segunda-feira, 21 de março de 2011

Palavras bonitas

LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa …

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças …
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca …

Fernando Pessoa

EM TODOS OS JARDINS

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens

Sophia de Mello Breyner Andresen

MIRADOIRO

Com tristeza e vergonha enternecida,
Olho daqui
A ponte das palavras
Que construí
Sobre o abismo da vida.

Sonhei-a;
Desenhei-a;
Sólida até onde pude,
Lancei-a como um salto de gazela:
E não passei por ela!

Vim por baixo, agarrado ao chão do mundo.
Filho de Adão e Eva,
Era de terra e treva
O meu destino.
E cá vou como um pobre peregrino.

Miguel Torga

O SAL DA LÍNGUA

Escuta, escuta: tenho ainda
Uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
Salvar o mundo, não mudará
 A vida de ninguém – mas quem
É hoje capaz de salvar o mundo
Ou apenas mudar o sentido
Da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
Que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
Mais. Palavras que te quero confiar.

Para que não se extinga o seu lume,
O seu lume breve.
Palavras que muito amei,
Que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade

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