos mais, condoemo-nos pela miséria que perpassa debaixo dos nossos olhos, disponibilizamos todo o nosso esforço para uma sociedade melhor e mais justa.

Depois ... bem, depois, seguir-se-á mais um ano em que o trabalho nos ocupa e preocupa, a família exige uma atenção permanente e o pouco tempo que sobra é aproveitado para descansar um pouco, por não ser possível aguentar as agruras do dia a dia sem um pouco de relaxamento. 

Não tarda nada e o Verão aí está. Surgem as férias, a praia fica ainda mais bonita, o sol brilha e, afinal, tudo passou num instante. Nem demos por isso e já estamos a chegar outra vez ao Natal. E é tão difícil esta época. Não houve tempo para nada e continua a haver gente que não sabe nem nunca soube o que são prendas, ou presentes, que o Pai Natal lhes tenha trazido.

Hoje, o meu neto mais novo, do alto da sapiência que lhe advém dos seus quatro anos, questionou-me:

- Ó vô, o Pai Natal consegue ir a todas as casas no dia 24?

Claro que lhe respondi que sim e omiti que continua a haver muitas onde ele nem à porta chega. Para quê complicar. Tem muito tempo para entender.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Confinamento

As regras para o Natal são apenas indicativas, permitindo que as famílias se reúnam, aconselhando-se que se evitem grandes ajuntamentos, que se tenham as precauções que já toda a gente decorou e que a duração seja o mais curta possível.

Por mais que queiramos assobiar para o lado, a realidade é que o vírus permanece, faz estragos e nunca sabemos onde está nem por onde anda. Basta ter presente que António Costa foi almoçar com Macron e a cidade-luz deu-lhe de presente o encerramento em casa. Quase que se pode dizer, parafraseando o vulgo, que, com amigos destes, ninguém precisa de inimigos. 

Apesar de ter de se render ao teletrabalho, o primeiro-ministro não deixou de tomar decisões e de as comunicar ao país: o Ano Novo vai ser confinado para todos.

Por mim não me fará diferença. A minha zona anda em obras e a minha rua é, agora, um recurso para uma boa parte dos veículos que circulam por aqui, muitos deles que nem sequer a conheciam. Acabou o sossego do trânsito e o sentido único e aumentaram os cuidados e as dificuldades em sair de casa. 

Assim não há tentações e poupam-se umas coroas ... 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

BOAS FESTAS

Vai ser diferente, mas este é um ano para esquecer. Ou para lembrar, por tudo o que já aconteceu, por aquilo que já passámos e pelo que nos estará reservado.

Ainda assim, com as precauções devidas e os cuidados necessários, façamos as festas possíveis, esperando que 2021 nos traga uma nova normalidade, sem restrições de maior.



quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Publicidade

Tudo indica, de acordo com as notícias que nos chegam dos USA, que aquele paspalho que os americanos tiveram como presidente está, finalmente, a dar sinais de aceitar os resultados das eleições, reconhecendo Joe Biden como o novo inquilino da Casa Branca. Parecem estar reunidas as condições para que a posse, que ocorrerá em meados de Janeiro de 2021, decorra sem complicações de maior e, assim, seja virada uma página, negra, que ficará para a história dos USA e do mundo.

A associação de ideias, que vai aumentando em conjunto com a idade, traz as recordações de coisas, a maior parte insignificantes, passadas em tempos longínquos, deixando as de "ontem" num limbo ou numa gaveta que, por vezes, já tem dificuldade em ser aberta.

Desta vez, as notícias dos USA, trouxeram à memória a anedota aprendida há muitos, muitos anos, que utilizava o conteúdo de uma publicidade então muito em voga ao sabonete Lux e à pasta dentífrica Signal, associando-a à bandeira dos USA.

Numa amena cavaqueira, um dos presentes atira para o grupo:

- Alguém sabe qual é a bandeira mais higiénica do mundo?

Ninguém se manifesta. Expressar ignorância, em público ou em privado, é sempre confrangedor.

O bobo, após alguns segundos de silêncio, continua a sua actuação.

- É a bandeira dos Estados Unidos, claro.

- E porquê? questionam várias vozes em simultâneo, como convém na conversa à portuguesa.

- Simples. Tem 50 estrelas e nove de cada dez estrelas usam Lux; e nas riscas vermelhas contém hexaclorofene que torna o hálito puro e fresco.

O rasto da publicidade permanece por tempos infinitos.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Caracóis

O jardim é a melhor sala da casa. Não tem janelas, nem portas, nem estores, nem correntes de ar, bibelots que se possam partir, telefone a tocar, televisão a noticiar, toalhas para pendurar, chão que se possa sujar, cadeiras fora do lugar, mesa por levantar, nada. Tudo é natural.

E mesmo quando chove, faz calor ou frio, a "sala" convida a olhar e, como dizia Saramago, "se olhares, vê e se vires, repara". Faço-o habitualmente e tento reparar, para descortinar o "presente" dos gatos que não puxam o autoclismo apenas por não o encontrarem, e para perceber a evolução das flores, para mondar uma ou outra erva que, sem princípios, ocupa indevidamente espaços que lhe não são destinados.

Espreito os seres vivos que por lá se movimentam e dele fazem casa. Não me refiro aos pássaros, nem às abelhas, muito menos aos gatos. Estes são visitantes, não habitantes. Os caracóis, as lesmas, os bichos-de-conta, estes sim, são usufrutuários permanentes e não pagam qualquer renda ou foro, utilizando tudo, sem quaisquer restrições. Os caracóis fascinam-me. Por debaixo daquela indolência que todos conhecemos estão uns seres que executam na perfeição todas as tarefas a que se dispõem, com um planeamento que deverá fazer inveja a muita gente. Tão depressa estão a saborear as folhas das strelitzia, como provam o hibisco, esburacam as folhas das roseiras, da glicínia, da buganvília e de tudo quanto aparece no seu caminho. Quando se sentem cansados ou saciados, "hibernam" numa boa sesta subindo por uma qualquer parede ou estacionando nas pedras de uma janela.

