segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Japão

Em meados da década de oitenta do século passado fiz um curso de gestão no Instituto de Formação Bancária, que funcionava em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro. O Instituto tinha sido fundado em 1980 e o curso destinava-se a jovens quadros bancários, como eu era nessa época. Durante oito meses, conjuntamente com mais 14 colegas oriundos de várias partes do país e de diversos Bancos, passei três dias de cada semana na capital e, em muitas delas, os cinco, das nove até às dezoito. A exigência era grande, havia professores "residentes" e muitas personalidades convidadas para leccionar. Um dos convidados era o Professor Herlander Estrela, que nos dava, se a memória não atraiçoa, Organização Económica. Numa das suas aulas, sempre aliciantes e muito participadas, falava ele da organização do Japão e, a páginas tantas, de chofre, perguntou à plateia:

- Sabeis qual a diferença entre os japoneses e nós, portugueses?

Ninguém comentou e ele esclareceu:

- No Japão, se alguém se dirigir a um grupo de pessoas indagando o caminho para determinado sítio, verá o grupo conferenciar entre si, decidir e, depois, um deles destacar-se e transmitir as indicações necessárias. A mesma situação, por cá, resulta sempre num emaranhado de hipóteses, disparadas por todos ao mesmo tempo, e o pobre coitado, que precisa de ajuda, fica entregue a si próprio.

Nunca mais me esqueci. Ontem, quando lia a revista do Expresso de sábado, que esta semana saiu, uma vez mais, à sexta, deparei-me com a "Pluma Caprichosa", de Clara Ferreira Alves,  a dissertar sobre a vida no Japão e a confirmar a organização e as diferenças que o Professor Herlander Estrela me assinalou e ensinou no século passado.

(...)Os japoneses fazem extensos piqueniques durante a estação das cerejeiras em flor e quando se levantam nem um papel ou plástico ficou na relva. Nada se deita para o chão porque o chão faz parte da natureza, do espaço público e da estética da cidade. Tóquio está impecável, tão impecável que nem se percebe como e quando o lixo é recolhido. Quando um estrangeiro desobedece às regras não escritas, por exemplo, colocando um detrito no recetáculo errado, a reprovação é feita com o olhar. O japonês emenda o ato e muda ele mesmo o lixo para outro recetáculo. Aconteceu-me, por descuido lancei um plástico num recetáculo de papel. Um japonês foi buscar o detrito e colocou-o no sítio certo.

Para quem vai de um país desleixado e habituado à constante improvisação e desculpa, à batotice e à mentira para camuflar o erro ou a falta, visitar Tóquio é um exercício de distensão. Não se pode improvisar. Tudo está pensado. Tudo está planeado e se soubermos o que vamos encontrar, nada corre mal. O coletivo exige inteligência e rigor individual, planeamento e propósito. (...)

Compreendo. Lembrei-me disto ao ver um grupo muito português de motoristas de transportes públicos a falarem uns com os outros, no Parque Eduardo VII de Lisboa, onde estacionam as camionetas (o parque é o estacionamento?), ostensivamente sem máscaras. Ao ver um grupo de motoristas de táxis desocupados falarem uns com os outros, sem máscaras. Tão simples, usar máscara quando não há distância. E nem isto conseguimos fazer.

domingo, 29 de novembro de 2020

Esquisitices

Tempos esquisitos os que se vivem actualmente.

Não bastava não se poder circular entre concelhos, não se saber se comemoraremos o Natal, não nos surpreendermos com o remar de pé mas, que diabo, a Páscoa ao contrário? 

Que mais nos espera? A ver vamos, como diz o cego!




sábado, 28 de novembro de 2020

Organização

Nada me move contra o PCP, antes pelo contrário. Habituei-me, desde novo, a respeitar a enorme luta do partido contra a ditadura e perfilho a opinião expressa por Melo Antunes que, no final do dia 25 de Novembro de 1975, para calar algumas vozes que chegavam com pressa de voltar ao antigo, esclareceu, sem papas na língua, que 
"O Partido Comunista é indispensável à democracia"

Podia não ser necessário mas, à cautela, o melhor era clarificar, calando idiotices que pairassem nalgumas cabeças. Nos últimos dias, o PC tem sido notícia em todos os orgãos de comunicação social, por virtude de realizar o seu Congresso, apesar da pandemia, ainda por cima num concelho - Loures - muito fustigado pelos números e com confinamento obrigatório. Os comentadores não se cansam de bradar  que, apesar de não ser ilegal, o Partido devia dar o exemplo e não o realizar nestas condições. A tudo isso, o PC responde com o que considera serem ataques à liberdade e dizendo que a sua organização fará cumprir todas as regras da DGS, não expondo ninguém a qualquer risco, quer no interior quer no exterior do pavilhão onde a reunião magna se realiza. 

A organização que o PC reivindica, e pratica, lembrou-me uma estória, muito "reaça", ouvida nos tempos do PREC (Processo Revolucionário em Curso), há quase meio século.

Dois amigos encontram-se no centro da capital e um deles, mal vestido, magricela, lamenta-se ao outro, a quem já não via há alguns meses.

- Estou muito mal. A vida não tem corrido bem e as dificuldades são muitas. Nem sequer consigo comprar umas botas para substituir estas alpargatas, todas rotas. As botas são caras e o dinheiro mal chega para a bucha.

- Não te posso ajudar. Também tenho dificuldades. Mas ouvi dizer que ali, no PC, dão botas a toda a gente. Vai lá!

