domingo, 28 de fevereiro de 2021

Sismo 1969

Não sou muito dado a efemérides. Os jornais e as televisões encarregam-se de nos trazer à lembrança coisas que, aos olhos de muitos, aconteceram há imenso tempo e das quais já poucos se lembrarão. A mim, parece que foi ontem ...

Ainda não tinha feito 17 anos e estava a dormir em casa, com apenas a minha mãe por companhia. O meu pai teria saído há pouco para o trabalho - começava bem cedo, quando a noite ainda estava no auge - e a minha irmã estava pela capital do distrito, a estudar. Só regressava ao fim-de-semana e aquela noite de 28 de Fevereiro de 1969 marcava o início de uma sexta-feira. Já não recordo bem a hora em que o sismo se deu, mas deverá ter sido por volta das quatro da manhã. O sono era profundo e a minha mãe abanou-me bastante para me acordar. Ainda ouvi os copos a tilintarem no armário da louça e vi a aflição dela, a gritar para sairmos, que a casa podia cair.

Viemos até à porta. Havia vizinhos aflitos, com medo, mas nenhuma casa tinha caído e não havia outros estragos. O susto foi grande. Dele restou um efeito: ainda hoje acordo sem dificuldade nenhuma e sem rabujice.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Magnólia

A Primavera está a chegar e o Inverno, que tanto nos tem torturado, parece finalmente disposto a partir, e a dar-nos possibilidade de voltarmos a ver o Sol e a rua, sem grandes receios mas com as cautelas que se impõem e, tudo o indica, vieram para ficar. 

A magnólia, que foi retirada do vaso já moribunda, adaptou-se ao espaço amplo, no meio da relva, renasceu e já floriu.

Por vezes o conforto não garante o bem-estar e liberdade rima sempre com felicidade, por pouca que seja. Foi o que aconteceu à magnólia: confinada ao espaço de um vaso, feneceu e manifestou claramente intenção de partir. O vaso dava-lhe algum espaço e conforto mas ela queria a liberdade, sem muros, para mostrar a sua graça, o seu contentamento e ... a mosca que dela muito gosta.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Palavras bonitas

CIRCULAMOS EMBOLSADOS

Circulamos embolsados
em automóveis de luxo

Nas portas surdas
os fechos
são linhas a níquel a traçar o limite
dos peões ocasionais

O espaldar desune
anula o solavanco
reduz a área exposta

Esguichos lavam
pára-brisas que a gargalhada abaula
Clareiam as estradas

Só o retrovisor
lembra o caminho andado
a um olho reflectindo
de quem guia

Trémulo o chassis
pressagia
as roturas
os sulcos dos freios
a divulgação do desastre

Mas real e criada
no bolso de Picasso
uma pomba de bico florido
suja por inocência os tejadilhos

A noite dividida
Sebastião Alba

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Tempos novos

Desde há um ano que vivemos tempos novos, inclementes para muitos, dificílimos e estranhos para todos. O malfadado bicho e as suas variantes têm azucrinado a vida, provocado nervosismo, aumentado a miséria, impedido os contactos, a diversão e o lazer, o descanso e o convívio, para além do trabalho da grande maioria.

A situação que temos vivido é inédita para as actuais gerações, sem qualquer semelhança com os ecos da guerra civil espanhola, a fome e as restrições da segunda grande guerra, a violência da ditadura e os tormentos da guerra colonial.

Apesar disso, numa altura em que o bom senso devia prevalecer e a união na diversidade de opiniões deveria estar sempre presente e ser obrigação de todos, assiste-se a um conjunto de barbaridades ditas, muitas vezes, por gente que deveria estar calada. Proliferam pelas redes ditas sociais "notícias" e "comentários" de arrepiar, algumas vezes com aproximações à verdade mas, na maior parte, com redondas mentiras e invenções.

Dir-se-á: é o produto do progresso e da evolução tecnológica! Não é nada! É o espalhar da burrice, da grosseria, da malcriadice, da insensatez, de muitos que, se estivessem "olhos nos "olhos", ficariam caladinhos a acenar a cabecinha e de "rabinho entre as pernas". 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Teatro

Apesar de continuar confinado no Oeste profundo, a dois passos do Atlântico e, longe, longe, da civilização que se desenrola pelos lados da capital, sob a supervisão do Marquês lá do seu alto "leonino", ontem fui ao teatro. 

Sem sair de casa, cumpridor que sou da lei e das recomendações, desloquei-me à secretária, liguei o computador - também podia ser no IPad ou no telemóvel, mas o conforto não seria o mesmo -, "abri" o Teatro D. Maria II, comprei o bilhete e assisti a um excelente espectáculo, de mais de três horas, com um pequeno intervalo quando eu o determinei.

A peça chama-se ÚLTIMA HORA, tem texto de Rui Cardoso Martins, encenação de Gonçalo Amorim e interpretação soberba de todos os actores, com destaque para José Neves, Maria Rueff e Miguel Guilherme. Aborda o tema do fim dos jornais "a sério", em época de redes sociais e de notícias de "sangue".