Não consigo perceber como se deslocam tão depressa e percorrem tudo, mas o defeito é meu, que já não enxergo o que devia.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Melros

As visitas dos melros ao meu quintal continuam, para minha grande satisfação. Porém, não se restringem ao meu quintal. Aqui só vêm melros pacíficos e de um preto lindo, com vontade de cantarolar e de se esconder, de brincar e passear, nunca de importunar.

Todavia, cada vez mais se ouvem por aí outros melros, a gritar, a escrever, a chafurdar, vomitando ódio, revolta, vingança, ressabiados com tudo quanto mexe e não é da sua opinião, logo deles que, como toda a gente sabe, são dotados e muito e disso deram prova durante quase meio século.

Na maior parte dos casos, são melros que pensam pela cabeça de outros, mais melros, que os usam para que a conversa pareça ter algum nexo, ser credível, vinda de gente que "não tendo onde cair morta" nem sabendo escrever duas linhas direito, se dispõe a servir-lhe de capacho.

E fazem-no socializando nas redes, tornando-as mais mal cheirosas que muitos esgotos. Estes melros podem falar, e gritar, e asneirar, deitando abaixo os tempos actuais e colocando nos píncaros o antigamente, de tão má memória que, a bem dizer, nem merecem duas linhas. 

Valha-nos a paciência infinita que a democracia exige e a capacidade que tem para aturar e dar voz a esta gente.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Gatos

Levanto o estore. A manhã está, de novo, cinzenta e morrinhenta. Não convida a sair. O gato pára, quando ouve e vê a persiana a subir. Dirigia-se para o WC e teve a viagem interrompida, logo numa altura de aperto. Enfrenta-me quando abro a janela e, por gestos e sons, o procuro afastar do quintal. Olha-me nos olhos, dizendo na sua língua de gato:

- Estás parvo ou quê? Já não se pode satisfazer as necessidades mais básicas?

Aparece outro, mais pequeno mas não menos ladino. Fecho a janela. Não vale a pena. Daqui a pouco irei limpar, como é costume. Seja pela remissão dos meus pecados e pela compreensão do que são necessidades.

A vizinhança adora gatos. Espalha comida pelos muros, pelos cantos, junto às casas ... dos outros. Ficam de bem com a sua consciência, fazem a boa acção diária, mas não lhe abrem a porta. As gaivotas também aproveitam e comem as bolinhas castanhas da ração. No mar não há disto e, por isso, a grande maioria já nem recorda o caminho da Foz. São citadinas e gostam. Bebem a água da fonte da rotunda, sobrevoam os prédios mas não arriscam o quintal. Ficam-se pelos céus!

Por este andar, qualquer dia deixo de ter os melros, os pintassilgos (já muito poucos), os cartaxos, os rabilongos e os pardais. Deixarei de cantar, como na moda alentejana, os "cucos milharucos" e substituirei por "e bichanos aflitos cada vez há mais".

Os pássaros conhecem-se pelas cagadelas. Os gatos nem por isso ... 

sábado, 12 de dezembro de 2020

Inverno

O Inverno está a chegar e o tempo, esta semana, tem-no anunciado com pompa, cumprindo o marketing que se quer exista cada vez mais incisivo. 

Era bom que, com estes anúncios tão agressivos, o corona se assustasse e hibernasse para uma qualquer galáxia bem longe daqui e onde não houvesse ninguém.

Mantenhamos a esperança que a Primavera chegará na altura própria e nos trará uma nova vida ainda que diferente daquela de que dispúnhamos antes. O mundo é composto de mudança e a música, mesmo quando glorifica o Inverno, ajuda a manter viva a chama de um mundo melhor.

(Isto hoje saiu um bocado lamechas, mas a imaginação não dá para mais. Talvez amanhã saia melhor!)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Passadeira

Estou quase a chegar ao cruzamento e apercebo-me que ele vem lá. Páro antes da passadeira e aguardo. Aproxima-se e o cão que o conduz estaca, no passeio. Olha atentamente para os dois lados da rua. Do sul, estou eu no primeiro carro. Do outro lado, uma outra viatura ainda faz a rotunda. O cão espera até verificar que a paragem se concretiza.

Agora pode ser. Avança e conduz o dono em segurança. Impressiona. O homem deverá ter cerca de 40 anos. Conheço-o, de vista, desde miúdo, quando ainda não era totalmente cego, embora já usasse uns óculos com lentes grossas. Trabalha num supermercado da cidade e já não usa óculos há muito tempo. Vai para o trabalho de autocarro, sempre acompanhado pelo fiel companheiro. Não tenho a certeza, mas julgo que já não terá nenhum familiar directo. Tem o cão, que um dia, pela certa, também lhe irá faltar.

Talvez surja outro cão tão dedicado quanto este e a vida continue. Há situações que custam muito a digerir a quem vê bem ...

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Acordo ortográfico

Ao ler hoje o Público, deparei com um artigo do jornalista Nuno Pacheco, que li com um sorriso nos lábios e uma inveja descomunal de não ser eu quem escreveu. Com a devida vénia e os parabéns ao autor, transcrevo-o com imenso gosto. Justifica bem o trabalho de dactilografia a que me sujeitei e, apesar de mais longo do que é normal por aqui, vale a pena ler.

Viagem alucinante pelo país das cinco ortografias

Por má sina ou fatalidade, há coisas de que não nos livramos. Podemos livrar-nos de Trump, poderemos até livrar-nos do bicho coroado que nos atormenta, mas há um mal que continua a perseguir-nos sem desfalecer e que alastra com uma praga: a pseudo-ortografia. Houve até quem, de forma brilhante e acertadamente, lhe inventasse nome: pentaortografia. Num artigo bem recente, de 5 de Dezembro, no Diário do Minho, M.Moura Pacheco (ao qual, apesar do apelido, não me unem laços familiares) veio explicar de forma sucinta este magno problema.