E foi. Bateu à porta e uma voz solícita, cumprimentou:

- Bom dia, camarada. Em que posso ajudar?

- Ouvi dizer que aqui davam botas e eu necessito tanto de umas, disse, exibindo as alpargatas rotas.

- É verdade. E o camarada quer pretas ou castanhas?

De sorriso aberto e já a sonhar com umas botas novas, respondeu:

- Se me dá à escolha, prefiro castanhas.

- Então dirija-se ali àquela porta. 

- Bom dia, camarada. Eu queria umas botas castanhas, por favor.

- De cano alto ou cano baixo?

Mais um sorriso e a resposta pronta:

- Cano alto!

 - Ali, naquela porta à esquerda.

A satisfação era visível quando cumprimentou mais um camarada.

- Bom dia, camarada. Eu queria umas botas, castanhas, de cano alto.

- Com fecho ou sem fecho?

- Com fecho, claro, que já estou a ficar velhote!

- Então é ali, naquela porta ao fundo.

- Bom dia, camarada. Queria umas botas, castanhas, de cano alto e com fecho.

- De salto alto ou rasas?

- De salto alto, que pequeno já eu sou!

- Ali, naquela porta à direita.

Abriu a porta indicada e achou-se na rua, de novo junto ao amigo que lhe dera as indicações.

- Então, deram-te as botas?

- Dar não deram, mas lá organizados são eles!  

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Sexta-Feira

A partir de hoje e até terça-feira, não é autorizado ir para a brincadeira. Pode ir para o emprego, se o tiver e se houver um papel que o justifique. 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Quotidiano

Os números "covidianos" não param na sua ascensão, à procura de um pico que não há meio de ser atingido. A nossa "ilha" mantém-se firme, no lugar mais baixo da escala "covídica", apesar de também seguir uma trajectória ascendente. 

Amanhã chegará a proibição de viajar entre concelhos, mesmo para aqueles que são "paredes meias" e cuja divisão se circunscreve a apenas um risco num mapa. Que seja para o bem de todos, espera-se.

A primavera ainda está longe e, tudo o indica, o inverno será longo. A esperança de melhores dias mantém-se bem viva e a boa música ajuda muito.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

25 Novembro

Há 45 anos era eu um jovem bancário, acabado de ingressar na CGD, num edifício enorme, situado no Largo do Calhariz, em pleno Bairro Alto, e que ainda hoje lá permanece, agora servindo, julgo, de sede à Fidelidade Seguros. A admissão à Caixa tinha sido efectuada, após concurso, em Setembro de 1974 e protelada, nessa altura, por força do serviço militar obrigatório. 

A saída da tropa tinha acontecido no final de Agosto de 1975 e, por isso, estavam bem frescas as memórias dos tempos que por lá tinha passado, nomeadamente após o "dia inicial inteiro e limpo" imortalizado por Sophia de Mello Breyner Andresen. A presença no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional desde o primeiro governo provisório (Maio de 1974) foi uma experiência de vida marcante, que recordo sempre com emoção e saudade. Deu-me a oportunidade de conhecer muita gente, alguns insignificantes, mas a grande maioria educada, dedicada e empenhada. São já muitos os que desapareceram, mas com todos aprendi muito e não os esqueço.

Conhecia (alguns pessoalmente) a grande maioria dos intervenientes na disputa, quer de um lado quer do outro. Não vale a pena, a esta distância, fazer quaisquer comentários ou análises sobre o sucedido, as suas causas e muito menos sobre as consequências. A história é o que é. A realidade e os olhos de hoje são completamente outros.

Recordo, apenas, um dia tenso, no trabalho e pela noite fora, à espera que o desfecho não descambasse naquilo que, pela manhã, parecia inevitável. Talvez o hoje quase esquecido Francisco da Costa Gomes, com a serenidade que lhe valeu a alcunha de "Rolhas", tenha sido a "peça" que evitou o troar dos canhões e a guerra civil que parecia estar a chegar.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Ligações

Ontem, ao contrário do que é costume, não tive possibilidade de ver o programa Visita Guiada, de Paula Moura Pinheiro, que é normalmente exibido na RTP-2, por volta das 23H00 de cada segunda-feira.

Graças às tecnologias disponíveis, que dão bastante jeito, estive a vê-lo há pouco. Desta vez a visita fez-se à Casa de Tormes, onde se situa a Fundação Eça de Queiroz. De acordo com quem sabe, foi nesta casa que Eça escreveu A Cidade e as Serras. A conversa, interessante, havida com o historiador Rui Ramos, trouxe-me à memória alguns pormenores do livro, que a arca, com dificuldade, ainda mantém à tona, embora já com enormes "brancas".

Não resisti. Fui à estante, abri "ao calhas" e saiu isto sem procurar mais. Uma beleza!

(...) Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar ... Jacinto ocupou a sede ancestral - e, durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou - e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - "Está bom!"

Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.

- Também lá volto! - exclamava Jacinto com uma convicção imensa, - É que estou com uma fome ... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.

Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas. (...)

A cidade e as serras
Eça de Queiroz
Lello & Irmão - Editores

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Caldas da Rainha

Apesar do erro divulgado pelo Power Point da Direcção Geral de Saúde, o nosso concelho permanece, no mapa "covidiário", numa zona pintada a branco, cor indicativa de risco moderado e circunscrita a um conjunto, pequeno, de quatro concelhos do Oeste - Caldas da Rainha, Óbidos, Bombarral e Lourinhã.