Vale a pena. O bilhete custa apenas 3,00 Euros, sim, não me enganei, 3,00 €, e a peça estará em cena até ao dia 26 deste mês.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Corrupção ou solidariedade

Um homem alto, espadaúdo, bem falante, capaz de manter uma conversa escorreita, quando não estava de serviço. Fardado, era intratável, roçando sempre a arrogância e a malcriadice. Agente da PVT, acrónimo de Polícia de Viação e Trânsito, designação oficial, à época, da autoridade a quem competia a fiscalização do trânsito e a aplicação das multas por excesso de velocidade, por peso a mais, por deficiente arrumação das mercadorias, e por muitas outras infracções, algumas "inventadas" à última da hora, para justificar o serviço e o "papelinho".

O posto dos "Provadores de Vinho Tinto", como eram conhecidos na gíria, funcionava à saída da cidade (ou à entrada, para quem vinha do sul), era dotado de uma balança de pesados e estava quase sempre aberto, mesmo a horas fora do comum. Paralelamente, havia agentes a deslocarem-se de mota, na procura de infracções protagonizadas por condutores que utilizavam outros caminhos que não os que passavam pelo posto. Muitas vezes, os veículos de mercadorias apanhados "por aí", eram obrigados a vir "à balança" por suspeitas de peso a mais, só possível de confirmação no tal equipamento situado nas traseiras do redondo edifício.

As empresas, ou melhor, os patrões, na linguagem comum à época, tinham receio da PVT  e procuravam ter com eles as melhores relações, distribuindo lembranças regularmente, em espécie ou mesmo em dinheiro vivo. Por vezes, eles apareciam, à civil, para cumprimentar e, com esse cumprimento, se fazerem notados e lembrados. Era sinal de que o abastecimento não tinha acontecido ou o gasto havia sido demasiado e era necessário reforçar o stock.

- Não precisa de nada? Uma caixinha branco, ou é melhor tinto?

- Já que insiste, pode ser uma de cada.

Daquela vez, o assunto era complicado, via-se bem, e a conversa tinha de ser com o patrão. Havia algum nervosismo, o que não era nada costume. O encontro foi proporcionado e a conversa deu-se.

- Sabe, decidi construir uma "barraquita" e, como o ordenado é pouco, conto com a ajuda dos amigos.

- E como posso eu ajudar? De que é que precisa mais?

- Tudo. Cimento, areia, madeira, tijolo, fretes, o que lhe for possível. Tudo faz jeito.

A "barraquita" ainda hoje existe, com um jardim frondoso à frente e um terreno extenso, nas traseiras. A "olho", deve ter mais de duzentos metros quadrados e desenvolve-se em dois pisos. Uma "barraquita" ...

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Venda directa

- Boa tarde. Estou a falar com o senhor F...?

Sim, sou eu.

- O meu nome é S... e estou a ligar-lhe para lhe dar a conhecer um nosso novo produto de saúde. Antes de continuar, devo dizer-lhe que a chamada irá ser gravada. Autoriza?

- Não percebo a necessidade. Se só me vai dar a conhecer um novo produto para a minha saúde, qual é a necessidade de gravar a chamada?

Alguma atrapalhação, mas recompõe-se de imediato.

- Não somos nós que queremos. É a lei!

- Mas isso só é obrigatório se houver algum contrato, não é verdade?

- Pois, mas eu, para continuar a nossa conversa, tenho de ter a sua autorização para gravar.

- Não vale a pena. Não se incomode. Não estou interessado, obrigado.

Desligado o telefone, dou por mim a pensar:

- Como obtiveram o meu número de telefone, identificado com o nome e, quem sabe, pela idade e talvez até com a morada?

- A chamada é gravada e substitui o contrato. Para os dois lados?

A complicação é minha, velho embirrento. As autoridades reguladoras conhecem perfeitamente estas empresas, fiscalizam-nas e conhecem bem as condições de venda de cada uma, verificando as condições contratuais e não permitindo que haja violações das leis em vigor.

Sonhos. A melhor solução é o cliente assinar um contrato de muitas páginas e letras pequeninas, que ninguém lê, ou, melhor ainda, que diga sim a tudo incluindo à gravação da chamada, para memória futura ... da vendedora. 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Guerra colonial

Pertenço a uma geração que cumpriu o serviço militar obrigatório. No meu caso, entrei no tempo da "outra senhora" e por lá andava no dia 25 de Abril de 1974. Esse privilégio foi e é meu, só meu, egoisticamente meu.  É muito difícil partilhar o sentimento, a alegria, a esperança, que uma luzinha tinha acendido um ano antes, quando, no Regimento da minha cidade, fui "dactilógrafo", ao fim de semana, dos escritos do meu comandante de companhia. Mas, como dizia o outro (ou seria a outra?), isso agora não vem ao caso. Surgiu a talhe de foice e serve apenas para deixar claro que foi esse dia inesquecível, em que "festejei" os meus 22 anos, que evitou a minha ida para a guerra ... ou para outro lado.

A morte de Marcelino da Mata que, ao que parece, é o militar mais condecorado das Forças Armadas, desencadeou escritos, opiniões, artigos, entrevistas, conversas de gente de todos os quadrantes, muita dela sem qualquer autoridade e conhecimento para falar sobre assunto tão melindroso e tão sensível. 