Começa assim: "Quando eu aprendi a escrever, havia duas ortografias: a certa e a errada. Agora há, pelo menos cinco. E todas autoconsideradas certas - é a pentaortografia." Quais são? Ele explica: primeiro, a ortografia clássica ou antiga (a do acordo, ou reforma, de 1945); depois, "a do chamado 'acordo ortográfico' que, por sinal, nunca foi acordado"; em seguida, há "a ortografia do 'superacordo' ou dos fanáticos do 'acordo?. São aqueles que não podem ver uma consoante antes de outra sem que, zelosamente, a façam cair"; em quarto lugar vem "uma mistura das três anteriores, em doses e proporções ao gosto de cada um, em cocktails sortidos de um extenso cardápio"; e, por fim, a quinta ortografia: "É a que não se integra em nenhuma das anteriores, que está errada à luz de qualquer delas, que desvirtua a fonética, atraiçoa a etimologia, ofende a morfologia e atropela a sintaxe. Uma espécie de sublimação da anterior. Mas é, talvez, a mais popular de todas." Daí esta conclusão do autor, professor universitário aposentado: "Das duas velhas ortografias, o 'acordo? que ninguém acordou conseguiu fazer cinco - a pentaortografia. É o que se chama produtividade cultural!!! Outra voz que se tem levantado, com regular insistência, contra tal realidade e dando exemplos, é a de João Esperança Barroca, na série "Em defesa da ortografia", no jornal Cidade de Tomar.

Exagero? Antes fosse. Todos os dias, e é bom sublinhar todos, surgem exemplos desta novilíngua que se vai insinuando pela má escrita e que, sem ameaçar a língua portuguesa (que já resistiu a tanto e há-de resistir a tudo), ameaça impiedosamente a nossa paciência. Alguns exemplos, recolhidos por olhares atentos, permitem uma avaliação sumária de tais misérias.

Na rua, um sinal de proibição de trânsito ressalva "exceto (por excepto) acesso à escola", bem perto de um outro em que se anuncia "Todas as direcções" (à "antiga", com ). Na RTP, no Jornal da Tarde, lemos este aviso: "Restrições do fim-de-semana impõem novos horários para espétaculos (!) culturais"; enquanto isso, num anúncio governamental de restrições devido à pandemia, lia-se nas projecções atrás do primeiro-ministro: "Limitação de circulação na via pública nos 121 concelhos, ao fim-de-semana a partir das 13h." Um desgoverno no aplicar do Acordo Ortográfico de 1990, que, na caça aos hífenes, impôs como norma fim de semana.

Quem diz hífenes diz acentos. Mão zelosa deve ter achado por bem este título "A ERC pode por (em lugar de pôr) a sobrevivência da TVI" (Visão, 24/11). Quanto a "impatos", "patos" ou "estupefatos", vão surgindo a eito, apesar de se pronunciar claramente o omitido C em impaCto, paCto ou estupefaCto. No artigo "Costa apresenta plano para investir 43 mil milhões até 2030", no Observador (22/11), lá vinha: com menor impato no clima"; o mesmo numa circular de formação escolar, em que se menciona o "impato nos currículos". Já num antigo artigo da Visão ("Quando a Europa vai à Escola"), apesar de aí se escrever "impacto" sem erro, surge esta linda frase: "É sempre preciso patuar com algo que não é ideal", e na TVI (26/2) tivemos ainda esta pérola: Setor bancário está estupefato com esta decisão."

Isto para já não falar dos "artefatos tecnológicos" (numa comunicação sobre Tecnologia Educativa), no julgamento por corrução do ex-presidente Sarkozy" (Lux, 30/11), na "interrução de trânsito" (câmaras do Machico e do Funchal) ou na "queda de helicótero" (por helicóptero) em notícias publicadas em 2019 em jornais de Coimbra e da Madeira.

O impato de tudo isto deixa-nos estupefatos. O melhor é ir a um espétaculo, a ver se passa.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Pânico

A partir de agora, qualquer pessoa que aterre no Aeroporto de Lisboa e não seja portadora dos documentos considerados imprescindíveis pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, já tem garantido o acesso a um "botão de pânico", instalado na sala para onde será conduzido e que, tudo o indica, será uma ferramenta essencial para que a recepção portuguesa seja um êxito.

O SEF assassinou, em Março deste ano, um cidadão ucraniano acabado de chegar ao nosso país, não num avião de guerra inimigo nem armado com metralhadora, mas sim num voo comercial, dos muitos que, em tempos, aterravam na Portela. Por alguma razão que me escapa, foi conduzido a uma sala "especial" e ali contemplado com uma recepção digna de qualquer filme sobre violência, mas protagonizado por energúmenos que se intitulavam polícias do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. 

Em consequência daquela morte, a Directora do SEF demitiu-se hoje, com nove meses de atraso; o Ministro da Administração Interna permanece no cargo, talvez para regulamentar e compilar as instruções sobre a forma e as condições de utilização do botão; até agora não se ouviu nenhum dos profissionais do SEF nem o Sindicato que os representa vir contestar a instalação do botão, o que indicia e admite a possibilidade de haver mais energúmenos sem controlo naquela polícia, capazes de repetir o feito.

O que se passou é indigno de um estado libertado em 25 de Abril de 1974 e uma ofensa a todos, e muitos foram, os portugueses que foram acolhidos noutros países. Tenho pena que António Costa não tenha impedido a instalação do botão e espero que não seja um precedente. Gostava de saber se o alarme estará ligado à Securitas ou a qualquer outra empresa de segurança ou se tocará no MAI.

Quero viver num país onde os orgãos sejam confiáveis e estejam ao serviço de todos os cidadãos. Não quero entrar num qualquer departamento policial e receber o livro de instruções para accionar o "botão de pânico", em caso de necessidade.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Quotidiano

Hoje foi ministrada, no Reino Unido, a primeira vacina para o coronavírus e, em Portugal, os números parecem estar, finalmente, em curva descendente;

Como se esperava há muito, Marcelo foi à pastelaria e anunciou que se recandidatava a mais um mandato em Belém. Foi tudo tão rápido que nem houve tempo para um pastelinho ou uma selfie;

Há 40 anos, um maluco assassinou John Lennon.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Água

Caldas sempre foi muito dada a desportos aquáticos, desde o remo no lago do parque aos barcos que, à força de braços, faziam a travessia entre as duas margens da Lagoa, nos tempos em que os a motor eram quase miragem.

