sábado, 12 de março de 2016

Cavaco

Tinha prometido a mim mesmo que não gastaria mais "tinta" neste espaço de modesta reflexão com o "inquilino" que deixou o Palácio de Belém no passado dia 9, curiosamente dia de aniversário da minha primogénita. E não era por não ter ideias sobre o homem que, não sendo político, ocupou durante 10 anos o cargo de Primeiro-Ministro e, após uma primeira derrota em 1996, foi eleito Presidente da República e também por lá esteve mais uma dezena, sempre votado pelo povo que o detesta (?), pairando sobre nós qual cagarro sobrenatural e sobredotado, sabendo de tudo e de nada, com uma capacidade de ver à distância através de avisos inócuos, destilando ódio e raiva sem precedentes  e sem qualquer cabimento numa sociedade plural e democrática, como se quer que seja o país restaurado em Abril.
Mas Miguel Sousa Tavares, com o brilhantismo que lhe reconheço mesmo quando dele discordo, escreveu na sua crónica de hoje no Expresso a história factual do cavaquismo, num texto que vale a pena ler com atenção e na íntegra e do qual respigo alguns parágrafos. Talvez um dia, se se interessarem por isto, os meus netos interpretem o avô, o seu pensamento, as suas convicções, e dele discordem em tudo, com convém ao progresso.
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Cavaco tomou o poder, derrubando facilmente o desgastado governo do Bloco Central de Mário Soares e Mota Pinto, de caminho humilhando e crucificando quem, no seu partido, se atrevera a coligar-se com os socialistas numa hora de emergência - em que ele esteve prudentemente ausente.(...)
Mas o Governo que ele derrubou deixou-lhe uma preciosa herança, uma verdadeira mina de ouro: o fluxo sem fim de dinheiros europeus de que iria beneficiar nos seus dez anos à frente do Governo. Hoje, parece difícil de acreditar, mas Cavaco começou por torcer o nariz à adesão à União Europeia, um processo para o qual não moveu prego nem estopa.
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Inversamente e já como PM, Cavaco foi um entusiástico promotor da entrada na moeda única, e nisto, como em tudo o resto de essencial, a história encarregar-se-ia de demonstrar a sua nula capacidade de visionar o futuro: a entrada na UE permitiu-nos dar um salto de uma geração; a moeda única está na raiz dos males que agora nos afligem.
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Mas já antes ele vendera por um punhado de moedas a agricultura a Bruxelas e aos interesses dos produtores agrícolas europeus. Ele, que hoje se reclama "homem do mar", vendeu ainda as pescas, a marinha mercante e os estaleiros navais, mas também as minas e o tudo o que, no futuro, nos poderia garantir independência económica. Em troca, construiu e distribuiu: o país interior está cheio de centros de terceira idade, palácios de congressos e piscinas municipais que ninguém usa - ou porque se foram todos embora ou porque não há meios para os fazer funcionar.
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A sua chegada a Belém ficou-me para sempre marcada pela primeiríssima fotografia do eterno fotógrafo oficial da Presidência, Rui Ochoa. Uma das tais imagens que valem por mil palavras: de mãos dadas e com a felicidade estampada na cara, toda a família Cavaco Silva subia a ladeira de Belém para tomar posse do palácio e do país.
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Cavaco portou-se sempre como alguém muito acima, por direito próprio e por direito divino, de todos os outros portugueses e, sobretudo, dos desprezíveis "senhores agentes políticos". Ele era o homem que sabia muito mais de finanças do que qualquer um, que tinha "avisado" de cada vez que as dificuldades surgiam, que exigia a quem pusesse em causa o seu insustentável negócio com o BPN que nascesse duas vezes antes de se atrever a questioná-lo. 
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Um pouco mais de cultura, de coragem e de sentido de Estado (que vêm por arrasto), teria evitado, por exemplo, que Cavaco se tivesse alienado por completo da discussão sobre o Acordo Ortográfico ou que tivesse encaixado sem um estremecimento os enxovalhos que levou em Timor, na cimeira que consagrou a vergonhosa adesão da Guiné Equatorial à CPLP, ou em Praga, quando ouviu, sem reagir, o Presidente checo ofender os portugueses. Cavaco foi submisso ou inexistente lá fora e grandiloquentemente vazio cá dentro. Para a história ficará que, dez anos de presidência depois, deixou um país infinitamente pior do que aquele que recebeu.

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