A guerra colonial não é assunto tabu. Pode e deve ser discutido, analisado e compreendido por todos, sem borrachas ou parênteses, todavia apenas no âmbito global, por respeito a todos os que por lá passaram, de um lado e do outro. Os exércitos em confronto eram constituídos por pessoas, que faziam parte de equipas e raramente estavam sós. A atribuição de actos a pessoas concretas e a recordação deles, com pormenores e alguns "pormaiores", pode criar, e cria, problemas à memória de todos os que, contrariados, obrigados ou até voluntariados, por lá passaram durante dois anos (às vezes mais), sem telemóvel, sem internet, sem qualquer contacto com a família e os amigos que não fossem as "epístolas" escritas nos aerogramas, conhecidos como "bate-estradas". 

Ainda há, felizmente, muita gente viva que deu tiros e sofreu emboscadas, rebentou minas ou colocou-as, que talvez tenha matado para não morrer, que cumpriu ordens ou foi obrigada, que contestou ou se submeteu, que desertou ou aguentou até ao fim. Essa gente, anónima, não merece nem precisa de ver e ouvir desenterrar um passado que não se pode nem se deve apagar, mas do qual se dispensa a individualização e muito menos a criminalização. Muitos houve que por lá ficaram, sem direito, sequer, a voltarem às suas origens e com a homenagem, apenas, dos seus camaradas.

Tenho amigos e familiares que, tantos anos passados, ainda preferem o silêncio ao comentário sobre o que sofreram, o que fizeram, o que viveram, o que sentiram e os sonhos que, por vezes, ainda os acordam. Muitos, a grande maioria, saiu do país pela primeira vez, no Santa Maria ou no Niassa, no Príncipe Perfeito ou no Infante D. Henrique, depois de cerca de seis meses de instrução duríssima, durante os quais estava sempre presente o aviso de que o objectivo era rumar a dois anos de "degredo", com "bilhete" garantido de ida e com grandes dúvidas sobre a volta.

Meninos, não brinquem com coisas sérias! No próximo século, a história se encarregará de nomear os "Vasco da Gama", os "Gil Eanes" e os "Afonso de Albuquerque". Por agora, deixem-nos ficar sossegados. Não é preciso activar memórias, que estão frescas em todos os que viveram esses tempos.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Tempo

Parece que o Inverno se está a sentir bem e não quer ir embora. Feitios ...

A chuva cai, persistente, sem respeito por ninguém, nem sequer pelas flores, coitadas, ali no jardim sem amparo ou protecção, nem um pequeno telhado que as abrigue. E, tomando como certo o conteúdo da mensagem da Protecção Civil, ainda vão sofrer mais, por se prever um agravamento do estado do tempo e uma eventual ocorrência de cheias, sempre de acordo com o SMS oficial.

Perante isto, não há nada a fazer a não ser o confinamento total. Nem caminhada higiénica, nem ida ao supermercado ou à mercearia, quando muito um saltinho lá fora, resguardado pelo alpendre.

Vai pr'á barraca, Mimoso ... segue o conselho que Martinho da Vila deu em 1974 e se mantém actual e intergeracional. A minha filha mandou-mo hoje, por uma das vias de contacto possíveis para confinados.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Egoísmo

Nas notícias que abundam sobre o coronavírus, normalmente "abrilhantadas" com grandes filmes de agulhas e seringas e/ou fotografias do acto de inocular o antídoto para o malfadado bicho, soube-se que haverá um clube, lá para o distante Dubai, que garante aos seus associados(?) as duas doses da vacina em troca de uma estadia de, pelo menos, três semanas em ambiente de lazer e de luxo. Para pertencer ao dito clube é necessário pagar uma quota anual, quase simbólica, de cerca de 20.000 € por ano, a que acrescerá o custo das férias paradisíacas. Face a um custo tão irrelevante, a procura deve ser imensa, da Europa aos Estados Unidos, do Brasil ao Quénia, do México às Filipinas, do Iraque a Moçambique, das favelas aos bairros de lata, de novos ou velhos, doentes ou saudáveis.

O ser humano no seu melhor, no sublimar do egoísmo, na ideia confirmada de que o dinheiro tudo consegue, que os princípios são coisas da ralé, que o desrespeito só existe quando sou eu a vítima, e que só sendo parvo não se consegue usufruir disto. A esperteza é uma qualidade adquirida com grandes sacrifícios, que poucos conseguem cultivar e menos ainda colher ...

Nesta época de guerra, quando a solidariedade e a colaboração deveriam ser presença assídua nas relações entre pessoas e países, a sociedade do "safe-se quem puder" cavalga, cultiva e colhe frutos muito rapidamente. Deve ser do adubo a que se acede desde pequeno ...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Servos

Telefonava sempre a dizer quando vinha, a que horas vinha e ao que vinha. Era uma cliente antiga, solteira, obesa, já entrada na idade, e com óculos "fundo de garrafa". Tinha propriedades agrícolas na região, que explorava directamente e uma pequena parte que arrendava a pequenos produtores. Fazia questão de se afirmar agricultora e os olhos riam-se por debaixo dos óculos sempre que alguém manifestava apreço pela actividade.

Chegava de táxi, entrava e dirigia-se de imediato ao gabinete, sabendo que a "sala" lhe estava reservada. Era pontualíssima. O motorista acompanhava-a até à entrada, depois de lhe abrir a porta, de seguida ia arrumar o carro e voltava, ficando no balcão até receber o recado de algum de nós, transmitindo que a senhora estava despachada e podia ir buscar a viatura.

