Ver e ouvir a declamação deste lindo poema de Ruy Belo, integrado num grande espectáculo de teatro musicado, com encenação de Ricardo Pais e o título de Talvez ... Monsanto, foi um privilégio ao mesmo tempo arrepiante, comovente, excepcional, lindo.
Tudo brilhante! Dos actores aos músicos, da poesia à encenação, dos adufes ao contrabaixo, das vozes às interpretações, com um destaque especial para Luísa Cruz.
QUERO SÓ ISSO NEM ISSO QUERO
Quero uma mesa e pão sobre essa mesana toalha de linho nódoas de vinhoquero só isso nem isso queroQuero a casa de terra à minha voltacães altos na noite a minha mãe mais novaquero só isso nem isso queroQuero a casa do forno onde eu me escondia dos relâmpagose trovões quando um ferro no cesto garantia uma feliz cria à galinha chocadeiraquero só isso nem isso queroQuero de novo fundir ao lume os soldados de chumbo que no natal me punham no sapatinhoe tirar chouriço e toucinho do guarda-comidasquero só isso nem isso queroQuero fazer pequeninos adobes e construir casas pelo quintalver chegar o verão e comermos todos lá fora na varanda de tijoloquero só isso nem isso queroQuero uma aldeia umas pedras um rioumas quantas mulheres de joelhos brancos esfregando a roupa nas pedrasquero só isso nem isso queroQuero escrever fatais cartas de amor à rapariga dos meus oito anosrasgar essas cartas deixá-las pra sempre dentro do tronco oco da oliveiraquero só isso nem isso queroQuero umas cabras um pastor rico um pastor pobreo leite quente na teta o cabrito morto soprado e esfoladoquero só isso nem isso queroQuero a courela as perdizes no ovo a baba do cucolaranjas de orvalho no ano novo colhidas na árvorequero só isso nem isso queroQuero dois montes e um paul de malmequeres a cheia na primaveraa asma o ruído dos ralos as pernas sombrias das raparigasquero só isso nem isso queroQuero que voltem os que morreram os que emigrarammatar com eles o bicho com aguardente pela manhã antes da pegaquero só isso nem isso queroQuero ver ao vento o véu das noivas apanhar os confeitos nos casamentossaber pelos papéis dos registos o tempo da prenhez palavra misteriosaquero só isso nem isso queroQuero um pátio meu e da sombra e galinhas pedreses e árvoresuma mina de avencas uma horta uma sebe de cana umas casas caídasquero só isso nem isso queroQuero ajudar na rega do fim de tarde calcar os buracos das toupeirase dirigir com o sacho a água morna nos pés até aos regos do feijãoquero só isso nem isso queroQuero em dezembro o varejo final da azeitona o búzio a tocara azeitona a cair dos ramos nos panos de serapilheiraquero só isso nem isso queroQuero o meu pai de chapéu de chuva aberto nos dias de solo meu pai de manhãzinha a lavar-se e a explicar-nos latim e históriaquero só isso nem isso queroQuero nu em pelota entre todos tomar os banhos no marachãoos ninhos dos pássaros as andorinhas de asas escuras no céu azulquero só isso nem isso queroQuero o pátio da escola a roda das raparigas a cantar à volta do plátanoo primeiro sonho de amor as primeiras palavras gaguejadas trocadas com uma raparigaquero só isso nem isso queroQuero as feridas nos pés para poder sair à rua descalçoo pão com conduto entre os meninos pobres no recreioquero só isso nem isso queroQuero ir ao vale barco a malaquejo à marmeleiraroubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo presoquero só isso nem isso queroQue quero tanto que quero um mundo ou nem tanto só agora reparoquero morder para sempre a almofada quente e densa da terraquero só isso nem isso queroTodos os poemasRuy BeloAssírio & Alvim (2000)
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