terça-feira, 30 de setembro de 2025

Palavras bonitas (talvez actuais)

Ao Sr. José Ventura Montano
(Rogando-lhe socorro para pagar as rendas
das casas em que o autor habitava)

Demanda-me usurário senhorio
Do já findo semestre a soma escassa,
E enjoada de esperas, sei que traça
Pôr-me em Janeiro a passear ao frio.

Ele em tais casos tem mais brio,
Que é homem pé-de-boi, vilão de raça.
Já creio que mandado extrai e o passa
À mão ganchosa de aguazil bravio.

Tu, que detestas esta corja horrenda,
Que deveu a ganância inútil sua
Primeiro ao chafariz, depois à tenda,

O avaro alegra, que um semestre amua;
Acode ao caro amigo, antes que aprenda
De cães vadios a dormir na rua.

Obras escolhidas
Bocage
Círculo de Leitores (1985)

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Sinas

Há dias assim!

Apetece-me escrever qualquer coisa e, ao mesmo tempo, interiormente algo me sussurra: não inventes, fica quietinho, à espera que a vontade passe, como o outro.

O lápis continua na mão e desliza, garatuja, gatafunha, risca, não desenha, que isso é mester a que a mão foi sempre arredia, anota, aponta, regista, começa, termina, volta ao sítio que o guarda, repensa, hesita, posiciona-se e, na sua santa ignorância, recoloca-se na mão, aguardando a sua oportunidade de servir, que foi para isso que ele, lápis, foi concebido.

Na oficina, onde o carro teve de ir para mudar a lâmpada do pisca traseiro esquerdo, fundida por excesso de uso, acredito, a senhora do atendimento, após receber o pagamento do serviço, diz:

- Muito obrigada e até à próxima. Um bom fim de semana ... ai, que disparate! Boa semana. Credo, já estou tão cansada ...

E tinha razões para isso. Naquela meia hora que por lá estive a aguardar, a senhora não parou um momento. Fez telefonemas, atendeu clientes, foi à oficina, recebeu chaves, deu chaves, puxou do multibanco, recebeu dinheiro e deu troco, imprimiu facturas, fez folhas de obra, chamou colegas mecânicos, deu opinião sobre o melhor óleo para determinada viatura, orçamentou um pedido de reparação que não foi aceite e, como se não bastasse, ainda veio a correr atrás do distraído que se tinha esquecido da lâmpada que sobrara.

Como o lápis, há gente que nasceu para servir ... e ainda consegue sorrir, mesmo cansada. 

sábado, 27 de setembro de 2025

Moderação

Até aqui, uma das minhas grandes preocupações tem sido a moderação - minha e da sociedade -, sempre com a consciência de que não é nada fácil ser moderado e com a esperança de que eu não exceda os limites e que, na convivência social, aconteça o mesmo.

Todos sabemos que, por vezes, podem acontecer excessos por "dá cá aquela palha". O que não sabíamos é que a moderação tinha limites e estes podiam ser matematicamente explicitados e legalmente estabelecidos.

O Governo de Montenegro acabou de nos provar como, afinal, tudo é fácil e possível de quantificar. Até a moderação! 

O valor moderado das casas passa a ser de 648.000 € e o das rendas das mesmas, de 2.300 €. Os valores fixados determinam o valor da moderação e estão perfeitamente ao alcance de qualquer bolsa moderada e bem intencionada ...

A moderação está na ordem do dia, nas casas, nos gestos e no vocabulário. Aguarda-se, apenas, que a moderação parlamentar confirme a decisão governamental e que a moderação de Belém a promulgue.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) - <<Maldito!>> - murmurou o Mil-homens. - <<Mandou cortar a hera e pôs cal nas juntas do muro ... Quando nós viemos isto não estava assim. Vamos dar a volta a ver se há outro lugar por onde subir>>.

Contornámos o paredão, que dá ali uma volta, e ao pouco de andarmos vimos, quase tapado por um monte de terra de obras, um grande furo, rente ao chão, que se metia pelos alicerces do muro como se estivesse a fazer uma mina. Não havia ali ninguém a trabalhar, sem dúvida por causa da chuva. Depois de reflectirmos um pouco no que seria aquilo, percebemos que era para passar as águas do canal novo, como estavam a fazer em muitas outras casas, pois dizem que agora a gente rica vai ter torneiras nas suas casas, mas eu não vou acreditar até que o veja ... Então, mesmo sabendo que nos íamos encher de lama, pois aquilo estava uma desgraça, metemo-nos pelo furo, e após alguns passos vimos o céu por cima de nós e os galhos de umas árvores por outro furo que subia a pique.

<<Põe-te aqui>> - ordenou o Bocas, com aquela sua maneira de mandar, quando andava nelas, que não admitia outra resposta senão obedecer. Agachei-me um pouco, e depois de meter a manta por cima das costas, subiu aos meus ombros até chegar à parte de cima do furo apoiando-se nos cotovelos. Espreitou um pouco e desceu com um salto, para ficar especado, encostado à parede e com os olhos postos em nós.