Vinha ao banco, normalmente, de quinze em quinze dias. Fazia depósitos, controlava as contas a prazo e os movimentos à ordem, levantava dinheiro quando necessitava e sempre a quantia que tinha referido na véspera. Tratava toda a gente por "tu", com excepção do gerente.

O cheque para levantar já vinha preenchido, mas a assinatura era feita no momento.

- Diz lá ao caixa que quero notas pequenas, de 50 e de 100, e um pacote de moedas de 5$00. E olha que não quero notas novas. É para pagar aos servos ...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A voar

"Quarta passada, semana acabada".

Frase muito dita e ouvida nos tempos do trabalho, para transmitir que a não concretização das tarefas, em tempo útil, traz como consequência o atraso, e que a preocupação deve ser sempre o "não guardes para amanhã o que podes fazer hoje".

Agora, o significado da frase alterou-se radicalmente:

- Já é quarta-feira. Mais uma semana a acabar ...

O tempo voa, propulsionado por motores potentíssimos e sem dar oportunidade de escolha do itinerário. Ainda ontem começou o ano e já estamos quase na Páscoa. Daqui a pouco é noite, o escuro entorpece os músculos, a televisão cansa o cérebro, os livros não resolvem tudo ... mas ajudam muito. Está na hora de fechar os estores, desligar do mundo da rua e ligar o alarme. As mesmas notícias, as mesmas rotinas e, mal se fecham os olhos, já é quinta-feira, o mês está a chegar ao fim e tudo fica na mesma: "nem o pai vem nem a gente almoça".

Apesar de alguns sinais de abrandamento, o malfadado bicho parece sentir-se bem com o clima e com as pessoas. Se fosse educado e compincha, podia apanhar uma boleia de uma qualquer sonda das que por aí navegam e ia para Marte, de férias ... definitivas.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Carnaval

A ideia era ir a Veneza, depois planeou-se Rio de Janeiro, a seguir ponderou-se Sesimbra e, à cautela, pensou-se também na Mealhada, ou Ovar, ou Estarreja. E um salto ao Algarve? O tempo estará melhor e o Carnaval também é muito divertido por lá. Não, Carnaval a sério é em Torres Vedras e até é perto e bom caminho. Tantas hipóteses e, afinal, todo o planeamento foi por água abaixo. Não há Carnaval ... em lado nenhum.

A Foz é sempre uma caixinha de surpresas, de Verão ou de Inverno, com sol ou nevoeiro, com vírus ou sem ele (para quando?). Violando um pouco as regras, a voltinha higiénica foi até lá, com máscara, pela borda da Lagoa, sem encontros pessoais ou policiais, mas com uma descoberta: o dono do barco será, pelo menos, sexagenário. Não lhe perguntei por não o ter visto, mas é fácil adivinhar. Só gente dessa idade se lembrará da artista, alguns ainda dela recordarão canções e poucos se lembrarão das sardas. Hoje, septuagenária, talvez já as não tenha, que a maquilhagem faz milagres e os anos, acentuando muitas coisas, disfarçam outras. A música, essa, já quase ninguém ouve, mas o nome ainda domina a pesca na Lagoa.




segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Sonhos

Cada vez convivo mais com sonhos. Não aqueles que se têm acordado - esses são de tempos passados - mas os que fazem companhia ao descanso, criando cenários inverosímeis, tarefas incongruentes, viagens fantasmagóricas. Quando acordo, normalmente lembro-me do que aconteceu, verifico o que a mente me mostra e fico perante uma chusma de disparates, sem qualquer nexo, ordem ou razoabilidade. Fui procurar saber os contactos e a morada de Sigmund Freud mas, até ao momento, nem Google, nem Facebook nem Instagram me deram quaisquer notícias  de como lhe chegar, muito embora todos o conheçam e sobre ele falem muito. Vou persistindo e talvez a sorte um dia me chegue, mesmo que aconteça daqui a muitos anos. É sempre tempo de aprender e de ouvir explicações, por mais irracional que pareça o tema.

Nesta noite sonhei que tinha ido à Medicina no Trabalho. Que coisa mais estúpida! A Medicina está toda dedicada ao Corona e o Trabalho já não me perturba nem me tira o sono. Estava a trabalhar , vejam bem, na Baixa de Lisboa e a consulta era no Largo do Calhariz. Dei por mim no carro, a subir a Rua do Alecrim. Em branco ficou o sítio onde a viatura estaria estacionada e o percurso feito até ali. Não cortei à esquerda, para a Rua do Loreto, nem olhei para o Camões e muito menos para o Chiado, vi de relance o cauteleiro da Misericórdia, e cheguei ao Príncipe Real. Parei junto ao pequeno mercado que por lá se faz aos sábados, de manhã, mas não consegui lugar para estacionar.  Os legumes biológicos ficaram para os clientes reais, até porque só era sábado no sonho. Percorri a Rua da Escola Politécnica, devagar e com alguns sobressaltos, e cheguei ao Rato. Virei à esquerda e, num abrir e fechar de olhos, já estava no Jardim da Estrela. 

