quinta-feira, 17 de abril de 2008

Tempo

A saca de capuz, com tons de castanho bem escuro, indicava que o céu regava os campos com todos os cântaros que tinha à mão. Era de serapilheira grossa e, olhando-se com atenção, ainda se viam as letras do Foskamónio 15-15-15 que nela tinha sido embalado. O mais provável era que tivesse feito parte de uma das partidas de adubo que a quinta comprava no final do Outono e tivesse sido dada a Jerónimo como recompensa de um dia bem sucedido na adubação.
Cumpria agora a missão de lhe proteger a cabeça e as costas.
A chuva, impediosa em grossas bátegas batidas de vento, desmentia o "marçagão" do ditado e inundava as terras, sem contemplações de calendário.
Tinha saído de casa bem cedo. Mal via o caminho e, de quando em vez, uma pedra rebolava com o impacto, desastrado, de uma das suas botas. Os melros acordavam, sobressaltados, e levantavam do poiso da noite, com um silvo, zangado, próprio de quem é acordado antes da hora prevista.
Caminhava a passo estugado.
O dia começava a clarear.
Barafustava: Alvorei cedo, chegarei tarde?
A chuva aumentava de intensidade. Só uma grande sorte faria com que o caseiro lhe desse um diazito a rachar lenha no telheiro; para o campo não estava capaz.
E a jorna?
O garoto estava doente. O homem da loja já tinha cortado o assento no livro.
Quando avistou o portão, pensou em desistir e voltar a casa.
Encostados ao muro já se distinguiam, pelo menos, cinco vultos que tinham amanhecido mais cedo.
O caseiro não tardou:
- Hoje só preciso de dois; ficam o Xico e o Manel. Voltem amanhã, talvez dê para fazer alguma coisa na vinha!
A tasca já estava aberta. Procurou nos bolsos uma moeda que sabia lá não estar.
Ficou-se pela sensação de calor que um copo de aguardente lhe daria, se o tivesse bebido.
Voltou a casa, com as costas vergadas pelo peso da saca encharcada.
Alvorou cedo ... chegou tarde!

1 comentário:

Artur R. Gonçalves disse...

Regresso auspicioso à escrita recreativa, testemunho de um TEMPO que nós gostaríamos de ver definitivamente afastado dos nossos horizontes. A história conta-nos com «palavras bonitas» aspectos menos bonitos da vida. Revela-nos a sensibilidade da instância narrativa (autor), assente em ecos de um neo-realismo ainda actuante numa sociedade pós-moderna do consumo imediato, do interesse individual, da pulverização dos valores. Fico à espera de outras crónicas, de outros casos, de outros testemunhos…