- <<Está ali!>> - balbuciou muito assustado.

<<Quem, homem?>>

- <<A mulher, a tal senhora ...>>

- <<Eu não vos dizia?>> - argueirou o Mil-homens, como que pesaroso de que fora certo. - <<Mas viste-a bem?>>

- <<Meu Deus, não parece coisa deste mundo! Fiquei sem respiração ...>>

- <<Deixa-te de merdas ... Já tenho vinte e quatro anos e já passou o tempo de acreditar em bruxas.>>

- <<Meu Deus!>> - continuou a falar, como se não nos tivesse ouvido. - <<Põe-te aí; deixa-me vê-la outro bocadinho.>>

- <<Pois eu também quero ver o que é isso ...>> 

O Aladio tirou uma garrafa de aguardente, que roubara na tasca e que trazia no bolso da samarra, e bebemos uns valentes goles para nos animar. (...)"

A borga
Eduardo Blanco Amor
Guerra & Paz (2023) 

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Complicação outonal

Chega hoje o Outono e traz com ele o céu azul, pouco vento e uma temperatura agradável, que não convida ao banho nas águas, frias, da Foz. Acabou a época!

Ou talvez não! Com tantas alterações que vão acontecendo, no clima não controlável e naquele que podíamos apaziguar, quem sabe se Outubro não proporciona grandes modificações e, talvez, umas boas banhocas. A meter água, vamos ter muita gente ...

Começaram as aulas, a "Uber" está de prevenção, o "restaurante" abre portas com alguma frequência e sempre com o maior prazer, a logística do trabalho aperta, as folhas do jardim vão-se acastanhando e caindo, a "arrumação" dos troncos do pinhal está longe de estar concluída. Para além de tudo isto, que não é pouco, os entendidos recomendam actividade física, para prevenir o "esquecimento" e diminuir o risco dos "diabretes".

Que trabalheira, para mim, que há muito concluí ter feitio para estar de férias.

Vida de reformado é muito, muito, complicada ...

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Palavras bonitas

O VALOR DO VENTO

Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto

Todos os Poemas

Ruy Belo
Assírio & Alvim (2000)

domingo, 14 de setembro de 2025

Adversativas

Pelo céu vai uma nuvem, um ritmo lento, não seu, mas do vento que a impulsiona lá bem no alto. De quando em vez, dá um ar da sua graça e tapa o sol, impedindo o visionamento do azul celeste. Feitios ... a nuvem bem tenta fazer o que quer, lhe vai na real gana ou pensa ser o melhor para si e para as outras que a acompanham.

Porém, os condicionamentos são muitos e nem sempre a sua vontade prevalece. Melhor ainda, é muito raro que seja determinante, se é que alguma vez acontece. Vai de sul para norte, impulsionada pela nortada e, de repente, o vento muda e a trajectória altera-se, sem dar tempo, sequer, para dizer de sua justiça e obstar a um novo rumo que, normalmente, até nem é do seu agrado.

Todavia, como é perseverante, lá prossegue o caminho ditado, não escolhido, sempre atenta à hipótese de tornar ao seu destino preferido, tendo consciência que o importante é fazer aquilo que se gosta e gostar daquilo que se faz. É o sul que lhe agrada, lhe manifesta clareza, lhe dá horizonte, a deixa sonhar e lhe torna, nos dias mais sombrios, uma réstea de esperança que o vento mude.

Contudo, o vento é demasiado teimoso ou dotado de uma personalidade forte para lhe fazer a vontade de forma simples, preferindo sempre os caminhos mais ínvios: roda para sul, depois para nascente, um saltinho a nordeste, uma viragem rápida ao oeste marítimo. Não permanece muito tempo na mesma direcção, não se entende com o imobilismo, adora mudar, dar velocidade à nuvem, mudar-lhe a cor, fazê-la acinzentada, muitas vezes negra, clarinha em outras. A nuvem reclama, barafusta, tenta sempre contrariar. Desistir, nunca.

É a vida ... da nuvem, claro!

domingo, 7 de setembro de 2025

Chevrolet

 


A adquirir, para fazer companhia ao "irmão" Matiz, que está a ficar deprimido com a solidão.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Expresso

Preparemo-nos, afincadamente, para o curso intensivo de modas e bordados que a China se prepara, com toda a calma e paciência, para ministrar a todo o mundo, sem necessidade de matrícula nem de propinas.

No Expresso desta semana, como sempre, o cartoon de António põe o dedo na ferida ...


Também nesta edição, a habitual crónica de Miguel Sousa Tavares termina com (mais) um exemplo das muitas mentiras que vêm caracterizando os últimos tempos e prometem prosseguir "sem dó nem piedade".