De novo uma branca no caminho e eis que me apanho estacionado no Largo do Calhariz, onde é proibido parar, quanto mais estacionar. Mas foi lá que estacionei o carrinho, fechei a porta e depois me dirigi ao edifício alaranjado, enorme, onde iniciei, há muitos, muitos anos, a minha actividade na banca. As grandes portas estavam abertas e havia um segurança sentado à secretária, com um computador virado de costas para mim. Identifiquei-me, disse ao que vinha, aguardei o tempo da consulta no computador e ouvi:

- Tem aqui 250,00 € de multa para pagar. Devia ter vindo de manhã, para fazer o electrocardiograma e as análises.

- Mas ninguém me disse ...

- E era preciso? Não está farto de fazer isto? Tem de pagar e pronto!

- Olhe, vá receber ao Totta, retorqui de imediato e ... acordei!

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Lascarino

Era "rodas baixas", de olhos azuis, felinos. Nunca parava quieto e o seu lugar era sempre o pior, sendo o melhor o do outro. Ninguém lhe reconhecia o valor e esse valor era imenso. Irrequieto, perguntava tudo a todos, para não perder nada e impedir que alguma coisa lhe escapasse, por ínfima que fosse. 

Preocupava-se se o chefe não dizia nada, ralava-se se chamava a atenção, comentava "entre dentes" se falava para todos. "Cusco", como convém aos "leva e traz", era descarado a perguntar e conciso na pergunta. A resposta, ele se encarregaria de apimentar e de florear, acrescentando na transmissão a sua verve, o seu parecer, sempre acompanhado do seu pedido ao interlocutor para que não dissesse nada a ninguém. "É segredo!".

Sabia tudo e, quando não sabia, inventava. A única coisa que, verdadeiramente, o preocupava, era a certeza de que os outros o consideravam a única fonte do conhecimento dos bastidores, das cusquices, dos enredos, do que aí vinha, do que já não viria, de tudo e de nada.

A sua propensão para transportar e transmitir era utilizada por quem, antes de tomar decisões, queria saber o que pensavam os destinatários. E ele fazia-o na perfeição, saltando e correndo para que não houvesse ninguém fora do inquérito, sem nunca se esquecer de referir o carácter secreto da pergunta e o arquivamento tumular da resposta.

Um lascarino, diria a minha mãe.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

O Largo

Não há ninguém sentado nos bancos. Todos têm uma fita vermelha e branca, para marcar a proibição e a impossibilidade de, sequer, descansar as pernas. Passam despercebidos ou já ninguém lhes liga, nem sequer os dois ou três cães que por ali vagueiam.

A churrasqueira terá dez/doze clientes a aguardar o franguinho, dispersos, com a distância social e a máscara (ou máscaras) bem colocada. Quem chega, retira a senha do dispensador e aguarda que, através da instalação sonora, gritem o número que possui. No silêncio, o som do chamamento soa mal, roufenho, perturba. Leva a outras paragens, imaginadas, de feiras e romarias, de cobertores e peúgas, de carrosséis e pistas, do poço da morte ao circo. É uma boa maneira de manter os clientes afastados uns dos outros e os chicos-espertos longe. As conversas não acontecem. Cada um vive consigo e quanto mais longe, melhor.

Dos três cafés, apenas um está aberto e só até às 13 horas. Não vende a bebida que lhe dá o nome nem outra qualquer. Vende pão, sopa, jornais, tabaco, raspadinhas e toda a parafernália de jogos da Santa Casa. Tem a fila tradicional, com apenas duas pessoas a aguardar o gong que indica a permissão de entrar. Apenas uma pessoa no estabelecimento, lê-se no cartaz da montra, que também indica o uso obrigatório de máscara. Dos quatro empregados, apenas um está ao serviço e acompanha o dono, no (pouco) trabalho que há para fazer. Apenas, apenas, a penas que não se vêem ...

- É só para manter a chama. Não dá para a luz.

Trago a sopa, encomendada a meio da manhã quando fui buscar o Expresso e trouxe pão. Para manter a chama do óptimo café que lá bebia.

Quando voltará?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Escrita de ouro, que exige redobrada atenção e ... dicionário à mão.

(...) Hipólita herdara bem aquele orgulho da humildade, que se repercutia em toda a sua corte de caseiras e mulheres de recados para quem uma blusa nova era má recomendação, a não ser que se tratasse de festa pascal ou dia de noivado. No Domingo de Páscoa, Hipólita contemplava as suas afilhadas, que eram numerosas, com cortes de chita para que elas próprias executassem blusas, e não esquecia nunca de elogiar o feio resultado, uma espécie de camisões floridos copiados de modas antiquadas.

É certo que em casas como a de Arnaldo Conceição, por exemplo, ninguém se vestia por padrões modernos; e quando suas tias, ainda mulheres novas, apareciam na missa, parecia que o circo estava na aldeia, tanto elas se mostravam completamente ridículas com os seus "corsages" de Verão de organdi com fitas de veludo preto e que tinham sido elegantes quarenta anos atrás. Mas mesmo Rosamaria tinha com ela essa desenvoltura patronal que convida a imitar o que se tem por virtude, incluindo o que a virtude tem de belicoso. As coisas só eram um pouco diferentes com o ramo da família que se aparentara com estrangeiros, com o conde de Wiesel mais exactamente, e que produzira uma geração de gente elegante, "blasée", como Camila Wiesel e César, e Alice, todos estranhos às origens da Casa de Cales. Tinham propriedades bastante importantes que conservavam por uma espécie de humor veneziano ou florentino e que mantinham a peso de ouro. Esses Wiesel eram vistos como exemplo de desordem, mas, ao todo, concediam-lhes um mérito heráldico substancial, porque todo o grande nome tem necessidade da sua excentricidade e mesmo da sua mancha, para assegurar a grandeza que nem só a boa reputação fomenta.

