sábado, 15 de dezembro de 2007

Sem data

No final dos anos sessenta fazer uma escritura significava, pelo menos, uma manhã de burocracia, depois de algumas passagens pelas Finanças e pela Conservatória, também pela Câmara, para obter os documentos necessários.
Ao Notário, coadjuvado pelo Ajudante de mangas de alpaca no casaco, cabia a marcação da data, depois de uma olhada rápida pelos elementos entregues. Os pormenores ficavam para o dia aprazado, com a presença de todos os intervenientes, que compareciam com bastante antecedência para que nada pudesse correr mal e o serviço, de muita responsabilidade, não fosse prejudicado pelo atraso de alguém.
Nessa altura trabalhava como empregado de escritório (ou guarda-livros como, por vezes, ainda se ouvia aos mais velhos) de uma grande casa agrícola da região, cujo proprietário, herdeiro de uma grande, antiga e conceituada família, era uma pessoa de grande cultura, educação e rigor.
Pouco dado às burocracias e com, por certo, coisas bem mais interessantes para fazer, mandava-me ir em sua representação e chegava, apenas, na hora aprazada para o acto. O Notário conhecia os hábitos e sabia que, à hora marcada, deveria ter a escritura totalmente pronta e em condições de ser lida e assinada, porque a sua pontualidade era "inglesa".
Naquele dia, à hora prevista, não chegou ...
Passou-se quase meia hora e nada ...
Pedi ao Notário para utilizar o telefone, fixo, que os móveis só chegariam muitos anos depois.
Liguei para a Quinta e fui atendido de imediato. Estava, quase de certeza, sentado a aguardar o telefonema.
- Estamos todos à sua espera ...
- Para quê?, foi a pergunta que surgiu do lado de lá.
- Para assinar a escritura de... deixei um recado escrito num papel, na mesa da sala verde, respondi, já com algum receio e sensação de culpabilidade.
- Vi e li. Não tinha data, não fiquei a saber que era para hoje. Vou já para aí.
Nunca mais esqueci a lição.
Ainda hoje, em qualquer nota, por mais curta que seja, coloco sempre a data.

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