- Hoje vamos às cobras, gritou o Júlio.
A pequenada abriu os olhos de admiração e de ignorância. Que raio queria ele dizer?
O Júlio era de poucas falas; na aula, o professor estava constantemente a referir que precisava de trazer o saca-rolhas para lhe arrancar um pouco mais do que um monossílabo e, agora, de repente e em voz bem alta, desafiava, ou antes, ordenava à turba que hoje íamos às cobras.
Que coisa mais esquisita, pensavam os "capitães da areia", aborrecidos com a possibilidade de não haver a futebolada do costume mas, ao mesmo tempo, com uma vontade louca de ver esclarecida a aventura que se perspectivava.
- Não é agora, esclareceu o Júlio, percebendo o desgosto e as dúvidas de todos.
- Logo à tarde, quando acabar a escola, vamos acabar com elas!
- 'Tás maluco! Falas de quê, questionou o Eduardo, sempre tão bem comportadinho, a pensar na explicação a dar à mãe por chegar tarde a casa, em alternativa a perder a aventura.
- Ontem, quando saí da escola, fui lá e vi-as. Eram duas, passeavam no restolho, grandes, enrolando-se e esticando-se, a deslizar, em curvas seguidas, com uma pele azul ou cinzenta, não consegui ver bem. Andavam depressa, mesmo sem pernas.
- Tiveste foi medo, foi o que foi, gracejou o Tóino, para quem as aventuras no campo não tinham segredos. Era o campeão da fisga, o que mais corria e saltava, o que conhecia os pássaros estivessem eles poisados ou a voar. Sempre descalço, as plantas dos pés passavam por qualquer folha ...sem o mínimo esgar de dor.
O Júlio tinha descoberto duas cobras na encosta fronteira à escola e queria matá-las à vista de toda a malta. Para além de peçonhentas e perigosas - olhem se o Tóino as pisa - comiam os ovos das perdizes e, dizia-se, até os perdigotos.
Toda a gente concordou: as cobras, se por ali andavam, tinham que ser mortas.
- E como as matamos nós, questionou o João.
- Eu trago a pressão de ar do meu pai - ele só lhe pega ao domingo e sai cedo para o trabalho, tal como a minha mãe - voluntarizou-se o Manel -, e o Tóino dispara. Se tem boa pontaria com a fisga, também a terá com a espingarda.
- Não é preciso espingarda nenhuma! Ainda alguém ouvia os tiros e fazia queixa à professora. Vamos matá-las com uma cana verde!
O pasmo foi geral. Cana verde para matar cobras, que nos morderiam pela certa? O Eduardo tinha razão, 'tava maluco, o Júlio!
- É fácil e vocês não têm que mexer uma palha. Eu faço o trabalho sozinho, só quero a vossa companhia, para verificarem que não minto.
O Júlio passou à explicação do projecto de assassinato das cobras, maduramente pensado na noite anterior, e narrou-o com uma desenvoltura que constratava, e muito, com o habitual mutismo na sala de aula.
- Vamos ao caniçal e cortamos duas canas, duas, não mais, bem grossas e compridas; com a minha navalha, faço um corte a meio de cada uma, rasgando a cana até metade e criando duas abas sobrepostas, que se manterão seguras, por o rasgo não chegar ao fim. A "arma" fica pronta a ser utilizada: basta apontar à cabeça e bater-lhe com força. A cana assim cortada não parte e a chibatada é bem forte. As bichas vão dar ao rabo e podem, se não tivermos cuidado, dar-nos a chibatada a nós. Confiem em mim. Estudei bem a lição! As duas que vi nunca mais comerão ovos de perdiz ou de qualquer outra ave, nem morderão os pés do Tóino.
E assim foi ... duas cobras morreram nesse final de tarde, às mãos da cana do Júlio (uma chegou).
Levava um arame no bolso e prendeu-as pela cabeça e, enrolando-as, colocou-as no saco de serapilheira que tinha escondido na mala. Tudo pensado, não havia dúvida!
- Vou enterrá-las no pomar da quinta.
A surpresa estava guardada para o dia seguinte. No intervalo, o Júlio foi à sebe e arrastou as cobras pelo pátio.
Acabou o recreio para as meninas da outra sala, que fugiram a sete pés, refugiando-se junto da professora, a quem contaram o que estava a acontecer.
Durante uma semana não houve recreio para os "capitães da areia".
1 comentário:
...E, com Jorge Amado, retornamos sempre, a realidades e tempos tão bem retratados.
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