domingo, 5 de fevereiro de 2017

Palavras bonitas

Hoje, o meu neto caçula festeja o primeiro aniversário.

E que prazer e confiança ele nos transmite agora, quando já vai decorrido um ano da sua vida e começam a aparecer as brincadeiras e as tropelias.

O meu Miguel ainda não lerá este poema de outro Miguel, mas foi para ele que o avô o escolheu.

CONFIANÇA

O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura ...
E que a doçura
Que se não prova
Se tranfigura
Numa doçura 
Muito mais pura
E muito mais nova ...

Cântico do Homem
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1974)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Acidente

À medida que os anos se vão sequenciando, as recordações que vêm à tona são as lá do fundo, dos primórdios, das primeiras gavetas da memória que, não sendo RAM, mantém frescos os ramos velhos e seca com rapidez os recentes.
No primeiro ano da Escola Nova (1964), o entusiasmo pela descoberta e a irreverência da idade faziam com que os intervalos entre as aulas fossem aproveitados para as traquinices que a velhinha escola das 5 bicas não permitia. Os campos de jogos eram fascinantes ... À sua volta foram colocados uns blocos de cimento que tinham um tubo em ferro galvanizado de cerca de um metro de altura. Quando havia jogos, os campos eram delimitados com esses blocos e era passada uma corda em nylon, pelos buracos dos tubos, criando assim uma vedação que impedia aos assistentes mais entusiastas a participação nas pelejas. 
Quando não havia jogos, os blocos eram tombados e ... um coloca-se na parte do cimento enquanto o outro, com o pé, levanta o tubo. O objectivo era saltar o tubo enquanto ele subia; numa das vezes, por distracção ou por maior rapidez do parceiro, o objectivo não foi alcançado, o salto ficou a meio e o tubo chegou ... às partes mais íntimas, que encimam as pernas. O corte aconteceu e o sangue brotou de imediato, criando algum alarme e empapando as calças. 
Ao tempo, os primeiros socorros estavam no ginásio e foi para lá que me dirigi, ajudado pelo companheiro da brincadeira. O senhor Policarpo ajudou-me a tirar as calças e examinou a ferida, confirmando, se necessário fosse, aquilo que as dores bem indiciavam e o sangue confirmava. Com uma paciência de santo, limpou, desinfectou, pôs tintura e uma gase bem segura por um desagradável adesivo que causava um desconforto tão grande como a ferida. Pelo meio, acalmou-me, contrapondo, a cada grito meu, que estava quase ...
Sempre que encontrava o senhor Policarpo, a "estória" vinha à baila, trazida ora por mim ora por ele.
Já não volto a falar com o contínuo da "minha" Escola nem com o clarinetista da Banda de A-dos-Francos, personagens reunidas numa pessoa que me marcou e de quem gostava, sentimento que, tenho a certeza, era recíproco. Partiu a semana passada, a 23 de Janeiro. Tinha mais 20 anos do que eu e faria 85 a 5 de Julho, se lá tivesse chegado.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Mário Soares e a poesia

Em 2005, o jornal Público editou uma colecção de livros de poesia, escolhida por diversas personalidades portuguesas e intitulada "Os poemas da minha vida". 
Um dos volumes - o 12º - contém a poesia escolhida por Maria Barroso e dele constam "Os dois sonetos de amor da hora triste", de Álvaro Feijó, que mereceram grande destaque nas cerimónias fúnebres de Mário Soares. A voz inconfundível e brilhante de Maria Barroso, deu vida a um dos momentos altos das cerimónias, num registo emocionante que quase parecia ter sido premonitório. (Maria Barroso faleceu em Julho de 2015).
Na altura da saída do livro não me detive nos sonetos de Álvaro Feijó, cuja obra não conhecia e que ainda desconheço. Contudo, a poesia na voz de quem sabe (sabia) desperta sentimentos, recordações, emociona e, como dizia Natália Correia para os subalimentados do sonho, "é para se comer".

sábado, 7 de janeiro de 2017

Mário Soares

Morreu hoje um dos maiores e talvez o mais resistente dos "cravos de Abril".
O ramo está cada vez mais pequeno ...

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Balanço 2016

Cumpridas as Festas, digeridas as comezainas, guardados os votos ouvidos e expressados, eis-nos chegados a 2017 com a esperança de que ele seja melhor do que o seu antecessor e traga tudo aquilo que as pessoas, por todo o mundo, incessantemente pediram.
O balanço far-se-á no final, como manda a tradição e, se tudo correr com normalidade, por mim já será feito fora da actividade profissional e, espero, como um reformado satisfeito.
Até lá, a guerra na Síria deve continuar e é provável que apareça noutros locais; a nossa atenção estará virada para os USA, sempre à espera das surpresas (ou não) do Trump; António Guterres dormirá pouco para conseguir levar a nau da ONU a bom porto; Angela Merkel poderá perder as eleições na Alemanha e Marine Le Pen ganhá-las em França; não deverá ser preciso esperar até ao final do ano para que o Banco Central Europeu autorize a administração da Caixa a tomar posse; o mar continuará a bater na rocha e a uma maré vaza seguir-se-á sempre uma maré cheia.
Entretanto e porque sou um lírico com esperança que algum dos meus netos, um dia, tenha a curiosidade de ver o que o avô leu em 2016, cumpra-se a tradição abrindo o registo informático, obtenham-se as capas e faça-se a necessária montagem: são mais de meia centena.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Prenda de Natal

No dia de Natal fui surpreendido com esta "pérola", deixada pelo meu neto GRANDE na secretária onde trabalho, sem qualquer indicação / explicação para o facto.

