quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) A ideia de uma peregrinação a Roma, empreendida por uma viúva alemã em era de turbulência religiosa, poderá desafiar um narrador de histórias de qualquer época e local. E se se aduzir que nos achávamos no fim da Primavera de mil quinhentos e trinta e quatro, e que Martinho Lutero afixara as suas negregadas teses dezassete anos antes no portal da Igreja do Castelo de Wittenberg, núcleo donde eu, a referida senhora, iria partir, obteremos um quadro em que se revelará tarefa simultaneamente árdua e fascinante introduzir alguma acção.

Eis que o Reformador continuava entretanto, e tal e qual como hoje, a exprimir a sua arrogância, quer contra o Papado inamovível, quer contra os fanáticos anabaptistas.

Seriam várias as semanas de preparativos aturados, visando a bem dizer uma quase mudança de residência para um país diferente, na qual eu acabaria por investir aquilo que me assistia ainda de meios de fortuna, e de energias do corpo. E naquela loucura senil, ou naquele ímpeto redentor, sentia-me por vezes à beira da assinatura de uma sentença de morte. Recrutei quanto consegui de batedores, criados e guardas, reuni os animais de tiro e carga indispensáveis, e acumulei arcazes sobre arcazes, de mantimentos e roupas, de armas de ataque e defesa, de peças de mobiliário, e de artigos de botica. E convidei a querida Susanna, amiga de sempre, para me acompanhar na expedição em que figuraríamos como as únicas mulheres. Quanto às relíquias que me cumpriria negociar, tendo obtido para o efeito a promessa de mediação do cardeal Cajetan, distribuí-as pelos falsos engenhosamente praticados nos múltiplos caixões de transporte da bagagem.(...)"

Tríptico da Salvação
Mário Cláudio
D. Quixote (2019)

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