Ainda subsistem por aí muitas coisas péssimas, reveladoras de mau gosto e de falta de sensibilidade. Porém, a verdade é que na cidade (e no concelho) há locais que nos fazem sentir bem, gostar de por aqui viver e que, sabemos, causam inveja a quem nos visita. 

Não vale a pena referir que a praia da Foz do Arelho é a melhor de Portugal por se saber que seremos contraditados por a água ser muito fria e o mar demasiado bruto. Mas, quantas cidades haverá no país que tenham dois "pulmões" como o Parque D. Carlos I e a Mata Rainha D. Leonor? Poucas, sem qualquer dúvida.

A Mata, que convida sempre a um longo passeio por toda ela, oferecia, na manhã de hoje, esta paisagem de sonho.

Ainda bem que o Power Point estava errado e continuamos a poder desfrutar.

domingo, 22 de novembro de 2020

Manhã

Com um pouco de sorte, o "jardim zoológico" poderia ter mais espécies, mas foi o que se conseguiu arranjar. Os patos e os flamingos estariam ocupados lá mais para o fundo da Barrosa ou dos Musaranhos, ainda sem necessidade de descansar.

Não é fácil conseguir que um coelho, uma rola e uma gaivota partilhem o mesmo espaço, de forma pacífica, num barco sem motor e preso à âncora, no meio de muita, muita água, de um azul espantoso.

A caminhada domingueira fez-se numa manhã de sol lindo, a incidir sobre as máscaras de todos os que gostam de passear à beira da Lagoa.

As e os que adoram a prancha também por lá andavam e ainda ficaram, que aquele exercício, no meio da água, exige muito mais tempo.

sábado, 21 de novembro de 2020

Pandemia emergente

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fez ontem uma comunicação ao país, apelando para a união na diversidade de opiniões, e para a compreensão do que é necessário todos fazermos para que os números da pandemia não aumentem de tal forma que o SNS sufoque. Na sua curta declaração, justificou a manutenção do estado de emergência, alertando de forma clara para o que está a surgir e o que pode chegar. 

Vivemos um momento no qual quem tem responsabilidades tem obrigações. De partidos a jornalistas, de governantes a opinadores, a hora é de ser mais cuidadoso, rigoroso e mobilizador, não cedendo ao facilitismo e à demagogia. Sintético e esclarecedor, crítico mas construtivo, transmitindo serenidade e esperança, se mais não fora pelo respeito que devem merecer os que partiram e aqueles que, nesta altura, quase esgotam os recursos dos hospitais.

Estamos em tempo de congregar atitudes em prol do bem comum, sem deixar de criticar quando a situação justifique, sempre com a perspectiva de ajudar a corrigir, antes que as vozes dos salvadores que por aí chegam se sobreponham às de quem acredita que só há futuro com a diversidade de opiniões e de ideias.

Talvez se justifique voltar a Camões e, nomeadamente, ao último verso da terceira estrofe do Canto I de Os Lusíadas, para não cansar muito. Se não o conseguirmos, corremos o risco de ver o país embarcar sem rumo, numa nau sem fundo e de a musa não cessar de cantar e continuar a apregoar os nossos (de)feitos.
(...)
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram:
Cale-se de Alexandre e de Trajano,
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a antiga Musa canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
(...)

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Sentir & Saber

A propósito da publicação do livro Sentir & Saber - A caminho da consciência, editado pela Temas & Debates, o cientista António Damásio dá uma entrevista à Visão desta semana, na qual discorre sobre a actualidade, a política, o cérebro e o futuro. Dessa entrevista, copio e roubo uma pergunta e a respectiva resposta, por me parecerem, ambas, dignas de destaque, pela objectividade e actualidade.

(...) Visão - Tem esperança de que, desta experiência, possa surgir uma espécie de "homem novo", mais atento, como escreve no livro, à "inteligência, fenomenal e ainda incompreendida, da natureza"?

António Damásio - Não tenho qualquer dúvida. Vejo uma enorme mudança de atitudes. No espaço sociopolítico em que vivemos, existe a noção de que a Natureza está a ser agredida, temos plena consciência de que as alterações climáticas podem vir a comprometer o nosso futuro. Claro que há outros lugares onde as pessoas negam a existência dessas alterações climáticas, mas, quando se olha para os grandes números, para as principais sociedades, não tenho dúvidas de que a maioria da população acredita que estamos perante uma emergência climática. Quanto mais respeitarmos a vida noutros seres que não sejam apenas seres humanos, melhor estaremos no futuro. Mas, atenção: respeitar a Natureza não é respeitar os passarinhos, os cães e os gatos. De um modo geral, isso são espécies que as pessoas respeitam porque as consideram facilmente interligáveis com os seres humanos. O que é preciso é respeitar todas as outras espécies, até mesmo aquelas que não vemos claramente que nos dão vida, como as bactérias. (...)

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Rio

Corre um rio para o mar ...

E vai lá chegar, ultrapassando obstáculos, vencendo dificuldades, cursando o seu leito, da nascente até à foz, com ou sem afluentes e influentes. Tudo o que o rodeia contribui para o seu percurso, desde quem gosta de o ver limpo, garboso, contente, a muitos que o agridem, com lixo ou lixando-o, sem respeito pela sua natureza única e importante.

Cíclico, teimoso, lá segue por altos e baixos, estuários e veredas, curvas, rectas e encruzilhadas, percorrendo o trajecto que lhe surge determinado a cada momento, tentando sempre o melhor caminho para chegar a bom porto. Nem sempre o consegue. O trajecto, muitas vezes, torna-se mais longo, mais lento, mais exigente, mais penoso, mais difícil. Mas vai lá chegar, com mais ou menos escolhos, com erros de escolha e falhas na decisão.