Não se sabe até que ponto a pomposa honestidade dos Alba Pereira se tornou para José uma causa de íntima exasperação. Quando Rosamaria lhe escrevia (cartas que ele adivinhava serem ditadas por qualquer dos amigos comuns, dissidentes da primeira aura política), ele sentia uma extraordinária revolta. Como se uma espécie de traição fosse visível naquele estilo epistolar um pouco balofo e, sobretudo, desusado em Rosamaria. Parecia que ela compunha aquelas cartas como se fosse música sinfónica, orquestrando uma peça musical para um número certo de violas e contrabaixos.

- Para que me escreve ela? - perguntava José, irado. - Parece uma carpideira que deixa à porta da câmara-ardente os sapatos e o coração.

Os meninos de ouro
Agustina Bessa-Luís
Relógio d'Água 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

E se?

E se chove? E se está muito trânsito? E se chegamos atrasados? E se está muita gente? E se não há bilhetes? E se ... E se ..., só desculpas de mau pagador, como diria o outro.

O "malvado" reflexo condiciona tudo e todos e é cada vez mais utilizado para salvaguardar as imponderabilidades que sempre acontecem e as incertezas que, cada vez mais, se acentuam. Também serve para salvaguardar a incompetência ou a pouca atenção dada a um assunto. Isto só não acontecerá se surgir algum imprevisto ...

A economia portuguesa vai crescer este ano menos do que estava previsto. O cenário pode agravar-se se a pandemia continuar, se o turismo não regressar, se o investimento público não acontecer, se ...

E se não se fizessem previsões? Viria mal ao mundo? Fariam falta? Claro que sim! É importante pensar sobre o futuro, sobre o que acontecerá se as premissas de hoje se mantiverem, se não houver nada que altere a situação actual. Mas apresentar previsões como verdades absolutas que depois são desmentidas, não parece racional. E, na maior parte das vezes, com aquele ar enfático de certezas tão evidentes e tão óbvias que, se não acontecer assim, foi por alguma coisa do outro mundo o ter impedido e nunca por deficiente análise de quem debitou o arrazoado. 

São sempre as circunstâncias que, variando, alteraram aquilo que era um trabalho de ciência certa, não passível de discussão nem de dúvida. Se alguém adivinhasse que ia acontecer, outro galo cantaria ...

"O programa pode ser alterado por qualquer motivo imprevisto"

ou, adaptando, talvez seja melhor dizer que "O imprevisto pode ser programa por qualquer motivo alterado".

E se chove?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Passeio confinado

Ainda voltaremos a ter uma cidade agradável, apetecível, espaçosa, arrumada e aberta? 

As obras nas ruas circundantes continuam e parecem trazer alguma coisa mais do que a simples substituição das canalizações. Um pouco mais abaixo, começou a ser delineado o que irá ser um espaço de lazer, que ligará a zona habitacional à zona desportiva, sem "arranha-céus" pelo meio, permitindo que toda a gente possa por ali andar, correr, brincar, desfrutar.

Por enquanto ainda está só no início, lento como convém, e pouco mais tem que os caminhos principais abertos e cobertos de saibro. Já convida a passear e, nesta altura em que as saídas se devem circunscrever aos espaços em volta do local da habitação, sabe bem poder passear por perto e em espaço agradável.

Veremos se fica concluído antes das autárquicas ...

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

A seringa e a agulha

Vivem as duas, bem juntinhas, naquele minúsculo "apartamento" de vácuo, que ocupam desde a saída da fábrica, sem pagar qualquer renda. A seringa exibe um largo sorriso de boa disposição e contentamento, enquanto a agulha está sisuda, com cara de poucos amigos, mostrando aquele ar aterrador de que todos lhe devem e ninguém lhe paga.

- Não tens outra cara? Eu, só de pensar que vou à televisão, nem consigo dormir! Que excitação!

- Qual é o interesse? As minha antepassadas ensinaram-me que devia ser discreta, segura, que estava destinada a salvar uma vida ou, pelo menos, a contribuir para isso. Já não é como no tempo delas, que eram fervidas a cada utilização e duravam imenso. Agora, somos descartáveis e, à primeira utilização, lixo. Mas, ainda assim, prefiro a discrição ao exibicionismo.

- Tens de ver o lado positivo. Agora temos protagonismo, notícias, fotografias, televisões, a toda a hora. Somos vedetas, mais do que artistas, colocam-nos à frente de quem fala, várias vezes, para que sejamos bem vistas. Se eu fosse invejosa, que não sou, dir-te-ia que ocupas o espaço quase todo, sempre a entrar nos braços deste e daquele, do Presidente ao mais humilde idoso, nome que agora é dado aos velhos, enquanto eu apenas apareço de forma fugaz e sempre atrás de ti.