Na década de sessenta do século passado, fazendo jus a essa apetência e com a preocupação de proporcionar a aprendizagem da natação prevenindo os acidentes no mar, bravo, da Foz e quando ainda pouco se falava de piscinas municipais no país, foi prometida uma para a cidade e escolhido até o local para a sua edificação. A obra acabou por ser feita só no século XXI, noutro sítio e sem a presença do seu prometedor pioneiro, que já tinha partido. Coisas da vida ...

Hoje a Foz confirmava a apetência para os desportos náuticos. Um número incrível de atletas praticava kitesurf, utilizando o magnífico espelho de água que é a Lagoa, apesar de o tempo estar instável, não haver sol e a chuva cair com frequência e alguma violência.

Dada a proibição de circular entre concelhos, fácil foi a conclusão de que os atletas pertencerão todos às Caldas, o que nos garante um grande futuro na modalidade.


domingo, 6 de dezembro de 2020

Novembro ... que rumos

Há muito tempo que não comprava um CD físico. As novas tecnologias e a facilidade com que se obtém, ouve e vê tudo, de discos a grandes concertos, muito contribuíram para isso. Os discos de vinil voltaram a estar na moda, mas as novas formas são convidativas e apelativas.

Esta semana "violei" a regra e adquiri o último trabalho discográfico de Pedro Barroso, onde surge uma música cantada em duo com Patxi Andion. São dois músicos de quem me habituei a gostar há muitos anos e que partiram cedo e há relativamente pouco tempo: Patxi morreu em Dezembro de 2019 e Pedro quando a pandemia dava os primeiros passos, em Março deste ano. O disco foi produzido já com os problemas de saúde de Pedro Barroso a fazerem-se sentir bastante e o trabalho é claramente uma última memória que ele pretendeu deixar.

Ficam muitos discos, muitos concertos, muitas recordações e este último trabalho. Ouvi-o com toda a atenção e levei-o para junto dos outros. Não está autografado e não vale a pena deixá-lo preparado para essa possibilidade. Já não o será mas é como se estivesse.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Depressão

Ontem fui surpreendido por uma SMS da Dora. Não me lembrava de ninguém com este nome, não constava dos meus contactos mas isso era irrelevante. Avisava-me que chegaria no final do dia e que ficaria até hoje. Confesso que não me lembrava de lhe ter feito qualquer convite mas, em confinamento, uma visita é sempre bem-vinda, embora com riscos. Pensei logo nos cuidados a ter: obrigá-la a descalçar-se à entrada, a usar a máscara, a ter distanciamento social, a lavar as mãos com sabão azul e branco, que é o mais eficaz, tudo isto para me salvaguardar, dada a minha condição de idoso de risco. 

Uma visita de vinte e quatro horas, na situação actual, era muita gentileza da parte dela e eu não tinha nada preparado. E agora? Se me tivesse avisado com maior antecedência, a recepção seria, por certo, mais adequada e gentil. Podia ter à sua espera uma graça, uma recordação da cidade, um bolinho, um bom vinho, uma fatia de presunto, uma ginjinha com chocolate, uns pistachos, amendoins ou pinhões, até talvez um caldinho verde, com uma rodela de chouriço.

Nada, não tinha nada.

Pensei: vou sair e compro qualquer coisa, mesmo pouco que seja. Fico bem visto e ela ficará satisfeita. Devemos obsequiar quem nos visita, é o mínimo. Reli a mensagem, para ver se havia tempo. Estava lá tudo, de forma imperativa: se não é urgente e fundamental, não saia, fique em casa sossegado.

Foi o que fiz. Acendi a lareira e sentei-me à espera. Veio a chuva, o vento assobiou, o granizo surgiu, a luz manteve-se, a noite caiu, o sono chegou. A Dora, felizmente, não apareceu.

Ainda bem! Receber visitas sem nada para lhes oferecer faz-me corar de vergonha!


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Premonição

Há 40 anos, neste mesmo dia de Dezembro, era quinta-feira.

Quase no final de mais um dia de trabalho, recebi um telefonema de casa. Devia haver qualquer assunto grave, pois só isso justificava o contacto. Os telemóveis ainda nem sonho eram e as redes sociais nem na imaginação mais pródiga existiam. A única forma de contactar alguém era o velho aparelho colocado na secretária, com uma campainha estridente, de forma a importunar o mais distraído e a obrigar o atendimento.

- O esquentador não funciona. Vê se arranjas alguém que venha cá ver isto!

Conhecia um homem que se dedicava a tudo quanto era biscate - electricista, serralheiro, carpinteiro, canalizador (ou picheleiro, como se dizia em algumas regiões), etc. etc.. O Carlos S. era o "homem dos sete ofícios". Morava na Foz e, como já era noite, era por lá que deveria estar. Fui encontrá-lo num café, à conversa, e logo a sua disponibilidade para ajudar se mostrou. Veio comigo, trazendo a mala das ferramentas que tudo resolviam. 

Em casa, a televisão estava ligada no primeiro canal, um dos dois únicos existentes à época e transmitia um programa qualquer de entretenimento. O Carlos S. tirou a tampa do esquentador, mirou, analisou ao pormenor e descobriu a avaria:

- É um rolo de sujidade que se acumulou e impede o gás de chegar à combustão.

E começou a desmontar para chegar ao sítio, com a paciência que o trabalho requeria. De repente, o programa da televisão foi interrompido e substituído por música clássica.

- Morreu alguém! Se calhar foi o Sá Carneiro!

Não tardou muito a saber-se o que tinha acontecido. A música parou e surgiu um jornalista, pesaroso, a dar a notícia. A avioneta onde seguiam Francisco Sá Carneiro e a companheira, Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e a mulher, Maria Manuel Pires, António Patrício Gouveia, e os dois pilotos, tinha-se despenhado em Camarate e não havia sobreviventes. O destino era o Porto, para participarem num comício integrado na campanha presidencial do General Soares Carneiro. A corrida presidencial era disputada com o General Ramalho Eanes, que se candidatava a um segundo mandato. Sá Carneiro estava de "candeias às avessas" com Eanes e a campanha tinha como lema "uma maioria, um governo e um presidente", para concretizar o seu sonho de juntar à AD (coligação entre PPD, CDS e PPM) a cadeira de Belém. 