Nem mesmo um rio consegue ser perfeito ...

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Tempo

Não chega para nada. Mal começou e a semana já está no fim. Tanta coisa para fazer e os dias como que desaparecem. Quarta passada, semana acabada, aprendi há muito tempo.

Não se compra nem se vende, nem mesmo nas grandes superfícies. Vive-se. Sem dramas nem sobressaltos, sem demasiada pressa nem lentidão em excesso. Tempo certo, à velocidade certa, com as certezas possíveis e as incertezas do costume.

De vento em popa, ao sabor da maré, como Deus quer, cá vamos indo com a cabeça entre as orelhas, à espera de melhores dias, é o destino, há quem esteja muito pior e muitos há que nem o sol vêem. Respaldamo-nos nas frases feitas, naquilo que sempre ouvimos e dissemos, sempre com a língua afiada para assinalar os defeitos dos outros e uns bolsos, enormes, para guardar, bem fundo, os nossos.

E adiamos, ou procrastinamos, como agora se diz para mostrar eloquência, não esquecendo a resiliência que nos é característica e também está na moda.

Amanhã também é dia, apesar de o dia, o mês ou o ano se aproximarem velozmente do fim. É sempre a mesma coisa ... mas melhores dias virão, não tenhas dúvidas!

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Simpatia e burocracia

À entrada, o aviso manda aguardar pelo segurança naquele local, cumprindo o distanciamento determinado e indicado no chão, com circunferências coladas. O segurança está a atender três jovens ao balcão. Demorou muito pouco e dirigiu-se a mim, cumprimentando-me e perguntando em que pode ajudar.

- Venho tratar do assunto desta carta.

Verifica o papel que lhe exibo e, de imediato, informa:

- Vire ali à esquerda e, depois, entre na primeira porta. 

Assim faço. Logo à entrada, um cartaz, grande, identifica "BALCÃO +". Três postos de atendimento, vazios. Todos têm acrílico e um deles, que tem pendurado o aviso de ser destinado a grávidas, deficientes e idoso, tem uma cadeira. Na parte de dentro, um pouco ao lado dos postos de atendimento, uma senhora sentada na frente de uma secretária imersa em papéis. Lá ao fundo, dois funcionários já entradotes, discutem um problema informático, muito importante e difícil, pelo menos a julgar pelo que vou ouvindo.

- Bom dia.

Ninguém responde. A senhora da secretária, talvez incomodada com o meu olhar, entende, daí a algum tempo, que eu mereço uma explicação. Diz, de forma eloquente e esclarecedora:

- Aguarde um momento.

- Obrigado.

Passam mais uns minutos e eis que surge, da rua, um homem em passo vagaroso e ar contrariado. Com ar de quem sabe tudo, dirige-se ao posto onde aguardo, tranquilamente. Tenho tempo ...

- Diga!

- Bom dia.

Silêncio.

- Venho entregar esta carta, para responder a este ofício do Tribunal. Trago aqui uma cópia, para confirmar que recebeu o original.

Mira tudo com uns olhos experientes, de quem sabe daquilo a sério. Coloca a carta no monte dos assuntos  a tratar, presumo. Vai lá ao fundo buscar um carimbo que usa para certificar a cópia. Devolve-a sem uma palavra, um esgar, um sorriso.

- Bom dia e obrigado.

Ninguém me liga. Os dois mantêm a discussão informática, a senhora continua assoberbada nos papéis, o "atendedor" senta-se, por certo cansado com o trabalho que lhe dei, àquela hora da manhã. Sinto que fui perturbar o sossego de quem, com esta pandemia, ainda tem de trabalhar. E se o raio do velho nos traz o vírus, devem ter pensado aqueles pobres trabalhadores.

Voltei para casa e deliciei-me com as flores do meu jardim. Estão sempre a sorrir!



segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Barraca

Já por aqui falei dele, a propósito da sua eloquência com as flores, que adorava e tratava com um carinho inigualável.

Mimoso de apelido e Mário de nome, apenas estas duas palavras o identificavam. Nome curto tal como o tempo que a vida lhe reservou. Era homem humilde, quase analfabeto, mas sempre com uma graça, mesmo nas situações mais bizarras. O colete fazia parte da sua indumentária e trazia, preso no botão do meio por uma corrente, um relógio "cebola" no bolso do lado esquerdo. O colete acompanhava-o por todo o jardim e era pendurado no arbusto ou na árvore que estivesse mais perto do sítio onde decorria o  trabalho. Cabia-lhe a missão de tocar o sino e, por isso, tinha de ter horas certas e sempre à mão.

O jardim era (e é) enorme. Uma casa de madeira, com dois pisos, era o suporte logístico de todas as tarefas que por ali se desenvolviam. Era conhecida por todos como "A barraca do Mimoso". No rés-do-chão guardavam-se as ferramentas e os adubos. Havia uma mesa, grande e vários bancos, tudo de madeira maciça e sem uma ponta de caruncho. Era utilizada para os almoços e as merendas de quem ia trabalhar ao jardim, nos períodos de maior afã. O primeiro andar era a "estufa". Era lá que o Mimoso mantinha os vasos com as flores mais sensíveis, que só apareciam em ocasiões especiais, nomeadamente quando havia visitas importantes e o jardim tinha de ser apresentado num "brinquinho", para ser usufruído e gabado.

