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sábado, 9 de agosto de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) << O que não se vê não existe. >>

Se lhe perguntassem em que consistia o seu trabalho, bastava-lhe responder assim. Eliminar o que não pode ser visto. Engolir, apagar, sufocar, sepultar. Encobrir. Erguer muros. Abrir buracos. Omar era mestre na arte do soterramento e do segredo. Ninguém sabia tão bem como ele contrapor um silêncio opaco e sereno a quem fazia perguntas. Nada conseguiria fazê-lo fraquejar, nem sequer o rosto enlutado das mães que procuravam os filhos ou as súplicas de uma jovem cujo marido desaparecera, uma manhã. Em 1965, durante os protestos estudantis, ele participara na tarefa de apagar os vestígios do massacre. Com os seus homens, assumira o controlo da morgue de Aïn Chock e, durante dias, ninguém pôde entrar ou sair de lá sem que Omar desse o seu aval. Muitas famílias reuniram-se diante do edifício, reclamando os restos mortais dos seus entes queridos. Ele mandou expulsá-las. Depois, uma noite, carregaram os corpos na traseira de uma carrinha, com os faróis apagados. Corpos frágeis e leves, cadáveres de adolescentes e de crianças que não pesavam nada nos braços dos polícias encarregados de os transportar. Deslocaram-se até ao cemitério deserto e Omar ainda se recordava do reflexo da lua nos túmulos e dos buracos que foram abertos, em pontos dispersos, afastados uns dos outros. Os polícias começaram a descarregar a carrinha. Alguém quis rezar, mas Omar não o permitiu. Deus não era para ali chamado.

Naquele país miserável, bastava distribuir umas notas. Ao médico que testemunharia que não vira nenhum ferido. Ao coveiro que, por um punhado de dirhams, se esqueceria que cavara sepulturas para crianças assassinadas. Omar nunca aceitava dinheiro. E, no entanto, ofereciam-lho centenas de vezes. E viu, amiúde, os seus colegas aceitarem maços de notas escondidos num envelope de papel pardo. Viu-os enriquecer e subir na escala hierárquica. Casavam-se com raparigas ricas de boas famílias, cujos pais se alegravam por terem um genro na polícia. (...)"

Vejam como dançamos
Leïla Slimani
Alfaguara (2022)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Numa tarde do mês de Março de 1955, quando se preparava para servir o chá, a menina Fabre surpreendeu as suas alunas numa grande conversa. Os estudantes do secundário estavam em greve havia uma semana, por causa de uma jovem que um professor humilhara. Ele acusara-a de ter escrito uma composição subversiva sobre o combate de Joana d'Arc contra os Ingleses e de ter aproveitado a disciplina de História para manifestar as suas amizades nacionalistas. Do andar de cima, chegava-lhes o riso dos trabalhadores que reparavam o telhado da menina Fabre e as raparigas não se contiveram e tentaram vê-los. A dona da casa serviu, à moda dos Marroquinos, com um gesto amplo e cerimonioso, o chá de menta em copos lascados. Aproximou-se de Selma.

- Venha comigo, menina, quero falar consigo.

Selma seguiu-a até à cozinha. Perguntou-se qual seria o motivo daquela conversa à parte. Teve vontade de dizer que se estava a borrifar para a política, que a sua cunhada era francesa, que não tomava o partido de ninguém, mas a menina Fabre sorriu-lhe e convidou-a a sentar-se a uma mesinha de madeira, na qual estava pousado um cesto com fruta coberta de mosquinhas. A menina Fabre esticou as pernas. Durante uns minutos, que pareceram infindáveis a Selma, perdeu-se na contemplação da buganvília que se espraiava, em enormes cachos malvas, sobre o muro ao fundo do jardim. Pegou num pêssego demasiado maduro, com a casca a descolar, e deparou com a polpa escura e mole.

- Soube que deixou de ir às aulas.

 Selma encolheu os ombros.

- Para quê? Não entendia nada.

- A menina é uma tonta. Sem estudos, não será ninguém na vida.

Selma ficou surpreendida. Nunca ouvira a menina Fabre exprimir-se daquela maneira, dar mostras de tamanha severidade junto de uma das adolescentes.

- É por causa de algum rapaz, é isso?

Selma corou e, se pudesse, teria fugido a sete pés e nunca mais a veriam naquela casa. As pernas começaram a tremer-lhe e a menina Fabre pousou uma mão no joelho dela.

- Julga que não compreendo? Provavelmente pensa que nunca estive apaixonada.

<<Faz com que ela se cale. Faz com que ela me deixe ir embora>>, pensou Selma, mas a velha continuou, roçando os dedos na sua cruz de marfim, que, de tanto ser acariciada, estava lustrosa.

- Hoje está apaixonada e é maravilhoso. Acredita em tudo o que os rapazes lhe dizem. Está convencida de que isso vai durar e que eles vão gostar sempre tanto de si como gostam agora. Comparado com isso, os estudos não têm importância. Mas a menina não sabe nada da vida! Um dia, se sacrificar tudo por eles, vai ficar sem nada e dependente dos mais pequenos gestos deles. Dependente da boa disposição e afecto dos homens, à mercê da brutalidade deles. Acredite que devia pensar no seu futuro e estudar. Os tempos mudaram. Não tem de abraçar o mesmo destino que o da sua mãe. Pode vir a ser alguém, advogada, professora, enfermeira. Ou até aviadora! Não ouviu falar daquela rapariga, a Touria Chaoui, que conseguiu o brevet de piloto com apenas dezasseis anos? A menina pode ser quem quiser, desde que faça por isso. E nunca, nunca pedirá dinheiro a um homem. (...)"

O país dos outros
Leïla Slimani
Alfaguara (2021)