- Não concordo nada contigo. Qual é o interesse que tem essa exibição? Acaso cumprimos melhor a nossa função? Porque razão a agulha há-de ser notícia exibicional? E o acto de picar? Mostrado, filmado, fotografado, para quê? O que adianta?

 - Assim, toda a gente nos vê e nos aprecia a elegância. Gostava tanto de ser agulha, para ter a câmara a mostrar-me todinha ...

Encolheram-se sem chegar a acordo. O saco estava a ser aberto, iam ser retiradas e utilizadas, mas não havia luzes à volta.

Azar! Logo havia de ser hoje, que a televisão não veio!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Nada

A música francesa fez parte da minha adolescência, quando tudo vinha de Paris, até os meninos.

De Adamo a Aznavour, nessa época mais Bécaud do que Brel, passando por Françoise Hardy, Sylvie Vartan ou Mireille Mathieu, o romantismo a marcar os passos de dança e os outros. Em meados dos anos sessenta, os quatro de Liverpool chegaram e cilindraram tudo, até o corte de cabelo. Uma nova ordem de gosto, moderna e contestatária, acentuou o conflito de gerações, com divergências profundas e observações (im)pertinentes, como a de um professor de História que, com a desfaçatez própria de quem tudo sabe, comentava sobre os Beatles: "músicos eléctricos, desliga-se a ficha e pronto" .

O encanto pela música francesa, mesmo assim, manteve-se, e a diva Edith Piaf ainda hoje se ouve com muito agrado e actualidade.

Rien de Rien ...

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Tempo

Janeiro fora, cresce uma hora. E quem bem procurar, hora e meia há-de encontrar.

Nem o tempo ajuda!

Fevereiro já cumpriu um quarto do seu reinado, mais curto do que o dos seus onze irmãos e, neste ano, apenas com vinte e oito dias de vida, porque bissexto foi em 2020 e só volta a ser em 2024. Se dúvidas houver sobre a certeza desta verdade insofismável, é só consultar o Borda d'Água ou a Wikipédia. Está lá tudo!

De manhã, ainda deu para a voltinha higiénica - porque há-de chamar-se higiénica se nos faz transpirar -, que desentorpece os músculos e permite sentir o vento, fraco, na cara e a luz, cinzenta, nos olhos. Pessoas, muito poucas, mascaradas, com a pressa de andar, a desconfiança do olhar e a certeza do dever de afastar. Longe, longe, é a preocupação actual, não vá o diabo tecê-las. Quem vê caras não vê corações e muito menos o bicho, e cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

Acordada da sesta, parece que a ventania está a regressar e a ameaça da chuva mantém-se, para que o encerramento confinado não se torne tão arrasador e a obrigatoriedade "legal" seja esquecida ou, pelo menos, menosprezada.

Os dias estão cada vez maiores. De acordo com os especialistas e os números dos últimos dias, parece que o tempo está a melhorar. Oxalá não haja enganos nem retrocessos, e a Primavera traga um sol radioso, para nos deliciar e fortalecer, que bem precisamos.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

O Garoto

Estreou há 100 anos, no dia 06 de Fevereiro de 1921. Pode ser (re)visto aqui, integralmente, legendado em português e sem pagar bilhete.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Netos

Hoje é o dia do aniversário do meu neto mais novo. Cinco anos, alegria a rodos que não pode ser completamente extravasada, dadas as circunstâncias especiais em que (sobre)vivemos. Conversas, poucas e sempre distantes.

Daqui a uns anos, lembrar-se-á que, no dia do seu quinto aniversário, passou pela casa dos avós, numa "visita de médico", ouviu os parabéns mal cantados e recebeu uma prenda, dada por uns "mascarados" que o abraçaram, comedidos e receosos. Ainda mal começara e já a "festa" estava acabada.

Regresso à normalidade, anormal, que a chuva está a chegar e a casa é, em princípio, o único sítio que nos põe a salvo da dita ...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Teias

Fundiu-se uma das lâmpadas do quintal, aquela que só acende quando o escuro acontece e está destinada a dar luz à retaguarda da casa. É essencial que não sejamos egoístas e não queiramos a luz só para nós. Mesmo os visitantes nocturnos, que vêem bem de noite e nem sequer o escuro os atrapalha, e fazem do jardim o seu WC a céu aberto, merecem ser iluminados.

Os caracóis e as caracoletas, as aranhas e os aranhiços, as minhocas e os minhocos, as lesmas e os lesmas, são visitas nocturnas assíduas e também devem carecer de luz, para não se atrapalharem no trânsito. Não dão trabalho à mangueira e terão a sua utilidade no equilíbrio ecológico que, todos dizem, é fundamental para preservar o futuro do planeta.

De todos os referidos, as aranhas e os aranhiços são os que mais admiração me causam. Ao desmontar o candeeiro destruí, de forma involuntária, registe-se, duas teias que lá estavam montadas. A teia é uma obra de arte: apanha moscas e mosquitos, é tecida com grande precisão e tem uma resistência enorme. Não há chuva nem vento que a destrua, esteja nos cantos ou no meio das paredes. E se, por qualquer mão predadora, perde o poiso, procura pôr-se a salvo e arranjar lugar para, outra vez, tecer uma casa nova.