"(...) 3. A deputada do Chega Rita Matias (já habitual nestas coisas) acolheu, divulgou e ampliou um post de um militante do partido que sustentava que, enquanto os imigrantes chegados a Portugal só por esse facto beneficiam logo de apoios do Estado, os bombeiros voluntários combatem os fogos sem nada receber em troca. Ambas as coisas são falsas: os imigrantes não beneficiam de quaisquer apoios por o serem e os bombeiros voluntários, apesar do nome, recebem 75 euros por dia de combate ao fogo (mesmo para "voluntários" é bem pouco, mas há países, porventura mais inteligentes, onde os bombeiros, voluntários ou profissionais, não recebem por cada dia a combater fogos, mas o contrário: por cada dia em que não houve fogos, sinal de que antes investiram na prevenção e na vigilância). Irá a senhora deputada repor a verdade ou dá mais jeito deixar correr a mentira?."

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

Vai longe o tempo em que ler Aquilino "obrigava" a ter o calhamaço da Porto Editora sempre à mão. Agora, o telemóvel dá uma ajuda fácil e preciosa, se bem que surjam, de quando em vez, alguns vocábulos, frases ou expressões que a IA ainda não "aprendeu".

O livro chegou há cerca de um ano e é uma (re)edição de 2023 da Bertrand, com o apoio do Município de Moimenta da Beira. Juntou-se aos antigos que por cá "habitam", mas só agora teve direito a leitura. Nem sempre há disposição, e tempo, para o "castigo" que é ler Aquilino ... mas vale sempre a pena. A língua portuguesa tratada pelo Mestre é, ainda, mais maravilhosa.

"(...) Desde aquele momento, a velha igreja adormecida, que o tempo ia consumindo com limar silencioso, acordou à sanha renovadora de meu pai. Dias a fio, o rebuliço quebrou o laborioso encanto da Biblioteca. E uma manhã, uma revoada de aves noctívagas veio abater-se espavorida por detrás dos volumosos tomos de Cornélio Alapide e de Silveira, doutos comentadores de textos.

Minha mãe, na lacrimosa fonte dos monges, lavou de sol nado e sol-pôr. Às braçadas, dos arcazes profundos da sacristia e da casa da fábrica, lhe acarretou meu pai todas as alfaias de linho raso e pano holanda que havia. E tantas eram, que, no dizer de meu mestre, sobejavam para enroupar um albergue de desvalidos. Quando todos estes objectos, artificiosamente obrados, de doce nome e de corte extravagante, alvas, amictos, palas, sanguinhos, frontais, manípulos, corporais, bolsas, secavam ao sol, lembraram-me os estendedoiros de Maria de Nazaré que, antes de ser vaso de eleição, fora modista e lavadeira de delicados dedos.

As minhas devoções cumpri-as agora perante o Cristo exposto no baldaquino da Livraria. Em tempo ordinário, todas as manhãs, antes que meus dedos folheassem livro, dirigia-me à capela a orar e a contemplar. Era um louvável costume que meu mestre me inculcara como fonte copiosa de actividade. Sozinho na nave imensa, a meio dum vagalhão de sombras, o espírito penetrava no meu espírito como o sol por uma vidraça. Do alto tecto alteroso, em uma só curva, a pomba do Paracleto, com rémiges vermelhas laivadas a branco, voejando sobre um bulcão de labaredas, soltava as vozes doloridas: in nidulo tuo moriar. Pisando aquelas lájeas funerárias, eu ouvia-as sempre com a angustiosa obsessão dum peregrino perdido a monte. Em cima, na tribuna, S. Francisco e S. Domingos cresciam em sua estatura severa de gigantes; intimidava-me neles a expressão de força e ombratura de centuriões romanos.

- Não era podoa nenhuma este imaginário - disse-me um dia o senhor padre Ambrósio, apontando com o índex. - Foram assim, apoucados no jeito, grandes no gesto. Rezam as histórias que o papa Honório, terceiro deste nome, em vésperas de confirmar a Ordem dos Pregadores, fundada por S. Domingos, tivera uma visão. O filho de Deus aparecera-lhe armado de três lanças, lívido de cólera, prestes a destruir o mundo que três vícios, a soberba, a cobiça e a luxúria, devoravam. <<Tate! Meu Jesus - acudiu a dulcíssima Virgem Maria - os homens são fracos, são filhos de Adão pecador, mas regeneram-se.>> E, só com mostrar-lhe S. Francisco e S. Domingos, obteve a clemência de Jesus ... De facto, os dois vagabundos dos caminhos salvaram da morte o mundo cristão. Este estatuário não era podoa, Libório, não era ... (...)"

A via sinuosa
Aquilino Ribeiro
Bertrand Editora (2023)

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Tão longe ...

Porque hoje é o "primeiro dia do resto da tua vida", fica por aqui uma escolha tão do agrado do teu filho, meu neto caçula, assinalando a quarta capicua de uma vida que se espera, e deseja, traga muitas.

Parabéns, meu filho!