Coloquei o papel numa das prateleiras da estante, encostada aos livros e a um álbum de fotografias do Natal de 2013, à altura dos meus olhos quando estou sentado a trabalhar. 

Ao descobrir a mensagem, tive logo a ideia de a registar aqui. Hesitei, por não estar seguro de divulgar um texto tão íntimo e tão carinhoso. 
O papel lá permaneceu até hoje e por lá vai continuar. Fez apenas uma pequena viagem até à digitalização e regressa ao mesmo local, para emparceirar com os textos que por lá se encontram. Sim, porque é um grande escrito!


sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

TEATRO DA CORNUCÓPIA

Amanhã, após mais de 40 anos de trabalho altamente meritório, o Teatro da Cornucópia encerra, vencido pelas circunstâncias que a história julgará.

"Fomos vencidos pela filosofia de apoio às artes. Ao longo destes anos fizemos muito, mas não podemos adaptar-nos a modelos de gestão que depois dificilmente nos habituaríamos a cumprir." 

Foi desta forma eloquente e abrasiva, como é seu timbre, que Luís Miguel Cintra justificou a decisão.

Vi muitas das produções da Cornucópia e tinha (tenho) a maior admiração por Luís Miguel Cintra, em todas as suas áreas de intervenção artística, onde foi sempre grande.
Com os seus espectáculos de teatro aprendi a distinguir o teatro das "teatrices".

Obrigado à Cornucópia e a todos os que dela fizeram parte.
Para mim, fica a memória das grandes noites na Rua Tenente Raúl Cascais, ali entre o Rato e o Príncipe Real.


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

BOAS FESTAS



NATAL

Velho Menino-Deus que me vens ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram ...

Agora, outras quimeras me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder ...
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer ...

Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão ...

Mas o brinquedo ... quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração ...

Diário II
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1977)

sábado, 3 de dezembro de 2016

Livros (lidos ou em vias disso)

"Para aquela que está sentada à minha espera" é o último romance publicado por António Lobo Antunes. Na contracapa é transcrita, parcialmente, uma nota publicada no El País:

"Um autor com uma facilidade prodigiosa para enlaçar obras-primas, que dentro de cinco mil anos, em argila ou em pó de estrelas, continuarão a ser lidas com paixão."

É com paixão que leio os seus livros e este confirma a regra (como se isso fosse preciso).

"(...) da mesma forma que a língua regressa sozinha, teimosa, autónoma, ao buraco de um molar medindo-lhe o tamanho e aguardando a dor que ainda não veio mas há-de chegar um dia, há sempre um dia em que chega, de súbito a meio da noite o despertar em sobressalto com uma agulha no queixo, nenhum dentista acordado àquela hora, todos a dormirem felizes, o mundo cheio de dentistas a ressonarem em paz os estafermos, tocar meia hora à campainha sob a cruz verde que acendia e apagava da farmácia de serviço mais próxima na realidade longíssimo, uma rua deserta onde dúzias, centenas, milhares de afortunados dormiam em paz igualmente e um cachorro fugido sabe-se lá de que sítio o mirava a rosnar, um sujeito fechou a bata ao calhas por cima do pijama e informou-o despenteado, numa voz que se mastigava a si mesma chupando os rebuçados das sílabas, que não vendiam os comprimidos para o sofrimento sem receita médica, o sobrinho do meu marido não de bata claro, de sobretudo sobre a camisola interior foi-se embora vencido enquanto a porta lhe estoirava nas costas e o cão num semicírculo assassino se ia aproximando dele que felizmente conseguiu trancar-se no carro, ao chegar ao apartamento nenhuns passos, nenhuma voz a acompanhá-lo, sentou-se na cama e levantou-se logo porque o cheiro dos lençóis e o cheiro de si mesmo nos lençóis lhe repugnavam, o dele sozinho diferente do dele acompanhado, a Artemisa na cozinha 
        - Não te separas dela pois não?
       o sobrinho do meu marido
        - Claro que separo mas temos que chegar a acordo sobre os catraios e o resto
quando não haviam falado em acordo nenhum, por enquanto advogados, discussões, propostas, códigos com papelinhos amarelos metidos nas páginas de que lhe liam fórmulas tremendas, pensões, partilha da casa, faqueiro, as duas ou três jóias da mãe que a mulher do sobrinho do meu marido esqueceu, (...)

Para aquela que está sentada à minha espera
António Lobo Antunes
D. Quixote (2016)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Imagine

Com o Natal a chegar e o mundo cada vez mais a complicar. é bom recordar ... a mensagem de um sonhador.
"(...)
You may say, I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one.
John Lennon (1971)