As teias da vida real são quase tão eficientes quanto as dos pequenos insectos, mas muito mais perigosas...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Dificuldades

O jacarandá habita o jardim há muito tempo e todos os anos se estica e alarga mais um bocado. Na época da floração dá uns cachos lindos, de um azul arroxeado ou de um roxo azulado, numa copa verde, frondosa e muito bonita.

No Inverno causa problemas. A ramagem torna-se castanha, ou será cinzenta, talvez preta (a minha dificuldade com as cores é cada vez maior) e as pequenas folhas caem pelo telhado, no quintal e, pior que tudo, no algeroz. Com a chuva, as pequenas folhas formam  uma massa pastosa, pegajosa, bem agarrada ao fundo, dificílima de retirar, mesmo utilizando a mangueira com grande pressão.

A solução era caminhar por cima do telhado, com uma qualquer ferramenta que ajudasse a retirar aquela massa pastosa e permitisse à água circular livremente até ao final. Foi isso que pensei fazer, procurando arranjar uma qualquer vassoura ou um pequeno piaçaba para me facilitar a vida.

Com tudo já planeado na mente, lembrei-me que a apólice de seguro de acidentes de trabalho (que não tenho) tem uma cláusula de exclusão que impede o beneficiário de voar sobre os ninhos de cucos e também caminhar sobre os telhados. 

Pensei melhor e resolvi não me aventurar, para não invadir o território dos meus amigos gatinhos e, fundamentalmente, para não arranjar problemas com a seguradora.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Método e organização

Há livros por vários sítios, mas já não há na mesa de cabeceira, ou melhor, aparece um só à noite. Numa transformação a que não é alheia a campanha de esclarecimento há muito encetada, o plural passou a singular. O último que por lá restava a aguardar vez, está a ser lido desde ontem e desloca-se a vários locais, regressando à base apenas na hora de recolher.

Acabaram-se os avisos, os sinais de enfado, porque ganham pó, não deixam limpar bem, a mesa de cabeceira não é sítio para livros, não chega a secretária, não bastam as estantes, há livros por todo o lado. E contra factos, não há argumentos, que a hora não é para contraditar.

Os que estão na fila, aguardam a sua vez na secretária, bem comportados, embora também não goste muito de os ver aqui, em monte. São os prioritários. Não têm a certeza se não serão ultrapassados, por nunca se saber se e quando o carteiro traz alguns novos, que se tornem mais urgentes. 

Todos serão vacinados, perdão, lidos. Assim o tempo me ajude e a vontade não me falte.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Prevaricar

Eu, prevaricador me confesso!

Não, não fui vacinado nem sequer meti uma cunha para me colocarem na lista dos prioritários. Prevariquei, é verdade mas, tal como nas vacinas, não tenho qualquer culpa do sucedido. A minha prevaricação não resulta de sobras de circunstância que, irremediavelmente, iriam para o lixo, mas sim de um acaso fortuito e de culpa alheia.

Eu conto: era necessário e urgente ir ao supermercado, por estarem em falta alguns artigos essenciais a um confinamento eficaz. As excepções prevêem essas carências e o "Ambrósio" disponibilizou-se para cumprir a sua função, folgado que estava e por saber que o carrinho tinha saudades de sair da garagem conduzido pelas mãos habituais e, vamos lá, meigas e eficientes. A viatura agradeceu, penhorada, mesmo não havendo "Ferrero Rocher". O livrinho fez companhia, enquanto se esperava quem de direito. Cumprida a primeira tarefa, ainda era preciso, afinal, passar pela farmácia para recolher uns medicamentos que lá aguardavam. Tudo dentro da legalidade e sem hipóteses de "confrontação" com a autoridade, mesmo que ela aparecesse. O "Ambrósio" concordou, a viatura também e a tarefa foi cumprida sem problemas, aproveitando a espera para mais umas páginas, poucas, que o atendimento fármaco foi rápido. 

Agora, sim, era empreender o regresso a casa e ao confinamento. Viatura a trabalhar, viagem de regresso iniciada e o inesperado, surpreendente e incontrolável aconteceu! Como é possível! O carro, sem "rei nem roque" tomou o caminho do mar, sem obedecer às tentativas para o contrariar. Não faço ideia porquê, mas levou a sua teimosia até ao fim e, mal dei por isso, eis que surge a paisagem da Foz do Arelho, lá em baixo, com o mar a trazer muito "Omo Super" e a justificar o alerta da Protecção Civil.

Não houve saídas. A teimosia do carro também se fez sentir aí e as portas não abriram. Deu a volta, sem grande pressa, devagarinho mas sempre andando, como o outro. O "Ambrósio" pensava na desculpa de justificação, se as autoridades aparecessem. Seria uma qualquer, esfarrapada, como as que têm sido ouvidas sobre as vacinas.

Não foi necessário. As autoridades deviam ter mais que fazer do que controlar um carro teimoso, conduzido por um "Ambrósio" incompetente, incapaz de o controlar e de o fazer cumprir a lei. A CMTV também não andava por ali e apenas duas ou três outras viaturas foram encontradas, estas, por certo a trabalhar.

Como tudo mudou! Há um ano, se alguém dissesse que ir à Foz ver o mar era prevaricação, talvez visse apontarem-lhe o caminho do Júlio de Matos ... que já não existe.