Sempre que o S. Pedro se lembrava de mandar chuva, o jardineiro, que dizia não ter "horta nas costas", acrescentava com um sorriso malandreco:

- Vai prá barraca, Mimoso!

E resguardava-se, sentado no banquinho, à espera que o tempo melhorasse. É o que tenho feito nestes últimos tempos, mesmo sem chuva: uma volta ou volta e meia e, recordando, digo para mim ou para quem está perto:

- Vai prá barraca, mimoso.

domingo, 15 de novembro de 2020

Gaivota

Uma gaivota voava, voava ...

Cansou-se. E nada melhor que o mastro - não o maior do mundo que esse é pertença dos Deolinda, mas o que assinala a escola de vela - para conceder a si própria o merecido descanso.

Pousou, bicou-se para ter a certeza de que tinha chegado a bom porto, e por ali ficou, extasiada com a paisagem, protegida do vento que não soprava, e com o mar, lá ao fundo, a marulhar, sem lhe causar qualquer incómodo mas não a deixando esquecer que, por lá, ficam os seus domínios.

Aprecia os passeantes, espreita os pescadores, mira o voo dos patos, tão diferente do seu. Agora tem mais um motivo para por ali ficar: chegou o paddle, essa nova actividade aquática que cada vez atrai mais pessoas, remando no remanso das águas, suando as estopinhas quando a maré tem força para contrariar os atletas. Mas parece valer a pena, a avaliar pela elegância que se vê nelas e pela peitaça que surge neles.

Estão na moda as pranchadas na lagoa ...

sábado, 14 de novembro de 2020

Pedincha ou necessidade

Dou, não dou? O dilema surge sempre e nunca sei o que fazer. A negativa, agora, prevalece quase sempre, porque deixei de andar com dinheiro no bolso, notas ou moedas. Facilita a decisão, mas deixa-me sempre constrangido e com um peso, grande, de culpa. 

Nestes anos todos, a andar e a conhecer mais ou menos bem tantos sítios, encontrei muita gente com necessidade real e também deparei com alguns que o faziam por vício, fingindo maleitas ou defeitos que não tinham, para depois irem depositar uns cobres na sua conta mais ou menos recheada. 

A pergunta surge-me sempre: não há forma de eliminar esta praga? Não há vacina que ponha cobro a esta miséria? E aparecem sempre inúmeras respostas que nem vale a pena enumerar. A verdade é que se mantêm muitos seres humanos a estender a mão, sérios ou fingidos, pouco importa. 

Não quero acreditar que o melhor seja não olhar, não ver nem reparar porque, como diz o ditado, penas que não se vêem não se sentem.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

"A desconfinar"

"Vê lá se te sai o sábado à sexta-feira" era uma expressão usada muitas vezes por minha mãe, alertando-me para as surpresas, boas ou más, que a vida sempre nos reserva, por mais estranhas e inverosímeis que possam parecer.

Por força do malfadado vírus e das restrições em vigor, o Expresso antecipou a sua saída para hoje, sexta-feira, 13. Isso não impediu que o saco esteja cá em casa desde manhã e que a leitura do primeiro caderno já vá a meio.

O primor e a oportunidade do cartoon de António não é surpresa, nem mesmo à sexta-feira. Vamos ver se a fava açoriana não é o prenúncio de uma agricultura intensiva no continente ...

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Coisas de velhos

Como soe dizer-se, fui dar umas braçadas à piscina municipal, para exercitar o físico e manter alguma destreza muscular. Claro que também dei algumas pernadas ...

Conversa fiada. As adiposidades mantêm-se e a idade do condor acentua-se: hoje foi com dor no joelho a que faltam peças, na cervical que está cansada de segurar a coluna bem direita e, se calhar, em mais alguns locais dos quais nem dei nota. Tarefa concluída, sempre com os cuidados devidos.

A ida ao café foi rápida, como convém para não dar hipóteses ao bicho. Parece que, mesmo não lhe dando confiança nem lhe passando cartão, ele teima em querer entrar e nem precisa de convite. O resto das notícias vistas e ouvidas do sofá, local onde acontecem eclipses que nunca são noticiados.

Depois, a relva. Que mania, sempre a crescer e a gritar "corta-me". E tem atenção, porque não te deixo cortar-me se estiver a chover, acrescenta, soberba, determinando e exigindo sem qualquer pudor ou tolerância. Até parece patroa!

Está o dia ganho! Agora é fechar os estores, acender as luzes (apenas as necessárias, que a energia tem de ser poupada), pôr a mesa, comer a sopinha, uma peça de fruta, um café de cápsula, ir para a sala, sentar, ouvir, ler e dizer meia dúzia de palermices. Passado algum tempo, surgirá a sacramental pergunta:

- E se nos fôssemos deitar?!

Coisas de velhos! 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Cão mole

Era um buldogue pachorrento e muito dorminhoco. Passava mais tempo deitado nas sombras do que a andar. Ao mínimo movimento por perto, abria um olho para reconhecer se a visita era conhecida, fechando-o de imediato após confirmar. Se não era dali, levantava-se, calmamente, aproximava-se, cheirava como que certificando que vinham por bem e voltava ao poiso de onde tinha saído.

