terça-feira, 30 de julho de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

Agustina escreveu muito e bem. Dela já li muito e bom, mas não tudo nem nada que se pareça. "O Manto", escrito em 1961 e reeditado há meia dúzia de anos, era um dos que estava ausente. Calhou agora, para poder ser arrumado, ele que já estava saturado de saltar da secretária para a mesa de cabeceira, do carro para a cadeira da praia, sem cumprir a sua função de afago.

Uma vez mais, confirmei que a língua portuguesa, quando utilizada por quem sabe, não é bonita, é fantástica.

"(..-) À beira do rio Ave, à beira do rio Ave desembarcam as lavadeiras, com os seus lenços verdes, que cheiram a fumo de pinheiro, atados para a nuca. São mulheres prazenteiras, que riem, e cujas vozes enchem o ar e as margens de areia, onde o rodado dos carros de bois ficou profundo; nas ilhotas juntam-se as gaivotas brancas como pedras de um jogo, em fileiras cerradas e quietas; os sinceiros dobram-se sobre as águas, o vento parou um momento. Na colina que as primeiras chuvas hão-de reverdecer, Camilo toma banhos de sol; está quase nu, o corpo liso e de finos músculos repousa sobre uma toalha vermelha; ele tem ao lado alguns livros, e o vento parou um momento. Eis um homem solitário, com o seu quê de mitológico, e, com um pouco de esforço, podemos calcular as suas probabilidades de entrar na fábula um dia, com os seus cisnes no meio dos quais se deixa arrastar na corrente, com o seu moinho onde à noite pousam as corujas sopradoras. Mas o que faz o mito não pode ser nunca a excentricidade, mas sim o raro, o difícil e até o insociável que há na virtude humana. Este homem dorme como Pã sobre a relva - mas onde está a flauta que inspirou a cabriola e o amor lúdico? Os delgados caracóis caem-lhe na testa como as próprias madeixas de Apolo - mas onde está a tristeza da formosura que medita? Os deuses belos são deuses tristes. Este homem - acreditem-me -, quando despertar, há-de sacudir as formigas que sobem pelas suas pernas, e pensará no jantar; vive como um pobre, aproveita o calor do Verão para não gastar roupas, amealha obstinadamente, porque tem a sustentar mais do que uma descendência ou até um vício - talvez o medo. (...)"

O Manto
Agustina Bessa-Luís

sábado, 27 de julho de 2024

Esforço

Acordo bem cedo e, quando esperava e ansiava por um céu azul e um sol radioso, constato que nem é preciso ir regar o jardim. Choveu durante a noite e o borriço está para ficar, pedindo um casaquinho e um guarda-chuva, para prevenir constipações.

Tudo alterado. Não há praia ou, melhor dizendo, em jeito de grito de manif:

- Não à praia, sim às compras!

É um privilégio viver no Oeste. Toda a gente a bufar de calor, quarenta graus em Castelo Branco, trinta e nove em Santarém, avisos amarelos e laranjas, incêndios e cortes de estrada por via dos ditos e, por aqui, parece que estamos a chegar ao Natal.

Pior, só na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, que S. Pedro quis assinalar com grossas bátegas, talvez para lembrar a alguns dos presentes (e a muitos ausentes) que o esforço olímpico tem de ser diário e alargado aos "atletas" que comandam as "tropas". 

terça-feira, 23 de julho de 2024

Rotinas

O Cistermúsica é, tem sido, de visita obrigatória e sempre o regresso a casa se faz com "água na boca", sendo certo que, todos os anos, a caixinha de surpresas é aberta e tem sempre grandes novidades.

Os concertos da Orquestra XXI são imperdíveis e, para um leigo, o último é sempre o melhor. Aconteceu uma vez mais este ano, com a qualidade da Orquestra sempre presente e um presente trazido com a violinista, para mim desconhecida, Alena Baeva. Foi a solista numa das peças tocadas e encheu o palco interpretando o concerto para violino e orquestra nº. 2, de Dmitri Shostakovich.

Para recordar, apenas com a mágoa de a orquestra que acompanha não ser a XXI. Não se pode ter tudo.

sábado, 20 de julho de 2024

Nadando ... lá longe

Com o aniversário do neto II, Vasco de seu nome, encerra-se o ciclo anual dos aniversários das 4 pessoas, agora as mais importantes, do núcleo familiar.

O dia de hoje, em que completa 13 aninhos, ficar-lhe-á na memória por não o ter comemorado em modo "normal" ou, pelo contrário, registá-lo-á para sempre como o aniversário passado a "contar azulejos", nadando pela primeira vez nos Campeonatos Nacionais de Natação, em Setúbal. Regressará amanhã, lá para o final do dia, cansado, por certo, mas sempre uma "delícia".