A campanha eleitoral ficou por ali, mas as eleições realizaram-se e Eanes foi reeleito. Sá Carneiro já não pôde ver e foi Francisco Balsemão quem o substituiu, num governo que duraria pouco tempo.

O Carlos S. arranjou o esquentador. Passado algum tempo foi traído pelo coração e acabaram-se os "sete ofícios".

A avaria do esquentador foi fácil de detectar e ficou a funcionar em pleno. 

Passados 40 anos, continua a não haver certezas sobre o que teria acontecido com a avioneta, naquele fim de tarde fatídico. 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Leituras

Já não irei conseguir ler todos os livros que queria. E também não vou ter tempo para todos os que fazem parte da minha "biblioteca". 

O tempo de ler três ou quatro livros em simultâneo já lá vai há muito. Agora, apenas um e, muitas vezes, é necessário voltar atrás, para não perder o fio à meada. Mesmo assim, a rotina diária de ler mantém-se e espero, e desejo, já agora, que continue durante muito tempo. A forma de o fazer vai tendo alterações, que não passam apenas pela necessidade das "cangalhas". As ditas, não sendo imprescindíveis para ver as letras, são-no para diminuir o cansaço dos olhos que já miraram milhões de letras e começam a dar sinais de estarem a ficar fartos.

O gosto de ler é quase tão grande como o egoísta sabor da compra. Como alguém disse, "dinheiro gasto não faz falta a ninguém" e não é a isso que me refiro. O acto de comprar encerra, em si próprio, um prazer imenso. Por isso, há livros na secretária, na mesa de cabeceira, na sala, por todo o lado, a aguardar vez para serem devorados e arrumados no local que por direito lhes cabe e onde permanecerão até serem relidos ou emprestados. Ser relido é privilégio que não está ao alcance de qualquer um, mas, como em tudo, há uns quantos que se podem gabar de ter sido visitados duas ou três vezes. Ser emprestado também é viagem reservada a poucos, aqueles que se sabe partilharem o gosto, cuidarem da preciosidade, usufruírem da sua beleza e devolverem-na, de preferência tendo gostado da sua leitura. A visão egoísta também se satisfaz na partilha comum.

E, com tudo isto, o melhor é ir acabar o actual que o próximo já (des)espera.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Patos

Todos os patinhos sabem bem nadar
Cabeça para baixo, rabinho para o ar
Quando estão cansados, da água vão sair
Depois, em grande fila, pró ninho querem ir! 


Os patinhos da Lagoa, tal como os da canção infantil, sabem bem nadar e ainda melhor voar. Aqui, estariam a retemperar forças para, no final da tarde, partirem em grande fila, sob a forma de uma seta, para o ninho do Paúl de Tornada, onde dormem até à manhã seguinte. O voo deve ser decidido pelo chefe da equipa, que é o bico da seta e comanda a viagem, quando o sol se prepara para se esconder, lá no horizonte, logo a seguir às Berlengas.
Ainda bem que Tornada pertence ao mesmo concelho. Assim, não estão sujeitos ao confinamento.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Eduardo Lourenço

Se soubesse alguma coisa de filosofia, se tivesse capacidade para dissertar sobre uma personalidade ímpar, escreveria um longo e eloquente texto elogiando o pensador, o filósofo, o ensaísta, que partiu hoje, após 97 anos de uma vida que ficará para a história. A sua morte acontece no dia em que se comemoram 380 anos da restauração da independência do que foi sempre o seu país, mesmo quando o obrigou a sair.

Como não tenho quaisquer atributos que permitam destacar, analisar e classificar este grande vulto, fica apenas o registo de uma frase, "roubada" da sua última entrevista ao jornal "Público": "Sei tanto agora que tenho quase cem anos como quando tinha dois".

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Japão

Em meados da década de oitenta do século passado fiz um curso de gestão no Instituto de Formação Bancária, que funcionava em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro. O Instituto tinha sido fundado em 1980 e o curso destinava-se a jovens quadros bancários, como eu era nessa época. Durante oito meses, conjuntamente com mais 14 colegas oriundos de várias partes do país e de diversos Bancos, passei três dias de cada semana na capital e, em muitas delas, os cinco, das nove até às dezoito. A exigência era grande, havia professores "residentes" e muitas personalidades convidadas para leccionar. Um dos convidados era o Professor Herlander Estrela, que nos dava, se a memória não atraiçoa, Organização Económica. Numa das suas aulas, sempre aliciantes e muito participadas, falava ele da organização do Japão e, a páginas tantas, de chofre, perguntou à plateia:

- Sabeis qual a diferença entre os japoneses e nós, portugueses?

Ninguém comentou e ele esclareceu:

- No Japão, se alguém se dirigir a um grupo de pessoas indagando o caminho para determinado sítio, verá o grupo conferenciar entre si, decidir e, depois, um deles destacar-se e transmitir as indicações necessárias. A mesma situação, por cá, resulta sempre num emaranhado de hipóteses, disparadas por todos ao mesmo tempo, e o pobre coitado, que precisa de ajuda, fica entregue a si próprio.

Nunca mais me esqueci. Ontem, quando lia a revista do Expresso de sábado, que esta semana saiu, uma vez mais, à sexta, deparei-me com a "Pluma Caprichosa", de Clara Ferreira Alves,  a dissertar sobre a vida no Japão e a confirmar a organização e as diferenças que o Professor Herlander Estrela me assinalou e ensinou no século passado.

(...)Os japoneses fazem extensos piqueniques durante a estação das cerejeiras em flor e quando se levantam nem um papel ou plástico ficou na relva. Nada se deita para o chão porque o chão faz parte da natureza, do espaço público e da estética da cidade. Tóquio está impecável, tão impecável que nem se percebe como e quando o lixo é recolhido. Quando um estrangeiro desobedece às regras não escritas, por exemplo, colocando um detrito no recetáculo errado, a reprovação é feita com o olhar. O japonês emenda o ato e muda ele mesmo o lixo para outro recetáculo. Aconteceu-me, por descuido lancei um plástico num recetáculo de papel. Um japonês foi buscar o detrito e colocou-o no sítio certo.

