quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Sou eu.

Saio de casa, atravesso o jardim e caminho na rua no meio dos desconhecidos que nela passam, também eles portadores de uma vida, nenhuma das quais é menos importante do que outra: todas são humanas, genuínas, e cada um a vive como pode. Não estamos sós, somos iguais ou equivalentes, respiramos o mesmo ar, debaixo do mesmo céu, e, conscientemente ou não, fazemos parte da História.

Ainda é cedo e a manhã está fresca, mas não fria. Olhando em volta vejo que a luz se foi tornando mais clara e a Primavera desponta nos jardins. O céu tem poucas nuvens, vai ser talvez um dia de sol, e a brisa traz consigo uma espécie de alegria.

E quando tiver caminhado o tempo que quiser, até me saciar de ar livre e movimento, vou voltar para casa, sentar-me na poltrona do quarto, perto da janela, e ditar mentalmente a última entrada na Crónica Secreta.

Que nada fique escondido e o secretismo da tua obra e do teu espólio acabe. Que tudo o que foste e escreveste venha à luz do dia, não só do teu ponto de vista, mas também na visão dos que privaram contigo.

No que me diz respeito, que as cartas que trocámos sejam publicadas, sem censura nem cortes, traduzidas noutras línguas e dadas a ler a quem quiser. As duas vozes têm igual direito a ser ouvidas, porque uma carta só está completa se soubermos que resposta recebeu.

Não me preocupei com as tuas teorias, que, como sabes, nunca me convenceram. Mas tudo o que te escrevi é rigoroso e verdadeiro, e não duvido de que terá utilidade - quem sabe, talvez até possa vir a fazer alguma diferença no mundo.

E é com um leve sorriso que ponho um ponto final nesta longa revisitação das nossas vidas. O que quis descobrir foi descoberto, o que de essencial quis dizer foi dito, e não tenho mais nada a acrescentar."

Autobiografia não escrita de Martha Freud
Teolinda Gersão
Porto Editora (2024)

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Palavras bonitas

ANTES QUE SEJA TARDE

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Poemas Completos
Manuel da Fonseca
Forja (1978)

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Guerras

A guerra na Ucrânia está quase "milionária", não no sentido do enchimento dos bolsos de muitos nem do número de mortos e feridos que já causou, mas nos dias da sua duração, sem se vislumbrarem quaisquer soluções. E vamos vendo, ouvindo e lendo, sem podermos ignorar, como nos ensinou a grande Sophia, mas também sem nada fazer para contrariar.

Gostava muito de ter uma opinião clara e fundamentada sobre o que se está a passar no mundo e o que leva e justifica a selvajaria que por aí vai grassando. O que vai acontecendo aqui mesmo ao lado - as distâncias são, agora, um pulinho -, quer na Ucrânia quer na Palestina, angustia-me. Acho deplorável, inconcebível, execrável, horrível, sendo insuficientes todos os adjectivos para qualificar a miséria, que não consigo qualificar.

Hoje, como faço (quase) todos os dias, li o post do Embaixador Seixas da Costa, no seu blogue "Duas ou três coisas" e as suas palavras encheram-me de inveja. Vale sempre a pena ler (ou ouvir) quem sabe!

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Higiene

As recentes eleições nos Estados Unidos têm feito correr muita tinta e o seu resultado vai trazer consequências, gravosas, para todo o mundo, diz o meu "eu" comentador e observador atento.

Ainda não perdi as esperanças de, um dia, ir conhecer esse gigante que manda e tenta controlar todo o mundo e onde, por estranho que possa parecer, o "poupinha" vai voltar à presidência. 

Sendo um país tão grande e tão diverso tem, contudo, a bandeira mais higiénica do mundo, de acordo com o saber do Carlinhos, essa "enciclopédia" infinita dos ditos acertados e certeiros.

- Sabes qual é a bandeira mais higiénica do mundo?

- Nem imagino ... deve ser a que foi lavada há menos tempo!

- Nada disso. É a dos Estados Unidos da América.

- E porquê?

- Porque tem cinquenta estrelas e nove de cada dez estrelas usam "Lux"; e nas riscas vermelhas contém "hexaclorofene" que torna o hálito puro e fresco. 

A publicidade cria coisas que nem o tempo faz esquecer. 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Festas

A noite de ontem fica na história pela despedida, brilhante, de Ruben Amorim, com a vitória do "seu" Sporting sobre o futuro rival Manchester City, com um resultado que ninguém esperava: 4-1. Amorim ganhou, e bem, despedindo-se de Alvalade pelo portão enorme e abrindo as portas de Manchester com direito a trombetas e desfiles de gala. Não é muito comum nos treinadores de futebol, mas aconteceu.

