segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Vinho azedo

O rancho estava a acabar o arranque dos bacelos.
Na época, o plantio da vinha era feito com bacelos que tinham sido enraizados no ano anterior, numa seara que exigia boa terra, bons conhecimentos e muita dedicação. As varas que iriam ganhar raízes na terra eram colocadas manualmente, em leiras inclinadas, com o espaçamento suficiente entre si para se manusearem bem no arranque, mas não demasiado que se desaproveitasse o solo disponível.
Poucos agricultores se dedicavam a esta actividade que, para além das exigências da qualidade da terra e da muita e boa mão-de-obra, obrigava à manutenção da humidade certa, com a rega na hora e na dosagem correcta e, no final, de novo a mão-de-obra intensa para o arranque, a separação por variedade, a contagem, o atar dos molhos e, finalmente, a entrega aos clientes, que os haviam encomendado alguns meses antes.
O frenesi do arranque era o culminar de muitos meses em que se imaginava o desenvolvimento da raiz pelas folhas que iam despontando na pontinha da vara, deixada de fora da terra.
- Este ano o Richter 99 vai ter boa raiz, mas o SO4 não parece grande coisa …
- Dizes sempre o mesmo … no fim vê-se.
E via-se, à custa dos golpes da enxada larga, desferidos com o cuidado de “quem sabia da poda”. As primeiras cavadelas davam logo um sinal da qualidade ou da falta dela, e toda a gente exibia um sorriso largo ou um sobrolho franzido, consoante aquela cabeleira de raízes era farta e bem composta ou, pelo contrário, as varas se apresentavam quase carecas, com uns fiapos esparsos e fugidios.
O patrão assistia ao início e não passava dia nenhum sem fazer, pelo menos, uma visita ao rancho, incentivando os jornaleiros e prometendo a adiafa para o final.
Habitualmente os homens bebiam uma água-pé produzida na quinta, com baixo teor alcoólico e um sabor “choco”, que arrepiava só de molhar os lábios. Uma vasilha de madeira, uma cana a servir de torneira no topo, um púcaro de alumínio e uma rodada por todos, quando o caseiro determinava.
Na adiafa, a água-pé era substituída por vinho tinto e as rodadas eram mais frequentes. A alegria fornecida pelo vinho e a esperança de acabar antes do sol se pôr faziam com que as enxadas abrissem a terra ainda com mais força e que as futuras cepas saltassem com mais rapidez do seu leito de meses.
Naquele ano faltou o vinho para a adiafa!
A quinta tinha produzido pouco tinto e havia necessidade de o ir comprar. Ninguém se lembrou disso e …
- Leva três garrafões e vai à taberna de F… comprar. Não te esqueças de lhe dizer que é para nós e de perguntares, antes, se o vinho é bom.
A carrinha Citroen 2 CV conhecia bem o condutor e não se fez rogada, circulando à estonteante velocidade de 50/60 quilómetros, demorou pouco mais de um momento a chegar à porta da tasca.
- O vinho tinto é bom?
- ‘Tá um bocadinho azedo, mas bebe-se bem. Queres provar?
- Já agora …
Os lábios saborearam, a experiência era pouca, o hábito ainda menos, o sabor parecia normal, o azedo não se notava …
- Quero 15 litros, nestes três garrafões. É para a quinta.
No regresso, a Citroen voou. A pressa de chegar aliada à ansiedade de saber se o vinho estava ou não azedo, faziam o pé levar o pedal até ao fundo.
- Não dê o vinho aos homens sem o provar!
- Porquê? Não disseste ao homem que era para nós?
- Claro que sim, mas ele disse-me que o vinho estava um bocadinho azedo mas que se bebia bem. Provei, não me pareceu azedo, mas é melhor provar primeiro.
- O malandro quis brincar contigo … de certeza que o vinho é bom!
E era!
No final do dia, os homens do rancho estavam bem alegres e não descansaram enquanto não viram o “fundo aos garrafões”.
E de azedo só a azia que o taberneiro ainda hoje me causa …

3 comentários:

Anónimo disse...

:) Afinal, delícia!
Toda "essa azia" foi a estaca do bacelo produtora de experiências e de tão saborosa prosa.

Anónimo disse...

Adorei estes 5 minutos de leitura!!
Bem-Haja

Fernando Noronha Leal disse...

Nado e criado a ver (e a aprender) "fazer viveiro", apreciei, linha a linha, palavra a palavra, este naco de prosa (poesia ?).
Os meus ascendentes são os Anicos da Matoeira, que sempre viveram (e, verdade seja, razoávelmente) graças ao bacelo.
Eu próprio, já adulto (e para ajudar o meu Pai a cultivar mais do que as 2 variedades que a burocracia, a certa altura, só autorizava a cada viveirista...) me fiz "viveirista no papel".
Muito devo ao bacelo. Sem ele, não teria o menino da aldeia podido ir para a cidade, estudar.
Eram os anos 50 do século XX.
Obrigado por me ter recordado o meu amigo bacelo !

Fernando Noronha Leal