PEDAGOGIA

Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende ...
A vida compra e vende
A perdição.
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!

Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de ser!

Diário IX
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra

sábado, 13 de julho de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Um dia, frustrado e bastante ofendido, Julinho dos Pardieiros insultou a Baronesa com a mesma fama com que ela por vezes insultava alguém. Chamou de catatua, megera, antipática, mentirosa, trogalho, baldão, bandalho, feia, estúpida, gente horrorosa, merdosa, comedora de esterco, vampira, mal dormida, despenteada, despencada, olho de cu e arroto fétido. Foi à porta da igreja, o padre João a escutar, toda a gente a benzer-se de escândalo e demónio. Só podia dar uma assombração a Julinho, o dos Pardieiros. Que insultara de tanta criatividade a benemérita do Campanário que não sobravam palavras na língua portuguesa para a comissão de maior maldade. Minha mãe quase desmaiou. Meu irmão disse: Deus o abençoe, meu pai. Deitou-lhe as mãos. Se não tivesse deitado, mais Julinho haveria de espaventar os braços no ar, a crescer maluco em redor da velha que só dizia ai, e agarrava os trapos que levava ao peito, sempre encafifada em camadas de panos sem serviço. Estava calor. Tinham posto tirinhas de papel a oscilar ao vento. Subitamente, o movimento das tirinhas pareciam palminhas. Muitas palminhas que alguém batia em silêncio.

Minha mãe, que não era de grandes admoestações e não tinha por hábito instruir meu pai, instruiu por horas naquele dia. Levantámos aos Pardieiros, e ela não se calava. Porque era indecoroso insultar quem quer que fosse, e era indecoroso insultar uma mulher que talvez ainda nos pudesse ajudar. Meu pai nem quis levantar-se a casa. Levantou-se a meio caminho e desculpou-se com ir às sementes ou à rega. Não queria escutar mais nada. Estava sofrendo de não saber esperar e não saber ter mais futuro. Pouquinho pediu licença para o acompanhar. Queria ver as crias das galinhas. Os ovos que acabaram de eclodir e pipilavam meigos quase ainda mudos. Mariinha ficara tão vexada e encurralada na pobreza de sempre que desatou a chorar assim que o marido lhe deu as costas. Choraria sem querer falar-me. Que eu ainda pedi: mãe, a senhora que se acalme. Isto não vai ser nada. A gente se vive de qualquer maneira, e gente ainda tem muito Deus em nossa vida. Mas quando meu pai subiu, à hora da janta, Mariinha voltaria à sua instrução, começada devagar, a fazer de conta que iam ser só duas palavras, até virar um sermão que entrou noite adentro e expiou muito ano de casamento. Eu e Pouquinho, aninhados em nosso colchão, acabámos por sentar. Eu murmurei: a mãe tem medo que nos falte futuro. E Pouquinho respondeu: nosso pai também. (...)"

Deus na escuridão
Valter Hugo Mãe
Porto Editora (2024)

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Verão

O Verão parece que, finalmente, está a chegar às Caldas, embora ainda esteja meio gago, talvez devido à ausência dos comboios eléctricos prometidos "há séculos" ou transtornado com as peripécias que têm acontecido por aqui e pelo mundo.

A água da Foz estava com temperatura agradável (coisa rara, dirão muitos que nem arriscam meter o pé) e o mar, calminho, deixava dar uns mergulhos mesmo a quem já não tem a elasticidade de outrora.

- Agora tenho muito cuidado, mesmo com o mar assim ... o medo de cair é muito. Aproveita bem! És mais novo!

E mais não disse o meu amigo G., saindo com pressa. Tinha as netas à espera do seu carinho! 

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Rapidez

Este é o dia no qual o meu neto GRANDE se torna MAIOR, de acordo com a legislação que regulamenta o crescimento das pessoas. É apenas o registo formal de uma situação visível há muito, não havendo qualquer alteração na personalidade ou na responsabilidade, ambas já bem definidas e visíveis.

Continuará a ser o meu neto GRANDE, sem sobressaltos, devaneios ou convencimentos, sempre educado, cortês e disponível. Eu é que estou cada vez mais ... sonhador!

BRINQUEDO

Foi um sonho que eu tive:
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.

Diário I
Miguel Torga
Coimbra

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Perdas

Foi hoje "por esse rio acima". Uma vida dedicada à boa música portuguesa e a lutas muito importantes, antes e depois de Abril.

Ficará sempre na memória e nos discos que por cá estão há muitos anos, mas ainda bem conservados, a exibirem tantas coisas boas e a lembrarem, entre muitas outras, a luta da vizinha Ferrel, aqui tão perto ...