Era enorme e dava pelo nome de Bob. A baba escorria-lhe da boca em quantidade e a língua estava quase sempre de fora. Parecia cansado, arfando de forma bem audível e movimentando-se em câmara lenta. Não fazia mal nem às moscas que, por vezes, passeavam pelo seu lombo castanho, bem nutrido. Passeava pelo jardim, mergulhava na piscina se não houvesse ninguém por perto a ralhar-lhe, deitava-se debaixo dum buxo ou no meio dos fetos, sempre numa mansidão de gestos que quase afligia. Os melros, os piscos, as felosas, os pardais e as, poucas, perdizes que por vezes apareciam, podiam estar junto a ele que nem se mexia.

Como ninguém é perfeito, o Bob tinha um ódio de estimação a gatos. Estes, talvez avisados, raramente por lá andavam. Se, porventura, isso acontecia, era quase certo que já não saíam pelas suas patas. Aquele corpanzil mole e dolente adquiria uma elasticidade e uma velocidade que ninguém imaginava pudesse ter.

O gato era apanhado a meio, o Bob abanava a cabeça duas ou três vezes, abria a boca e o que, até ali, era um gato, passava a ser apenas um corpo morto a pedir sepultura. 

Morreu de velho, o Bob. Quase no fim, já sem elasticidade nem força, as orelhas ainda se levantavam de cada vez que um bichano mais atrevido rondava os seus domínios.

Dizia-se que, lá no fundo, o Bob nem se apercebia do mal que fazia. Ele era tão bom e tão meigo ...

terça-feira, 10 de novembro de 2020

A forja

Até o carvão era especial. De hulha, comprado, vinha em sacas grandes, de serapilheira, e durava mais ou menos uma semana. A oficina era de tamanho reduzido, dava para o pátio, tinha uma bancada na entrada, o fole e a braseira lá ao fundo, a janela ao lado, sempre mascarrada de fumo e resíduos. A bigorna ficava logo a seguir à bancada, bem perto do calor da forja.

Tarefas: fazer ferramentas novas e manter as antigas em boas condições para o trabalho. E por lá se faziam enxadas, sachos, foices, gadanhas, podões, forquilhas e tantas outras, que haveriam de ser utilizadas pelos trabalhadores nas tarefas agrícolas de todo o ano.

A braseira era acesa todas as manhãs, sem grande dificuldade. O lume permanecia do dia anterior, ainda que brando, afrouxado e sem se notar. No final de cada dia era tapado com carvão novo e assim dormia. Mal o fole era accionado, à custa do braço, claro, surgiam as primeiras faúlhas e, daí a pouco, a temperatura já permitia entalar no carvão a peça que se desejava trabalhar, levando-a ao rubro. Depois, o martelo, a bigorna e a habilidade do ferreiro faziam o resto.

As peças habituais não suscitavam problemas e a sua realização era rotineira, com as marteladas a acontecerem quase sem olhar. O nervosismo, a exigência e a habilidade saltavam quando o pedido era mais elaborado, esquisito e vinha de quem mandava: uma ferramenta original, adaptada às necessidades, uma cabeceira de cama, uma varanda, uma vedação bonita, uma guarda de lareira, uma armação para o vaso da sala verde ...

- Não têm nada que fazer...só sabem chatear. Nunca fiz isto. Só me dá vontade de os mandar à .... 

E vinha um rosário de impropérios, com todas as letras, se não havia patrão ou senhora por perto. Puxava a onça do tabaco e o livrinho das folhas do papel. Encostava-se à bancada, enrolava o cigarro com toda a calma, coçava a cabeça levantando o boné, pensava e

- Sabes para quando é que é preciso?

- Dia tal ... 

- Vou ver, mas não prometo!

A peça aparecia, perfeita, e normalmente antes do prazo. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Caixa de Previdência

O assunto era importante e tinha que ser tratado directamente na Caixa de Previdência de Leiria, como, à época, se designava a actual Segurança Social. Havia sido feito um contacto telefónico, que redundou em fracasso e cuja resposta, áspera, foi que não era assunto para tratar pelo telefone. 

Embora, à socapa, já conduzisse, não havia o papelinho que desse legalidade a essa função. Estava fora de escolha a possibilidade de deslocação com motorista e, por isso, a opção foi a viagem de comboio, que partia de manhã, bem cedo, da estação das Caldas.

Não houve problemas na partida, mas o mesmo não iria acontecer para a vinda. Conhecia a cidade de Leiria, não muito bem, diga-se, mas nunca lá tinha ido de comboio. A chegada à estação foi uma surpresa: situava-se bem longe da cidade que eu conhecia e da qual não se vislumbrava nem um prédio. O homem que usava um boné da CP foi a solução para o esclarecimento necessário

- Apanha a camioneta da Leiriense e ela leva-o.

E assim foi, sem necessidade sequer de comprar bilhete. A Caixa de Previdência era quase em frente da garagem dos autocarros e, por isso, foi chegar, atravessar a avenida e subir ao primeiro andar, depois da devida identificação no piso térreo. O assunto foi começado a tratar de manhã e só foi terminado quase no encerramento dos serviços. Pelo meio, um almocito leve, num restaurante das imediações, numa cave meio escura e cheia de gente.

Para o regresso, já não foram precisas perguntas. A camioneta, azul, estava de motor a trabalhar, dizia "Estação" e estava quase completa. Ouviam-se comentários sobre o atraso e a hipótese de não chegar a tempo à estação. Partiu, finalmente, e chegou logo, logo, bem mais rápida do que tinha acontecido de manhã. Era a descer ...

A automotora, tal como tinham previsto os clientes habituais, já estava na gare, e toda a gente se precipitou, a correr, para a apanhar. Era leve e fui dos primeiros a entrar e a sentar-me, confortavelmente, no banco de napa. Ouviu-se o apito e o comboio iniciou a marcha.

