terça-feira, 14 de novembro de 2023

A escada do humor

Com a devida vénia, muito respeito pelo autor e sem pagar direitos ao dito, transcrevo, uma vez mais, a crónica, diária, que Miguel Esteves Cardoso mantém no jornal Público.

" O INTER-IDADES PARA O PORTO

     Quando eu tinha 27 anos e me davam 30, protestava violentamente: "Calma aí! Não tenho 30, só tenho 27!" Quando tinha 38 e me davam 40, ainda era pior: "Quais 40?! Quarenta tinha a tua tia. Fica sabendo que só tenho 38!"

     Aos 47, quando começaram a atribuir-me a idade caluniosa de 50 anos, até tremi de raiva: "Ainda sou um quarentão! Deixa-me em paz! Vai morrer longe!" E dez anos depois, quando cheguei aos 58, lá estavam os caluniadores outra vez ao ataque, dando-me sessentas sem mais nem menos: "Sessenta? Estão malucos ou quê? Ainda não tenho 60! Sou só um jovenzinho de 58!"

     Agora tenho 68 e estranho que ainda não me deem 70. Se calhar, já estou tão velho que passei essa barreira, e entrei no mundo mentiroso dos elogiozinhos de lar da terceira idade: "Ele hoje está muito bonito! Foi ele que escolheu as calças, não foi? E calçou os sapatos sozinho, não calçaste?"

     Mas, caso alguém esteja prestes a dar-me 70 anos, está bem, pronto, já aprendi a minha lição. As piores armadilhas são aquelas que nós próprios nos encarregamos de montar. Aquilo que nos envelhece escusadamente não é a prontidão dos outros para nos fazer mais velhos do que somos. É a veemência com que negamos ser de uma idade que estamos mesmo à beira de atingir.

     Disse mal dos trintas? Mais me agarrei aos trintas. Eram muito piores do que os vintes, mas era o que havia. Amaldiçoei os quarentas? Mais malditos foram os meus quarentas. E assim sucessivamente.

     É como ir no Inter-Idades de Lisboa ao Porto, em que, depois de nascer em Lisboa, os 10 anos são Vila Franca, 20 anos são Santarém, 30 são Entroncamento, 40 são Pombal, 50 são Alfarelos, 60 são Coimbra, 70 são Aveiro, 80 são Espinho, 90 são Gaia e a morte é o Porto.

     A Pampilhosa ficou de fora para que se faça dela o que quiserem.

     Já que vamos todos a caminho do Porto, parando nas estações todas, faz algum sentido protestar que ainda não chegámos a Alfarelos? Que bom seria poder ficar sempre em Alfarelos!"

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