Para quem vai de um país desleixado e habituado à constante improvisação e desculpa, à batotice e à mentira para camuflar o erro ou a falta, visitar Tóquio é um exercício de distensão. Não se pode improvisar. Tudo está pensado. Tudo está planeado e se soubermos o que vamos encontrar, nada corre mal. O coletivo exige inteligência e rigor individual, planeamento e propósito. (...)

Compreendo. Lembrei-me disto ao ver um grupo muito português de motoristas de transportes públicos a falarem uns com os outros, no Parque Eduardo VII de Lisboa, onde estacionam as camionetas (o parque é o estacionamento?), ostensivamente sem máscaras. Ao ver um grupo de motoristas de táxis desocupados falarem uns com os outros, sem máscaras. Tão simples, usar máscara quando não há distância. E nem isto conseguimos fazer.

domingo, 29 de novembro de 2020

Esquisitices

Tempos esquisitos os que se vivem actualmente.

Não bastava não se poder circular entre concelhos, não se saber se comemoraremos o Natal, não nos surpreendermos com o remar de pé mas, que diabo, a Páscoa ao contrário? 

Que mais nos espera? A ver vamos, como diz o cego!




sábado, 28 de novembro de 2020

Organização

Nada me move contra o PCP, antes pelo contrário. Habituei-me, desde novo, a respeitar a enorme luta do partido contra a ditadura e perfilho a opinião expressa por Melo Antunes que, no final do dia 25 de Novembro de 1975, para calar algumas vozes que chegavam com pressa de voltar ao antigo, esclareceu, sem papas na língua, que 
"O Partido Comunista é indispensável à democracia"

Podia não ser necessário mas, à cautela, o melhor era clarificar, calando idiotices que pairassem nalgumas cabeças. Nos últimos dias, o PC tem sido notícia em todos os orgãos de comunicação social, por virtude de realizar o seu Congresso, apesar da pandemia, ainda por cima num concelho - Loures - muito fustigado pelos números e com confinamento obrigatório. Os comentadores não se cansam de bradar  que, apesar de não ser ilegal, o Partido devia dar o exemplo e não o realizar nestas condições. A tudo isso, o PC responde com o que considera serem ataques à liberdade e dizendo que a sua organização fará cumprir todas as regras da DGS, não expondo ninguém a qualquer risco, quer no interior quer no exterior do pavilhão onde a reunião magna se realiza. 

A organização que o PC reivindica, e pratica, lembrou-me uma estória, muito "reaça", ouvida nos tempos do PREC (Processo Revolucionário em Curso), há quase meio século.

Dois amigos encontram-se no centro da capital e um deles, mal vestido, magricela, lamenta-se ao outro, a quem já não via há alguns meses.

- Estou muito mal. A vida não tem corrido bem e as dificuldades são muitas. Nem sequer consigo comprar umas botas para substituir estas alpargatas, todas rotas. As botas são caras e o dinheiro mal chega para a bucha.

- Não te posso ajudar. Também tenho dificuldades. Mas ouvi dizer que ali, no PC, dão botas a toda a gente. Vai lá!

E foi. Bateu à porta e uma voz solícita, cumprimentou:

- Bom dia, camarada. Em que posso ajudar?

- Ouvi dizer que aqui davam botas e eu necessito tanto de umas, disse, exibindo as alpargatas rotas.

- É verdade. E o camarada quer pretas ou castanhas?

De sorriso aberto e já a sonhar com umas botas novas, respondeu:

- Se me dá à escolha, prefiro castanhas.

- Então dirija-se ali àquela porta. 

- Bom dia, camarada. Eu queria umas botas castanhas, por favor.

- De cano alto ou cano baixo?

Mais um sorriso e a resposta pronta:

- Cano alto!

 - Ali, naquela porta à esquerda.

A satisfação era visível quando cumprimentou mais um camarada.

- Bom dia, camarada. Eu queria umas botas, castanhas, de cano alto.

- Com fecho ou sem fecho?

- Com fecho, claro, que já estou a ficar velhote!

- Então é ali, naquela porta ao fundo.

- Bom dia, camarada. Queria umas botas, castanhas, de cano alto e com fecho.

- De salto alto ou rasas?

- De salto alto, que pequeno já eu sou!

- Ali, naquela porta à direita.

Abriu a porta indicada e achou-se na rua, de novo junto ao amigo que lhe dera as indicações.

- Então, deram-te as botas?

- Dar não deram, mas lá organizados são eles!  

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Sexta-Feira

A partir de hoje e até terça-feira, não é autorizado ir para a brincadeira. Pode ir para o emprego, se o tiver e se houver um papel que o justifique. 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Quotidiano

Os números "covidianos" não param na sua ascensão, à procura de um pico que não há meio de ser atingido. A nossa "ilha" mantém-se firme, no lugar mais baixo da escala "covídica", apesar de também seguir uma trajectória ascendente. 

Amanhã chegará a proibição de viajar entre concelhos, mesmo para aqueles que são "paredes meias" e cuja divisão se circunscreve a apenas um risco num mapa. Que seja para o bem de todos, espera-se.

A primavera ainda está longe e, tudo o indica, o inverno será longo. A esperança de melhores dias mantém-se bem viva e a boa música ajuda muito.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

25 Novembro

Há 45 anos era eu um jovem bancário, acabado de ingressar na CGD, num edifício enorme, situado no Largo do Calhariz, em pleno Bairro Alto, e que ainda hoje lá permanece, agora servindo, julgo, de sede à Fidelidade Seguros. A admissão à Caixa tinha sido efectuada, após concurso, em Setembro de 1974 e protelada, nessa altura, por força do serviço militar obrigatório. 

