sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Livros lidos (ou em vias disso)

Já por aqui disse que não subscrevo nem aplico o novo Acordo Ortográfico, por teimosia ou capricho, por não me apetecer reaprender a escrever ou por me parecer que a língua, enquanto entidade viva, do que menos precisa é de regras rígidas para aplicar a milhões de pessoas espalhadas por vários continentes. Por vezes irrita-me a facilidade com que os correctores informáticos me sublinham palavras a vermelho para, logo a seguir, ver surgir em comunicações respeitáveis o "á" sem trazer o seu companheiro "h", quando este é imprescindível. Mas isto são embirrações de velho ...
A língua portuguesa pode e deve estar sujeita à variedade dos seus falantes e não deixa de ser a mesma quer seja conversada no bonde, no autocarro, no trem ou no comboio. E por mais gente que venha de terno ou de fato, o facto é que me mantenho na minha, recorrendo ao Houaiss sempre que as palavras me escapam, venham elas de Portugal, do Brasil, de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Moçambique.
Estou a ler (mais) um livro de Milton Hatoum, escritor que já aqui referi, considerado um dos melhores escritores brasileiros vivos. A beleza do português do Brasil, que ele tão bem explicita, fica aqui reproduzida neste pequeno excerto:
"(...) Todos se reuniam na copa do casarão rosado, com a exceção do meu pai, que se ilhava no quarto ou ia passear na Cidade Flutuante, onde ele entrava nas palafitas para conversar com os compadres conhecidos, com os caboclos recém-chegados do interior, e depois caminhando até o porto para visitar armazéns e navios.
Antes do amanhecer, Emilie me acordava para colhermos as flores do jardim; depois tirávamos Samara da rede e íamos de bonde ao bairro dos franceses para comprar buquês de jasmim-porcelana e cansarias róseas. Com linha amarela e agulha de madeira fazíamos colares e adornos para serem oferecidos aos convivas, e em cada taça de porcelana Emilie arrumava uma pétala branca e espalhava jasmins-do-mato no assoalho da alcova. As mulheres da vizinhança ajudavam na cozinha, preparando e esticando a massa dos pastéis e folheados. Eram finos lençóis de trigo estendidos por toda a casa, panos translúcidos que formavam cavernas de sombra onde brincávamos de adivinhar a silhueta do outro ou de colar o rosto nas superfícies que se moldavam à pele ou cobriam a cabeça como uma máscara ou um capuz. Tio Emílio fazia as compras, matava e destrinchava os carneiros, torcia o pescoço das aves e passava-lhes a lâmina no gogó para que o sangue esguichasse com abundância, como exigia meu pai.(...)"
Milton  Hatoum
Relato de um certo Oriente
Companhia das Letras

Sem comentários: