terça-feira, 27 de agosto de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

(...)53. Das tripas coração

O meu Porto é feito de duas cidades: aquela em que cresci e a de hoje. Uma deu-me o que tenho, fez de mim o que sou, a outra dá-me o pão. Desde sempre, o Porto foi uma cidade-mãe; desde sempre, alimentou os que lhe pertenciam e os de fora, nunca virou a cara fosse a quem fosse. Esta nobreza ninguém lha tira. Explico sempre aos turistas que somos tripeiros com muito orgulho e que a denominação terá nascido por termos - e isto quem desconhece são tanto os lisboetas, como muitos portuenses - oferecido toda a carne que por cá havia para salvar ou ajudar Lisboa. Na capital, o infante D. Henrique engendrava há muito um plano secreto, cuja preparação entregou à cidade que o vira nascer, o Porto. Nos estaleiros, na zona de Massarelos, as águas do Douro viam erguer-se dezenas de naus e de outras embarcações. O povo intrigava-se com tamanho empreendimento naval e nem mesmo os trabalhadores conheciam o emprego a dar aos barcos. A boataria crescia: havia quem dissesse que serviriam para levar - com escolta nunca vista - el-rei D. João I  a Jerusalém, a fim de visitar o Santo Sepulcro; também se garantia que tinham como missão transportar a infanta D. Helena até Inglaterra, para casar; aventava-se de igual modo a hipótese de estarem a ser preparados para levarem os infantes D. Pedro e D. Henrique a Nápoles, também para fins matrimoniais. As estradas vindas de outras paragens e os caminhos que levavam até ao rio encontravam-se congestionados com carros transportando panos para velas, armas e mantimentos, numa azáfama nunca vista, mas só Mestre Vaz, o encarregado da construção, sabia do plano do infante D. Henrique. Esvaziaram-se celeiros, matou-se toda a espécie de animais, para depois se salgarem as carnes. O Porto e a região preparavam-se para, em 1415, tal como trinta anos antes, durante a guerra com Castela, que levou ao cerco de Lisboa, se sacrificar pela nação. Em 1384, em plena crise 1383-1385, uma armada alimentar, carregada das melhores carnes, foi enviada do Porto para Lisboa, para ajudar a resistir aos avanços castelhanos. As gentes do Norte, mas sobretudo os portuenses, ficaram somente com as vísceras. O mesmo terá acontecido em 1415, quando o infante D. Henrique, aparecendo de surpresa no Porto, a fim de visitar os estaleiros de Massarelos, e de ver o andamento dos trabalhos de construção naval, pediu ao mestre Vaz empenho redobrado, para terminar a empreitada. Diz-se que o Mestre Vaz não defraudou a confiança do infante: prometeu todo o empenho da cidade e, inclusivamente, que o Porto ofereceria toda a carne que possuísse, para a jornada, ficando somente com os miúdos. Em rigor, não se sabe se foi por promessa do Mestre Vaz, se porque as vísceras se estragariam facilmente a bordo, mas o Porto ficou, mais uma vez, apenas com as tripas - com as quais, com muito engenho, criou o seu prato mais típico - e demais miudezas. Em resultado deste novo sacrifício, os portuenses passaram a ser conhecidos como tripeiros. (...)

Morro da Pena Ventosa
Rui Couceiro
Porto Editora (2024)

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Palavras bonitas

Passam hoje 9 anos da partida do meu pai e cada vez é mais difícil dizer alguma coisa de substancial sobre isso.

Faltando a imaginação e a capacidade, nada melhor do que recorrer a quem sabe e parece ter feito o poema adequado.

POESIA

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Vai, Carlos!
Carlos Drummond de Andrade
Tinta da China (2022)

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Distracção

A Foz faz, diariamente, prova inequívoca de que não é possível ter tudo nem agradar a todos: se há sol, vem o vento; se o vento não aparece, o sol ausenta-se; se o mar está calmo, não há temperatura que justifique sentir o frio nos artelhos; se o dia está fantástico, com um sol radioso, sem vento nem nuvens, então o banheiro coloca a bandeira do Benfica porque o mar não está para brincadeiras e pode haver chatices.

- Vamos à aberta!

E lá marcha a excursão, a caminho da piscina natural, de água salgada e sem ondas, mas com água renovada e bem limpinha, que a maré está a encher até quase à uma da tarde.

Pelo caminho, conversa-se sobre o discurso do Primeiro-Ministro Montenegro, gritado às massas no remanso de Quarteira, com o oceano, de poucas ondas, atento ao português utilizado de forma brilhante (ou será com brilhantina?).

Será-lhe difícil esquecer o dia de ontem, tal como os reformados mais débeis não olvidarão o prémio que será-lhe pago no próximo mês. Não será o erro que impedirá a portaria ...

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Palavras bonitas

 LUTA

Um contra o mundo, é pouco.
Mesmo que seja louco,
É muito pouco ainda.
Mas que pode fazer o homem que endoidece
E se esquece
De medir o poder do seu tamanho?
Ah, se houvesse um fotógrafo no céu
Que filmasse
Uma aventura assim, ridícula e perfeita!
D. Quixote sozinho
A combater as velas do moinho
Que mói, ronceiro, a última colheita.

Cântico do homem
Miguel Torga
Coimbra

Passam hoje 117 anos do nascimento do grande Miguel Torga. Sempre actual!

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Aventuras

Acordo . Um barulho esquisito, difuso, longe, numa divisão que não consigo identificar à primeira. Estarei a sonhar? O sol ainda não nasceu e a claridade do dia mal perpassa pelas nesgas do estore. Toda a casa está em silêncio e no escuro. Apuro o ouvido. Alguma coisa bate em algo, de quando em vez

"Batem leve, levemente, como quem chama por mim ..."

Levanto-me e sigo a intuição. Não é chuva nem é gente e neve é visitante muito, muito raro nesta zona e nunca neste tempo. Acendo as luzes e o barulho acentua-se. Facilita a deslocação e a identificação do local donde provém. Pasmo! Há um pássaro na lareira, a lutar contra o vidro. Deve ser um aventureiro que tentou desvendar o mistério da escuridão do fumeiro. Veio até cá abaixo e, claro, já não conseguiu subir.

Abri a lareira. O pardal saiu de rompante, mal me dando tempo para o identificar. Procurou a luz, pousando no cimo dum móvel, aflito. Era um pardal-telhado, um charéu, um telhadeiro, adulto, daqueles que na minha infância terminavam, muitas vezes, no braseiro ou na frigideira. Amedrontado, perdido, decerto com o coraçãozito em velocidade supersónica.

"O pardal daninho aos campos / não aprendeu a cantar. Como os ratos e as doninhas, apenas sabe chiar." 

Apenas chiava, baixinho, na sua aflição em busca da saída. Encaminhado pela luz e pelas portas que se iam abrindo, lá chegou, finalmente, àquela que lhe deu acesso ao quintal e a um tronco da ginjeira, onde pousou, olhando, pareceu-me que agradecido.

O caminho para a liberdade não foi fácil. E alguma vez é?