quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) - <<Maldito!>> - murmurou o Mil-homens. - <<Mandou cortar a hera e pôs cal nas juntas do muro ... Quando nós viemos isto não estava assim. Vamos dar a volta a ver se há outro lugar por onde subir>>.

Contornámos o paredão, que dá ali uma volta, e ao pouco de andarmos vimos, quase tapado por um monte de terra de obras, um grande furo, rente ao chão, que se metia pelos alicerces do muro como se estivesse a fazer uma mina. Não havia ali ninguém a trabalhar, sem dúvida por causa da chuva. Depois de reflectirmos um pouco no que seria aquilo, percebemos que era para passar as águas do canal novo, como estavam a fazer em muitas outras casas, pois dizem que agora a gente rica vai ter torneiras nas suas casas, mas eu não vou acreditar até que o veja ... Então, mesmo sabendo que nos íamos encher de lama, pois aquilo estava uma desgraça, metemo-nos pelo furo, e após alguns passos vimos o céu por cima de nós e os galhos de umas árvores por outro furo que subia a pique.

<<Põe-te aqui>> - ordenou o Bocas, com aquela sua maneira de mandar, quando andava nelas, que não admitia outra resposta senão obedecer. Agachei-me um pouco, e depois de meter a manta por cima das costas, subiu aos meus ombros até chegar à parte de cima do furo apoiando-se nos cotovelos. Espreitou um pouco e desceu com um salto, para ficar especado, encostado à parede e com os olhos postos em nós.

- <<Está ali!>> - balbuciou muito assustado.

<<Quem, homem?>>

- <<A mulher, a tal senhora ...>>

- <<Eu não vos dizia?>> - argueirou o Mil-homens, como que pesaroso de que fora certo. - <<Mas viste-a bem?>>

- <<Meu Deus, não parece coisa deste mundo! Fiquei sem respiração ...>>

- <<Deixa-te de merdas ... Já tenho vinte e quatro anos e já passou o tempo de acreditar em bruxas.>>

- <<Meu Deus!>> - continuou a falar, como se não nos tivesse ouvido. - <<Põe-te aí; deixa-me vê-la outro bocadinho.>>

- <<Pois eu também quero ver o que é isso ...>> 

O Aladio tirou uma garrafa de aguardente, que roubara na tasca e que trazia no bolso da samarra, e bebemos uns valentes goles para nos animar. (...)"

A borga
Eduardo Blanco Amor
Guerra & Paz (2023) 

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