Do lado de lá do Atlântico, contrariando as previsões de muitos comentadores televisivos, a democrata Kamala Harris não foi capaz de fazer frente ao "poupinha loira", que os eleitores americanos entenderam ser o "deus" indicado para os guiar nos próximos quatro anos.

Tenho para mim que vai ser um período de luxo, com tiradas diárias indignas da tasca mais rasca e decisões que tornarão o mundo ainda mais complicado do que ele já está hoje. A ver vamos ... como diz o cego!

sábado, 2 de novembro de 2024

Olhares

Eu não tenho vistas largas
Nem grande sabedoria.
Mas dão-me as horas amargas
Lições de filosofia.

António Aleixo

Por aqui, no sossego do Bairro, brilha o sol,  a temperatura está agradável, a relva pede corte, as flores riem-se e o pensamento vai para a tragédia que se abateu sobre as terras de Valência. E se?

Vamos à Foz, onde o mar está chão e os muitos surfistas buscam uma ondita e nem a vislumbram. As ilhotas de areia cada vez ocupam mais espaço da Lagoa e os telhados dos bares da avenida, muitos ainda de amianto, obrigam a que os olhos se mantenham fixos lá bem longe, no horizonte, e tentem descortinar a Berlenga.

Um imenso mau gosto, temperado com lixo e outras porcarias à volta de quase todos os estabelecimentos que aguardam os fregueses para o almoço. No entretanto, vão agredindo quem lhes olha para as traseiras e vê o nojo que por ali vai.

Olhemos o mar!!!

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Passou ...

Foram horas infindas de argumentação, discussão, palração, frustação, má educação, vozes de jumento ... mas já há Orçamento.

Agora é só esperar, sentado, a sua aplicação. Mas só a partir do Ano Novo, para que haja Natal descansado, sem matemática e finanças por perto.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Fala de Matias Kirimi

O padre não era branco. Mas, naquele momento, ele agia como se fosse um deles. E sempre que os brancos querem saber quem sou, levanto as mãos para que vejam que estou desarmado. Os meus braços são asas inúteis. Sou como as aves domésticas: nem o céu nem o chão me pertencem. Assim, de braços abertos e as mãos rendidas, os brancos acreditam que, mesmo que eu bata as asas, eles serão donos do meu voo.

Há pouco, quando saltei para o caminho, soletrei devagar o meu primeiro nome como se aquele <<Matias>> me tornasse menos preto. O padre sorriu, com altivez. Não fazia ideia de que lhe entregava a casca para salvar o fruto. Procedi assim porque há muito que estou avisado: é pelo nome que nos começam a roubar a alma. No momento seguinte, como eu já adivinhava, o padre perguntou pela minha tribo. O nome e a raça não bastavam. Nos tempos de hoje, disse eu, ninguém sabe quem é quem, nem de onde vem.

No final, o padre voltou ao assunto da cor da pele. Disse que eu era demasiado claro para ser um negro retinto. Respondi que não sabia responder. Ele que me dissesse de que raça eu era. Essa é a especialidade dos brancos: as raças. (...)"

A cegueira do rio
Mia Couto
Caminho (2024) 

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Publicidade

Há já alguns bons anos, passava nas televisões um anúncio a um sumo, no qual um jovem bem disposto e bem parecido, debitava uma frase, convencido de que lhe tinha saído a sorte grande ou, pelo menos, a terminação:

- "Isto está-se a compor ... mais um Joi laranja prá minha amiga."

Olhando para o que se vai passando por aqui e pelo resto do mundo, talvez se justifique uma actualização do anúncio, com a devida divulgação geral e repetição amiúde:

- Isto está-se a descompor ... haverá Joi laranja para a minha amiga? 

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Vida difícil

Mandam as mulheres no actual "compêndio" de leitura, e no resto, sem sombra de dúvida.

O novo livro de contos de Teresa Veiga - Vermelho delicado - já está lido e arrumadinho no seu lugar, fazendo companhia aos anteriores de uma autora de quem pouco se sabe e que não aparece em público; em curso, a leitura de mais contos, desta vez de Luísa Costa Gomes - Visitar amigos -, que também se está a revelar excelente, como é costume e de esperar de tão grande mestra; na calha, ou melhor, na ordem da fila, Teolinda Gersão e a sua Autobiografia não escrita de Martha Freud que, pela sinopse e pelo histórico autoral, promete e não irá desiludir; a acompanhar esta maratona está Isabel Rio Novo - Fortuna, caso, tempo e sorte - com um "calhamaço" de mais de setecentas páginas a biografar Camões. Este vai andando, devagar, que as pressas não se justificam.

E a pilha não baixa ...

É difícil a vida de um reformado, leitor inveterado que, qual boião de cultura, leva sempre um livro para todo o lado e nunca consegue chegar ao fim da rima, apesar de aproveitar todos os momentos nos quais, sentado, consegue ter mãos livres.