A saída da tropa tinha acontecido no final de Agosto de 1975 e, por isso, estavam bem frescas as memórias dos tempos que por lá tinha passado, nomeadamente após o "dia inicial inteiro e limpo" imortalizado por Sophia de Mello Breyner Andresen. A presença no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional desde o primeiro governo provisório (Maio de 1974) foi uma experiência de vida marcante, que recordo sempre com emoção e saudade. Deu-me a oportunidade de conhecer muita gente, alguns insignificantes, mas a grande maioria educada, dedicada e empenhada. São já muitos os que desapareceram, mas com todos aprendi muito e não os esqueço.

Conhecia (alguns pessoalmente) a grande maioria dos intervenientes na disputa, quer de um lado quer do outro. Não vale a pena, a esta distância, fazer quaisquer comentários ou análises sobre o sucedido, as suas causas e muito menos sobre as consequências. A história é o que é. A realidade e os olhos de hoje são completamente outros.

Recordo, apenas, um dia tenso, no trabalho e pela noite fora, à espera que o desfecho não descambasse naquilo que, pela manhã, parecia inevitável. Talvez o hoje quase esquecido Francisco da Costa Gomes, com a serenidade que lhe valeu a alcunha de "Rolhas", tenha sido a "peça" que evitou o troar dos canhões e a guerra civil que parecia estar a chegar.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Ligações

Ontem, ao contrário do que é costume, não tive possibilidade de ver o programa Visita Guiada, de Paula Moura Pinheiro, que é normalmente exibido na RTP-2, por volta das 23H00 de cada segunda-feira.

Graças às tecnologias disponíveis, que dão bastante jeito, estive a vê-lo há pouco. Desta vez a visita fez-se à Casa de Tormes, onde se situa a Fundação Eça de Queiroz. De acordo com quem sabe, foi nesta casa que Eça escreveu A Cidade e as Serras. A conversa, interessante, havida com o historiador Rui Ramos, trouxe-me à memória alguns pormenores do livro, que a arca, com dificuldade, ainda mantém à tona, embora já com enormes "brancas".

Não resisti. Fui à estante, abri "ao calhas" e saiu isto sem procurar mais. Uma beleza!

(...) Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar ... Jacinto ocupou a sede ancestral - e, durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou - e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - "Está bom!"

Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.

- Também lá volto! - exclamava Jacinto com uma convicção imensa, - É que estou com uma fome ... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.

Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas. (...)

A cidade e as serras
Eça de Queiroz
Lello & Irmão - Editores

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Caldas da Rainha

Apesar do erro divulgado pelo Power Point da Direcção Geral de Saúde, o nosso concelho permanece, no mapa "covidiário", numa zona pintada a branco, cor indicativa de risco moderado e circunscrita a um conjunto, pequeno, de quatro concelhos do Oeste - Caldas da Rainha, Óbidos, Bombarral e Lourinhã.

Ainda subsistem por aí muitas coisas péssimas, reveladoras de mau gosto e de falta de sensibilidade. Porém, a verdade é que na cidade (e no concelho) há locais que nos fazem sentir bem, gostar de por aqui viver e que, sabemos, causam inveja a quem nos visita. 

Não vale a pena referir que a praia da Foz do Arelho é a melhor de Portugal por se saber que seremos contraditados por a água ser muito fria e o mar demasiado bruto. Mas, quantas cidades haverá no país que tenham dois "pulmões" como o Parque D. Carlos I e a Mata Rainha D. Leonor? Poucas, sem qualquer dúvida.

A Mata, que convida sempre a um longo passeio por toda ela, oferecia, na manhã de hoje, esta paisagem de sonho.

Ainda bem que o Power Point estava errado e continuamos a poder desfrutar.

domingo, 22 de novembro de 2020

Manhã

Com um pouco de sorte, o "jardim zoológico" poderia ter mais espécies, mas foi o que se conseguiu arranjar. Os patos e os flamingos estariam ocupados lá mais para o fundo da Barrosa ou dos Musaranhos, ainda sem necessidade de descansar.

Não é fácil conseguir que um coelho, uma rola e uma gaivota partilhem o mesmo espaço, de forma pacífica, num barco sem motor e preso à âncora, no meio de muita, muita água, de um azul espantoso.

A caminhada domingueira fez-se numa manhã de sol lindo, a incidir sobre as máscaras de todos os que gostam de passear à beira da Lagoa.

As e os que adoram a prancha também por lá andavam e ainda ficaram, que aquele exercício, no meio da água, exige muito mais tempo.

sábado, 21 de novembro de 2020

Pandemia emergente

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fez ontem uma comunicação ao país, apelando para a união na diversidade de opiniões, e para a compreensão do que é necessário todos fazermos para que os números da pandemia não aumentem de tal forma que o SNS sufoque. Na sua curta declaração, justificou a manutenção do estado de emergência, alertando de forma clara para o que está a surgir e o que pode chegar. 

Vivemos um momento no qual quem tem responsabilidades tem obrigações. De partidos a jornalistas, de governantes a opinadores, a hora é de ser mais cuidadoso, rigoroso e mobilizador, não cedendo ao facilitismo e à demagogia. Sintético e esclarecedor, crítico mas construtivo, transmitindo serenidade e esperança, se mais não fora pelo respeito que devem merecer os que partiram e aqueles que, nesta altura, quase esgotam os recursos dos hospitais.

Estamos em tempo de congregar atitudes em prol do bem comum, sem deixar de criticar quando a situação justifique, sempre com a perspectiva de ajudar a corrigir, antes que as vozes dos salvadores que por aí chegam se sobreponham às de quem acredita que só há futuro com a diversidade de opiniões e de ideias.

Talvez se justifique voltar a Camões e, nomeadamente, ao último verso da terceira estrofe do Canto I de Os Lusíadas, para não cansar muito. Se não o conseguirmos, corremos o risco de ver o país embarcar sem rumo, numa nau sem fundo e de a musa não cessar de cantar e continuar a apregoar os nossos (de)feitos.
(...)
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram:
Cale-se de Alexandre e de Trajano,
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a antiga Musa canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
(...)