- Está a andar para norte?! Mas eu vou para o sul ...

E estava. O revisor, com o boné da CP, confirmou e esclareceu:

- Vai ser complicado. O cruzamento com a que vem para baixo é feito na estação de Monte Real, mas quando esta chegar, a outra parte, e não dá tempo para a mudança.

- Mas eu tenho que ir para as Caldas!

- Vou dizer ao maquinista para parar no próximo apeadeiro e sai aí. Depois, terá que fazer sinal à automotora para parar, porque o apeadeiro não é de paragem obrigatória.

A ansiedade era muita. No meio do nada, sem ninguém por perto, mas ... eis que surge o bicho.

Os braços agitaram-se, com a pequena pasta numa mão e o jornal A Bola na outra. Notou-se a marcha a abrandar e parou, felizmente.

Julgo que voei lá para dentro sem sequer tocar com os pés nos degraus!

domingo, 8 de novembro de 2020

Língua

As  viagens  são assim, meu caro amigo, sabemos
do seu propósito apenas depois de regressarmos. 
Mia Couto
O mapeador de ausências

Por força das circunstâncias do trabalho paternal, conheci a cidade do Porto ainda bastante novinho e antes de visitar a capital.

As viagens, e foram várias, eram sempre uma aventura, com o caminho quase todo percorrido de noite, na maior parte do tempo a dormir enrolado na manta e a ser acordado com o clarear do dia, já quase a atravessar o Douro, pelo tabuleiro superior da Ponte D. Luís. As obras da Ponte da Arrábida já estavam a surgir lá ao fundo e, mal se avistavam, surgia a explicação, 

- qualquer dia, será por ali que passamos o rio.

A travessia, no regresso, era efectuada pelo tabuleiro inferior, para que os olhos se espantassem com a altura da ponte e houvesse a sensação, estranha, de que, lá por cima, estavam carros a passar e nós também por lá tínhamos passado, bem cedo. O armazém de destino era na Rua Justino Teixeira e nele havia muita gente a trabalhar, descalça ou com tairocas. Falavam muito, e alto, e tinham sempre uma graça, com aquela pronúncia tão esquisita, para dizer ao puto que tinha bindo lá de vaixo. Como acontecia sempre, serviço terminado e regresso empreendido de imediato, que a jornada era longa e ainda havia a paragem para reconfortar o estômago, nessa época sempre carente e nunca saciado.

O restaurante escolhido foi o de Vendas de Grijó, terreola que, naquele tempo, já era bem fora da grande cidade. Julgo que se chamava Atlântico, mas não garanto. Lembro-me, sim, de ser num primeiro andar, ter muitas mesas e uma menina de avental a trazer a comida, sempre com um sorriso nos lábios. O prato do dia era língua de vaca estufada, com ervilhas. Não me recordava de alguma vez ter comido língua de vaca, estufada ou de qualquer outro jeito. Lembrava-me, sim, de muitas vezes me perguntarem

- o gato comeu-te a língua?

E de isso me perturbar bastante. Comi. E soube-me bem. Mas foi sol de pouca dura. Não passou muito tempo até surgirem primeiro, as náuseas, depois, suores frios, a seguir, dores na barriga. E houve carga ao mar, uma vez, duas vezes, várias vezes. Andavam-se meia dúzia de quilómetros e

- Pai, pára

Uma garrafa de Água das Pedras, num café habitual da Tocha, trouxe algum alívio e permitiu o resto da viagem sem novas paragens. O cházinho da mamã haveria de completar a cura.

Nunca mais comi língua, de vaca ou de qualquer outro animal. Ainda hoje me sinto agoniado só de pensar ... 

sábado, 7 de novembro de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

Mais um livro que, chegado há dois dias, já anda em bolandas da sala para o quarto, do escritório para o WC, numa vertigem que acabará daqui a pouco tempo, imagino. É uma viagem ao antes e ao depois da independência de Moçambique, com a habitual qualidade de um grande autor - Mia Couto - que, há já muito tempo, detém um espaço importante cá em casa.

(...) Vou confessar uma coisa, senhor inspector: esse Sandro vinha muitas vezes confidenciar com as minhas filhas. Não gosto muito daquilo, o bairro comenta, o meu marido chateia-se e eu, francamente, tenho receio que a doença dele seja contagiosa e passe para as meninas e lá acabo por ficar sem netos. Um certo dia surpreendi Sandro fechado com o Jerónimo na cubata do empregado. Pensei logo numa coisa escabrosa. Escutei atrás da porta, os tipos conversavam em voz abafada. Mas depois lá concluí que falavam de política, inspector. E não era coisa boa. A conversa deles era pior do que um pecado da carne, está-me a entender, senhor inspector?

Talvez seja útil o senhor interrogar o meu empregado, o Jerónimo. Mas o inspector terá que vir amanhã durante o dia. É que ele não dorme aqui. Temos uma cubata nas traseiras, mas usamo-la como armazém. Não quero nenhum empregado dentro de casa depois do sol posto. A gente nunca sabe quem eles são e que companhias podem trazer a meio da noite. Nas tardes em que o trabalho se prolonga, este meu Jerónimo suplica que o deixemos dormir num canto qualquer. Tem medo de cruzar a cidade à noite. A caderneta indígena não o livra de ser apanhado pela polícia, nas rusgas noturnas. Diz que, se isso acontecer, o prendem e lhe batem. Resultado: o rapazito acaba dormindo no galinheiro. Toma banho de madrugada para não cheirar nem a catinga nem a estrume. Mas lava-se na praia, nas águas do mar. Não quero que nos gaste a água, esta malta não tem noção do que custam as coisas, para eles é só abrir a torneira. E o Jerónimo até prefere assim, pois diz que, no mar, se lava da sujidade do corpo e dos demónios da alma.(...)

