Em 1986 José Saramago romanceou uma hipotética fractura nos Pirenéus, que colocou a Península Ibérica a navegar no Atlântico, num afastamento inesperado, surpreendente e contínuo, do continente europeu.
Já pouco recordava do livro, que devo ter lido à pressa, mas havia qualquer coisa que me ordenava voltar a ele. Vou a meio e acabei de degustar ( a Natália Correia dizia aos subalimentados do sonho que a poesia era para comer) o discurso aos portugueses feito pelo primeiro-ministro criado pelo Nobel.
"(...) Portugueses, durante os últimos dias, com súbita intensificação nas últimas vinte e quatro horas, tem vindo o nosso país a ser alvo de pressões, que sem exagero poderei classificar de inadmissíveis, provenientes de quase todos os países europeus onde, como é sabido, se têm verificado sérias alterações da ordem pública, que se viram subitamente agravadas, sem qualquer responsabilidade nossa, pela descida à rua de grandes massas de manifestantes que, de maneira entusiástica, quiseram exprimir a sua solidariedade com os países e povos da península, o que veio evidenciar uma grave contradição em que se debatem os governos da Europa, a que já não pertencemos, diante dos profundos movimentos sociais e culturais desses países, que vêem na aventura histórica em que nos achamos lançados a promessa de um futuro mais feliz e, para tudo dizer em poucas palavras, a esperança de um rejuvenescimento da humanidade. Ora, esses governos, em vez de nos apoiarem, como seria demonstração de elementar humanidade e duma consciência cultural efectivamente europeia, decidiram tornar-nos em bodes expiatórios das suas dificuldades internas, intimando-nos absurdamente a deter a deriva da península, ainda que, com mais propriedade e respeito pelos factos, lhe devessem ter chamado navegação. Esta atitude é tanto mais lamentável quanto é sabido que em cada hora que passa nos afastamos setecentos e cinquenta metros do que são agora as costas ocidentais da Europa, sendo os governos europeus, que no passado nunca verdadeiramente mostraram querer-nos consigo, vêm agora intimar-nos a fazer o que no fundo não desejam e, ainda por cima, sabem não nos ser possível."(...)
A jangada de pedra
José Saramago
Caminho (1994)
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