segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

Sem comentários porque o que por lá se passou foi tão mau, tão horrível, tão estúpido, tão cruel, que não merece outra coisa que não seja a lembrança bem viva e atenção redobrada para quaisquer instintos que possam ter a veleidade de branquear a memória. E não passaram (e ficaram) por lá apenas judeus.

(...) Correr. Ao longo do arame farpado. Não lhe tocar. As lâmpadas estão no encarnado.

Passar outra vez pelo portão para entrar. A passagem é estreita. É preciso correr ainda mais depressa. Não importa as que caem, são espezinhadas.

Correr. Schneller. Correr.

Voltar outra vez para diante dos homens que tornam a encher o avental de terra.

Têm de fazê-lo depressa, estão a levar pancada. Pazadas bem cheias, batem-lhes, batem-nos.

Uma vez o avental cheio, pauladas. Schneller.

Correr para o portão, passar sob as correias e os chicotes, correr em cima da tábua que balança e se verga. Atenção à bengala do chefe SS na extremidade da tábua. Esvaziar o avental em cima de um ancinho, correr, atravessar o portão pela passagem cada vez mais estreita - é aí que os bastões se acumulam -, correr em direcção aos homens para voltar a apanhar duas pazadas de terra, correr para o portão, num circuito ininterrupto.

Querem fazer um jardim à entrada do campo.

Duas pazadas de terra até que não são muito pesadas. Mas vão-se tornando. Pesam mais e tornam o braço anquilosado. Atrevemo-nos a segurar mal os cantos do avental para deixar cair um bocado de terra. Se uma fúria vê, bate-nos. E, no entanto, fazêmo-lo, porque é peso de mais.

Há um francês. Aldrabamos e calculamos a corrida para ser ele a abastecer-nos. Tentamos trocar algumas palavras. Fala sem mexer os lábios, sem levantar os olhos, é assim que se aprende a falar na prisão. São precisas três voltas para uma frase.

A ronda não gira suficientemente depressa. As fúrias berram mais alto, batem com mais força. Há congestionamentos porque há mulheres a cair e porque as companheiras as ajudam a levantar, enquanto as outras, atrás, empurradas pela pancada, querem continuar a correr. (...)

Auschwitz e depois
BCF Editores (2018)

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