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Sentir & Saber

A propósito da publicação do livro Sentir & Saber - A caminho da consciência, editado pela Temas & Debates, o cientista António Damásio dá uma entrevista à Visão desta semana, na qual discorre sobre a actualidade, a política, o cérebro e o futuro. Dessa entrevista, copio e roubo uma pergunta e a respectiva resposta, por me parecerem, ambas, dignas de destaque, pela objectividade e actualidade.

(...) Visão - Tem esperança de que, desta experiência, possa surgir uma espécie de "homem novo", mais atento, como escreve no livro, à "inteligência, fenomenal e ainda incompreendida, da natureza"?

António Damásio - Não tenho qualquer dúvida. Vejo uma enorme mudança de atitudes. No espaço sociopolítico em que vivemos, existe a noção de que a Natureza está a ser agredida, temos plena consciência de que as alterações climáticas podem vir a comprometer o nosso futuro. Claro que há outros lugares onde as pessoas negam a existência dessas alterações climáticas, mas, quando se olha para os grandes números, para as principais sociedades, não tenho dúvidas de que a maioria da população acredita que estamos perante uma emergência climática. Quanto mais respeitarmos a vida noutros seres que não sejam apenas seres humanos, melhor estaremos no futuro. Mas, atenção: respeitar a Natureza não é respeitar os passarinhos, os cães e os gatos. De um modo geral, isso são espécies que as pessoas respeitam porque as consideram facilmente interligáveis com os seres humanos. O que é preciso é respeitar todas as outras espécies, até mesmo aquelas que não vemos claramente que nos dão vida, como as bactérias. (...)

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Rio

Corre um rio para o mar ...

E vai lá chegar, ultrapassando obstáculos, vencendo dificuldades, cursando o seu leito, da nascente até à foz, com ou sem afluentes e influentes. Tudo o que o rodeia contribui para o seu percurso, desde quem gosta de o ver limpo, garboso, contente, a muitos que o agridem, com lixo ou lixando-o, sem respeito pela sua natureza única e importante.

Cíclico, teimoso, lá segue por altos e baixos, estuários e veredas, curvas, rectas e encruzilhadas, percorrendo o trajecto que lhe surge determinado a cada momento, tentando sempre o melhor caminho para chegar a bom porto. Nem sempre o consegue. O trajecto, muitas vezes, torna-se mais longo, mais lento, mais exigente, mais penoso, mais difícil. Mas vai lá chegar, com mais ou menos escolhos, com erros de escolha e falhas na decisão.

Nem mesmo um rio consegue ser perfeito ...

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Tempo

Não chega para nada. Mal começou e a semana já está no fim. Tanta coisa para fazer e os dias como que desaparecem. Quarta passada, semana acabada, aprendi há muito tempo.

Não se compra nem se vende, nem mesmo nas grandes superfícies. Vive-se. Sem dramas nem sobressaltos, sem demasiada pressa nem lentidão em excesso. Tempo certo, à velocidade certa, com as certezas possíveis e as incertezas do costume.

De vento em popa, ao sabor da maré, como Deus quer, cá vamos indo com a cabeça entre as orelhas, à espera de melhores dias, é o destino, há quem esteja muito pior e muitos há que nem o sol vêem. Respaldamo-nos nas frases feitas, naquilo que sempre ouvimos e dissemos, sempre com a língua afiada para assinalar os defeitos dos outros e uns bolsos, enormes, para guardar, bem fundo, os nossos.

E adiamos, ou procrastinamos, como agora se diz para mostrar eloquência, não esquecendo a resiliência que nos é característica e também está na moda.

Amanhã também é dia, apesar de o dia, o mês ou o ano se aproximarem velozmente do fim. É sempre a mesma coisa ... mas melhores dias virão, não tenhas dúvidas!

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Simpatia e burocracia

À entrada, o aviso manda aguardar pelo segurança naquele local, cumprindo o distanciamento determinado e indicado no chão, com circunferências coladas. O segurança está a atender três jovens ao balcão. Demorou muito pouco e dirigiu-se a mim, cumprimentando-me e perguntando em que pode ajudar.

- Venho tratar do assunto desta carta.

Verifica o papel que lhe exibo e, de imediato, informa:

- Vire ali à esquerda e, depois, entre na primeira porta. 

Assim faço. Logo à entrada, um cartaz, grande, identifica "BALCÃO +". Três postos de atendimento, vazios. Todos têm acrílico e um deles, que tem pendurado o aviso de ser destinado a grávidas, deficientes e idoso, tem uma cadeira. Na parte de dentro, um pouco ao lado dos postos de atendimento, uma senhora sentada na frente de uma secretária imersa em papéis. Lá ao fundo, dois funcionários já entradotes, discutem um problema informático, muito importante e difícil, pelo menos a julgar pelo que vou ouvindo.

- Bom dia.

Ninguém responde. A senhora da secretária, talvez incomodada com o meu olhar, entende, daí a algum tempo, que eu mereço uma explicação. Diz, de forma eloquente e esclarecedora:

- Aguarde um momento.

- Obrigado.

Passam mais uns minutos e eis que surge, da rua, um homem em passo vagaroso e ar contrariado. Com ar de quem sabe tudo, dirige-se ao posto onde aguardo, tranquilamente. Tenho tempo ...

- Diga!

- Bom dia.

Silêncio.

- Venho entregar esta carta, para responder a este ofício do Tribunal. Trago aqui uma cópia, para confirmar que recebeu o original.

Mira tudo com uns olhos experientes, de quem sabe daquilo a sério. Coloca a carta no monte dos assuntos  a tratar, presumo. Vai lá ao fundo buscar um carimbo que usa para certificar a cópia. Devolve-a sem uma palavra, um esgar, um sorriso.

- Bom dia e obrigado.

Ninguém me liga. Os dois mantêm a discussão informática, a senhora continua assoberbada nos papéis, o "atendedor" senta-se, por certo cansado com o trabalho que lhe dei, àquela hora da manhã. Sinto que fui perturbar o sossego de quem, com esta pandemia, ainda tem de trabalhar. E se o raio do velho nos traz o vírus, devem ter pensado aqueles pobres trabalhadores.

Voltei para casa e deliciei-me com as flores do meu jardim. Estão sempre a sorrir!