O Mapeador de Ausências
Mia Couto
Caminho(Out.2020)

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Covil ?

São estranhos, confusos, os tempos que estamos a viver. A pandemia mantém-se com números a aumentar diariamente, preocupando todos os que, mesmo não dominando quaisquer variáveis, têm a consciência de que os recursos não são ilimitados e que, a continuar assim, chegará a hora da ruptura.

Nos USA assiste-se a uma caricata demora na contagem dos votos, que há-de determinar quem se sentará na Casa Branca no início de 2021. O (ainda) presidente fala em fraudes de uma forma tão descarada e despudorada que as televisões lhe "cortam o pio", por não estarem disponíveis para difundir mentiras.

Nos Açores também se aguarda que as eleições regionais produzam um novo governo, parecendo não estar a ser fácil um acordo quer à direita quer à esquerda que permita a condução de uma terra tão bonita.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Diplomacia

Está em análise a possibilidade de Trump fazer um curso intensivo para aprender a contar até dez. O governo português foi contactado para fazer deslocar aos USA uma professora primária, das mais competentes que por cá existam, com o objectivo de, tão breve quanto possível mas nunca depois de Dezembro deste ano, pôr o Donald a contar de forma escorreita, mesmo que, para isso, necessite de utilizar os dedos das mãos.

Contudo, parece que a Melanie estará a colocar alguns entraves ciumentos e o próprio também não se apresenta de acordo com a decisão dos serviços secretos, principalmente por o curso lhe poder exigir a utilização dos dedos das mãos e isso o impedir de alisar as louras melenas. Este argumento, considerado muito importante, está a obrigar a uma mais exigente ponderação, por Trump considerar que a utilização dos dedos para compor o cabelo é obrigatória para manter a sua imagem de mais apessoado exemplar da espécie humana.

Para dirimir o diferendo, não está excluída a hipótese de recurso ao Supremo Tribunal, com o argumento de que a Constituição dos USA não impõe, explicitamente, que o Presidente do país saiba contar até dez ...

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Meteorologia

A meteorologia sempre foi, e continua a ser, uma ciência que assenta nas previsões e na análise das probabilidades, mantendo a esperança de ajuizar, de forma correcta, os imponderáveis que irão surgir.

Muitas vezes prevê chuva e, afinal, nem sequer surge um aguaceirito para regar as plantas; outras há em que faz avisos de três cores - amarelo, laranja e vermelho - sobre o vento forte que se aproxima, com rajadas ou sem elas, e com velocidades acima das que, legalmente, estão autorizadas para as localidades. 

Deve ser muito difícil estudar esta matéria e apresentar resultados que antecipem as realidades que irão ocorrer em todo o mundo. Todavia, há alterações no tempo que se adivinham e nem é preciso consultar o IPMA ou as aplicações disponíveis no telemóvel. O tempo está cheio de nuvens covidianas e, do lado de lá do Atlântico, há fortes indícios de que o sol irá continuar muito encoberto.

Cá ficaremos à espera de que sejam só previsões e que o tempo melhore ...

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Nadar

Decorridos oito meses e ainda com muitos receios, voltei hoje à piscina para dar umas braçadas. Ao contrário do que se poderia esperar depois de tão longa ausência, ainda sei nadar e não me afoguei.

O corpo sentiu-se bem, sem dores nem grandes cansaços. Amanhã se verá o resultado do esforço, com as réplicas que o dia seguinte, e o outro, sempre trazem. 

Foi um regresso, confuso, à normalidade, com regras cumpridas, para que tudo corra bem. Pouca gente, distância social, a conversa limitada a um bom dia de longe, máscara quase até à água, entrada à hora, saída a correr, vestir a correr e o cabelo molhado, para enxugar em casa.

Boa notícia: consta que o coronavírus não sabe nadar, yo ...

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Visto e revisto

Estão os três "confinados" à mesa da esplanada. Fazem-lhe companhia dois cães, pequenos, a quem admoestam com frequência. Em cima da mesa estão, invariavelmente, três garrafas de cerveja, que vão sendo despejadas sem dificuldade e sem necessidade de copos. A manhã vai a meio. Conversam alto, embora o que dizem seja imperceptível para quem passa. Da voz, entaramelada pelo álcool e por outras substâncias, apenas se percebe, mal, os inúmeros "bué" e "tipo", que estão sempre a servir de muleta. 

Ela é a leader. Determina, manda, enerva-se. Dos três é a mais velha. Terá talvez 50 anos, julgo. Nasceu num bom berço mas perdeu-se, ou achou-se, quem sou eu para julgar. Por vezes, o trio ausenta-se durante uns tempos. Talvez o (pouco) dinheiro que devem ter desapareça. E o café vende cervejas, não as dá.

Raramente se vêem a comer. Alimentam-se da cerveja e do resto ...

domingo, 1 de novembro de 2020

Apetrechos

Guarda o que não presta e encontrarás o que te é preciso.

No poupar é que está o ganho.

Quem não inventa não é artista.


Tudo Reutilizado. Por este cesto já devem ter passado uns bons quilos de berbigão da lagoa, mantidos à tona por duas excelentes bóias.